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Delegado é o “Senhor da Tipicidade Penal”?

por MARCELO FERNANDES DOS SANTOS
Tivermos a oportunidade de, recentemente, observar que alguns professores de cursos preparatórios para concursos públicos, especialmente daqueles reconhecidos nacionalmente, vem expressando em sala de aula que o delegado de polícia “não deve analisar a tipicidade material do delito, somente a tipicidade formal deste, ou seja, na prática, corresponderia atribuir-se ao delegado apenas a função de efetuar a leitura fria e gramatical dos tipos constantes do código penal e leis especiais, verificar se houve subsunção do fato supostamente criminoso à tais  tipos incriminadores, ouvir os envolvidos, relatar tudo e enviar à justiça. Muito simples.

 

Dessa forma, se assim o fosse, nem haveria necessidade da existência da figura do delegado, bastar-se-ia instalar nos portões dos fóruns “caixas eletrônicos penais”, os quais contivessem  todas as opções criminosas possíveis e, acompanhados pelo policial/condutor, obter o suspeito seu ‘e-ticket’ de encaminhamento à prisão provisória, aguardando-se a acusação e devido julgamento.

 

Ainda, propalam tais docentes, dentre milhares de estudantes recém formados em Direito, com perdão da expressão, talvez erroneamente, talvez movidos pelo “inconsciente coletivo” mote da instituição a qual pertençam profissionalmente, ou então motivados por uma simples posição doutrinária adotada, a qual respeitamos mas somos irremediavelmente contra, a idéia de que o delegado não deve ‘opinar’ quando da feitura do relatório final no inquérito policial, nem mesmo analisar se o suspeito agiu sob o manto das excludentes de ilicitude (legítima defesa, estado de necessidade etc), ou das de culpabilidade (imputabilidade, inexigibilidade de conduta diversa etc), ou praticou infração insignificante, irrelevante, carente de adequação social, etc.

 

Pois bem. Primeiramente, tem razão tais professores, pois não deve mesmo o delegado de polícia “opinar” no relatório final do inquérito. Nem durante o processado. Opinar, não é, de fato, atribuição de delegado de polícia.

 

Deve a autoridade policial, na verdade, lançar sua decisão no inquérito que preside, seja pelo indiciamento ou não do suspeito, ao final do relatório, ou durante a tramitação do procedimento inquisitivo. Afinal, quem opina (dá pareceres, cotas, etc) no processo são os dignos integrantes do Ministério Público, cabendo aos delegados de polícia “decidir” se indiciam ou não, assim como aos juízes cabem “decidir” se condenam ou não o réu. E tudo isso deverá ser fundamentado, conforme se observa das diretrizes Constitucionais e da nova tendência garantista que converge ao inquérito policial atualmente.

 

Já tivemos oportunidade, outrora, de expressar nossa opinião de que indiciado é o sujeito de direitos (e não simples objeto de investigação), eleito pela autoridade policial, conforme seu entendimento jurídico, como autor da infração penal.

 

Isso porque a investigação apontará, em momento oportuno, o(s) indício(s), quando então o delegado, seguindo sua convicção jurídica, providenciará o devido indiciamento, ou não, de quem de direito se encontrar na posição de suspeição, seja determinando sua oitiva na forma de interrogatório, seja ratificando o interrogatório do conduzido em procedimento flagrancial, seja decidindo não indiciá-lo, tendo em vista a ausência de tipicidade material da conduta, procedendo-se, por fim, nos demais atos que dele advém.

 

Frisa-se, ainda, que ao delegado de polícia cumpre, conforme disposição do art. 4º do CPP, “apurar infrações penais e sua autoria”.

 

Assim, deve o delegado apurar a autoria de infração penal, ou seja, autoria de “crime”.

 

Caso o delegado entenda, juridicamente, analisando o fato sob o prisma de quaisquer teorias da tipicidade que adote (clássica, finalista, conglobante, imputação objetiva, constitucionalista do delito, etc), que o ‘autor’ não praticou “crime”, então a única solução será decidir pelo seu não–indiciamento, posto que não lhe compete indiciar “autor de fato ATÍPICO”, nem “autor de conduta típica e LÍCITA”, mas sim “autor de infração penal”, em outras palavras, autor de crime.

 

E crime é, dentre os diversos conceitos analíticos que o explicam, existentes e aplicáveis aos delitos ocorridos no Brasil, no mínimo, um fato típico e ilícito (cf. Teoria Finalista Bipartida).

 

Por isso que, em seu relatório, sustentamos que é extremamente necessário que o delegado de polícia expresse seu entendimento jurídico, tipificando penalmente (tipicidade material + tipicidade formal) a conduta do suspeito, inclusive analisando se existem causas excludentes de injuridicidade ou de culpabilidade a militar em favor do suspeito, posto que caso se constate a presença de alguma justificante ou dirimente, não haverá crime, mas sim somente um fato típico (provido de conduta, revelador de resultado, possuidor de nexo entre ambos, e tipicidade).

 

Isso porque a investigação policial, com sua conseqüente decisão de indiciamento ou não do suspeito tomada pelo delegado de polícia, não serve apenas de fornecer subsídios para que o membro do Ministério Público promova a denúncia, mas sim para fundamentar, de igual modo, uma “opinio delicti negativa”, a fim de que seja o inquérito policial arquivado pelo Magistrado, mediante requerimento opinativo do “parquet”.

 

Do mesmo modo, tal fundamentação jurídica do delegado seve para que o Juiz exerça o primeiro  filtro de admissibilidade da acusação, no caso de oferecimento da denúncia. Diante disso, mostra-se lógico que quanto mais o delegado fundamentar juridicamente seu não-indiciamento, e para isso terá que destrinchar os conceitos de tipicidade penal, mais ardoroso (se não mais ‘trabalhoso’) será para a acusação obter em juízo despacho exordial de recebimento da denúncia; quanto mais uma condenação, especialmente no rito do júri. Só ai já se explicaria o motivo pelo qual alguns promotores insistem em dizer que o delegado de polícia não é o “senhor da tipicidade material”.

 

E, não é demais insistir, ao delegado cabe apurar a “autoria de infração penal”, e não somente autoria de fato típico. Assim, poderá agir socialmente no sentido de reduzir os riscos de acusações formais infundadas, temerárias, evitando-se, portanto, um streptus fori desnecessário ao suspeito, apto a lhe causar dano social às vezes irreparável.

 

E ainda podemos afirmar que, diante da experiência obtida, a investigação policial perpetrada e formalizada mediante inquérito policial delimitará, sem sombra de dúvidas, o que será discutido em sede judicial, não se avançando, em quase nada, de regra, na esfera instrutória-processual.

 

Ex positis, deverá o delegado de polícia cumprir seu mister de forma completa, ou seja, apurar a “autoria de crime”, e não apenas apurar autoria de metade do conceito analítico de crime (autoria de fato típico).

 

Por fim, sustentamos que por meio do minucioso relatório constante do art. 10, §1º, do CPP, deverá o delegado se manifestar pela tipicidade penal e decidir sobre o indiciamento ou não do investigado, mediante a análise da tipicidade formal e material da conduta delitiva perpetrada, inclusive no tocante às excludentes de ilicitude e culpabilidade, além, é lógico, de toda apuração circunstancial da infração penal, consubstanciada na materialidade delitiva, que nada mais é do que a colheita dos elementos de prova e demais perícias requisitadas.

 

Afinal, se ao réu é garantido Constitucionalmente a “presunção de sua inocência”, em nada lhe prejudicará – pelo contrário, só lhe será benefico-, que o primeiro profissional do Direito em contato direito e imediato com a situação penalmente relevante em seu desfavor, – o delegado de polícia – lhe garanta a fiel efetividade desse postulado, aplicando seus conhecimentos jurídicos exigidos quando da assunção ao cargo em prol da legalidade, da humanidade, da dignidade da pessoa humana e do devido processo legal.

 

 

Sobre o autor

 

Fabricio De Santis Conceição
Delegado de Polícia do Estado do Rio Grande do Sul. Colunista e correspondente da região Sul/Suldeste do Portal Nacional dos delegados (www.delegados.com.br). Professor Universitário. Foi Delegado de Polícia no Estado da Paraíba (turma de 2003), onde exerceu a função de Vice-presidente da Associação dos Delegados de Polícia do Estado – ADEPOL/PB, mandato 2008/2010. Exerceu o cargo de Gerente de Inteligência da Secretaria de Estado da Segurança e Defesa Social do Estado da Paraíba (2007-2008). Foi professor da Academia de Polícia Civil do Estado da Paraíba, e professor Universitário da Associação de Ensino Renovado – ASPER (2007 a 2010) e de cursinhos preparatórios pra concurso em João Pessoa/PB. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Penal, Processo Penal e Direito Constitucional. É Pós-graduado em Direito Penal pela Universidade Metropolitanas Unidas – UNIFMU/SP, e especialsta em Tribunal do Juri, pela Escola Superior de Advocacia de São Paulo – ESA/SP (2002). Atuou como Defensor dativo, junto a Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, e como advogado, exerceu a função de membro da Comissão de Direitos e Prerrogativas da Secção Central (Sé) da OAB/SP , e da Comissão de Tribunal do Juri da Secção Penha de França/SP (2001-2004). Ex-agente penitenciário da Penintenciária de Segurança Máxima de Pacaembú/SP, e do Centro de Detenção Provisório I, de Osasco/SP (1997-2001).

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