A Constituição de 1988 traz em seu bojo as missões constitucionais das instituições de Estado, essas entendidas como permanentes na vigência do atual regime constitucional. São exemplos de instituições de Estado o Poder Judiciário, Ministério Público, Polícia Federal, Polícia Civil e as Forças Armadas.
Nessa ótica, o constituinte originário delegou a duas instituições de Estado a tarefa estatal de Polícia Judiciária. São elas: Polícia Federal e Polícia Civil.
O desenho constitucional da Polícia Federal é estabelecido no seu artigo 144 da Constituição. As palavras utilizadas no texto constitucional deixam evidente que a Polícia Federal “destina-se a exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União” (artigo 144, §1º, IV).
A Polícia Civil detém a incumbência de exercer as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, dirigidas por delegados de polícia, conforme previsão do artigo 144, §4º da CRFB/88.
A hermenêutica constitucional ensina que não há palavras ou expressões inúteis nos dispositivos da Constituição, todas são dotadas de algum grau de eficácia.
Nesse prisma, a Carta Magna vigente ao atribuir a função de “polícia judiciária”, e não de “polícia ministerial”, “polícia executiva”, “polícia de acusação”, põe a todos os súditos constitucionais que as instituições Polícia Federal e Civil têm como destinos de suas atuações o Poder Judiciário.
Em outras palavras, o produto do trabalho da Polícia Federal e Civil, o inquérito policial concluído, é destinado ao Poder Judiciário, como órgão central do sistema de justiça criminal.
O instituto do inquérito policial visa a investigar fatos e, sendo existentes, identificar eventuais crimes, coletando os elementos de prova de autoria e materialidade.
As provas coligidas no curso de uma investigação são destinadas ao Poder Judiciário, podendo os atores (partes) do processo criminal (acusação e defesa) utilizarem-se daquilo que fora angariado ou ainda produzirem provas que julgarem necessárias ao convencimento de suas teses.
Não por outra razão dispõe o artigo 12 do CPP que o inquérito policial acompanhará a denúncia ou queixa, sempre que servir de base a uma ou outra. Em outros termos, se elementos colhidos no inquérito policial não forem favoráveis ao interesse da acusação, poderão ser dispensados, o que reforça a ausência de vinculação das polícias judiciárias e o Ministério Público.
Nesse sentido, o delegado de polícia não se vincula a essa dialética processual, portanto, não interessa ao inquérito policial se a prova coletada sobre determinado fato tido como criminoso favorecerá acusação ou defesa, mas tão somente produzir uma investigação imparcial.
Essa premissa da imparcialidade no inquérito policial é retirada do próprio texto constitucional. Um dos pressupostos do processo é a do juiz natural (artigo 5º, XXXVII da CF/88) e seus corolários, dentre eles destaca-se a imparcialidade do Poder Judiciário.
Princípios da Polícia quanto ao Poder Judiciário
A relação umbilical prevista pela Constituição entre Polícia Judiciária e Poder Judiciário fica mais evidente quando se observa no artigo 322 do Código de Processo Penal que somente o magistrado e a autoridade policial (extensão do Poder Judiciário na estrutura da polícia judiciária) podem conceder fiança. Essa atribuição não é dada às partes do processo penal (Ministério Público e defesa), justamente por ser ausente o pressuposto da imparcialidade.
O raciocínio constitucional ao prever a Polícia Federal e Civil como polícia judiciária é submeter a atuação delas e de seus institutos, tais como o inquérito policial, aos mesmos princípios que regem o Poder Judiciário.
Desse modo, a polícia judiciária, diferentemente do que se ensina costumeiramente na doutrina processual penal brasileira, especialmente de autores ligados ao Ministério Público, entende que inquérito policial não é destinado ao Ministério Público por ser o titular da ação penal, mas ao Poder Judiciário que decide acerca do arquivamento do inquérito policial (artigo 18 do Código de Processo Penal e ADIs 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305).
Com base no que foi exposto, fica evidente que a Constituição destinou à Polícia Judiciária o múnus de produzir investigações imparciais e destinadas ao Poder Judiciário por ser constitucionalmente uma Polícia Judiciária.
Cientes desse papel constitucional atribuído à Polícia Judiciária, o Código de Processo Penal, especialmente através das suas várias reformas, dota a autoridade policial (delegado de polícia) da capacidade de representar junto ao Poder Judiciário por medidas cautelares (pessoais, probatórias e assecuratórias) independentemente do grau.
A Polícia Federal, como polícia judiciária da União, por exemplo, possui legitimidade para exercer suas atribuições em todos os graus do Poder Judiciário da União (juiz federal, tribunais regionais federais, Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal).
Assim sendo, o delegado de Polícia Federal detém a capacidade e legitimidade de representar em qualquer grau do Poder Judiciário da União.
A legitimidade do delegado de polícia
Tangendo esse tema, o Código de Processo Penal não traz rol de legitimados para a interposição do recurso de apelação, nem tampouco, veda a sua interposição pelo delegado de polícia, vejamos:
Art. 593. Caberá apelação no prazo de 5 (cinco) dias: (Redação dada pela Lei nº 263, de 23.2.1948)
(…)
II – das decisões definitivas, ou com força de definitivas, proferidas por juiz singular nos casos não previstos no Capítulo anterior;
Essa ausência tem fundamento lógico. A fase pré-processual e processual penal são dotadas de particularidades que as distingue dos institutos e figuras clássicas do processo civil. Em face da amplitude de situações que decorrem dos casos criminais, o Código de Processo Penal não traz rol de legitimados sob pena de limitar injustificadamente direitos eventualmente tolhidos por decisões consideradas injustas.
A Constituição é marcada pela sua capacidade de atribuir aos órgãos suas missões institucionais com clareza, por outro lado, não há, até por impossibilidade real, a definição de todos os instrumentos jurídicos necessários ao cumprimento dessas missões.
A fim de sanar essas lacunas, o Supremo Tribunal Federal adota no âmbito hermenêutico constitucional a teoria norte americana dos poderes implícitos (inherent powers), que consiste na possibilidade de, no exercício de sua missão constitucional enumerada, o órgão executivo deveria dispor de todas as funções necessárias, ainda que implícitas, desde que não expressamente limitadas (Myers v. Estados Unidos — US 272 — 52, 118)[1].
Assim sendo, o poder de representar perante todos os graus do Poder Judiciário da União, somada à ausência de limitação legal e de vinculação às partes do processo penal, traz implicitamente a capacidade e legitimidade do delegado de polícia.
Obviamente que o recurso deve ser interposto contra as decisões proferidas pelos magistrados no bojo das representações cautelares (probatórias, assecuratórias e pessoais) protocoladas pelo delegado, atendendo, portanto, ao segundo pressuposto do recurso, o interesse recursal.
[1] RE 593727/MG, red. p/ o acórdão Min. Gilmar Mendes, julgado em 14/5/2015
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