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Violência doméstica contra mulher no contexto da ADI 4424 e ADC 19

por Editoria Delegados

 

 

 

Título original: A violência doméstica e familiar contra a mulher no contexto das ADI nº 4424 e ADC nº 19: análise do mérito e da repercussão do efeito retroativo (ex tunc) da decisão

 

 

A Lei nº 11.340/06 criou mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher. A lei foi um resultado da luta de Maria da Penha Maia Fernandes contra as agressões que sofreu durante seis anos de casamento. Os momentos mais emblemáticos foram as duas tentativas de homicídio que sofreu: na primeira, ficou tetraplégica após disparos de arma de foro e, na segunda, passou por momentos de crueldade ao sobreviver a eletrocussão e afogamento. O autor do fato – seu marido – foi julgado e condenado a 19 anos de prisão, respondendo somente 2 anos em regime fechado. Com base nesse fato, o Centro pela Justiça pelo Direito Internacional e o Comitê Latino-Americano de Defesa dos direitos da Mulher (Cladem), juntamente com a vítima, formalizaram uma denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA). O resultado foi a citada lei, que, atualmente, é conhecida como Lei Maria da Penha.


O principal fundamento constitucional da Lei Maria da Penha consta do art. 226, § 8º, da Constituição Federal, verbis:


Art. 226, § 8º – O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.


Como fundamento, citam-se, ainda, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher.


Após a publicação da Lei nº 11.340/06, algumas ações começaram a impugnar a constitucionalidade de diversos dispositivos da lei. Entre essas ações, citam-se a ADI nº 4424 (Relator(a):  Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 09/02/2012) e a ADC nº 19 (Relator(a):  Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 09/02/2012), as quais serão analisadas abaixo.


A ADC nº 19 teve por finalidade a declaração da constitucionalidade dos art. 1º, 33 e 41 da Lei nº 11.340/06:


Art. 1º  Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar.

Art. 33.  Enquanto não estruturados os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, as varas criminais acumularão as competências cível e criminal para conhecer e julgar as causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, observadas as previsões do Título IV desta Lei, subsidiada pela legislação processual pertinente.

Parágrafo único.  Será garantido o direito de preferência, nas varas criminais, para o processo e o julgamento das causas referidas no caput.

Art. 41.  Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995.


A principal finalidade da ADC era possibilitar, sem dúvida quanto à constitucionalidade dos dispositivos, a não aplicação da Lei dos Juizados Criminais e dos institutos regulados por essa lei (v.g., transação penal, entre outros).


O STF fixou o entendimento de que os dispositivos citados teriam por base o princípio da igualdade, no que concerne ao necessário combate ao desprezo às famílias, considerada a mulher como sua célula básica. Por isso, não seria ilegítima a utilização do sexo como critério de diferenciação, uma vez que a mulher seria eminentemente vulnerável no tocante a constrangimentos físicos, morais e psicológicos sofridos em âmbito privado.


No que diz respeito à constitucionalidade do art. 33 acima citado, o Pretório Excelso declarou a sua constitucionalidade uma vez que o diploma legal não teria criado varas judiciais, não teria definido limites de comarcas e nem teria fixada a quantidade de magistrados a serem alocados nos Juizados de Violência Doméstica e Familiar. Na verdade, a lei apenas facultou a criação desses juizados, em razão da necessidade de se conferir tratamento uniforme, especializado e célere, em todo território nacional, às causas sobre a matéria.


A ADI nº 4424 teve por finalidade a declaração de inconstitucionalidade dos art. 12, inciso I, 16 e 41, todos da Lei nº 11.340/06:

Art. 12.  Em todos os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, feito o registro da ocorrência, deverá a autoridade policial adotar, de imediato, os seguintes procedimentos, sem prejuízo daqueles previstos no Código de Processo Penal:

I – ouvir a ofendida, lavrar o boletim de ocorrência e tomar a representação a termo, se apresentada;

Art. 16.  Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público.

Art. 41.  Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995.


O STF aplicou a técnica da interpretação conforme a Constituição aos artigos acima citados com a finalidade de atribuir a natureza incondicionada da ação penal em caso de crime de lesão corporal, praticado mediante violência doméstica e familiar contra a mulher. A proteção à mulher seria esvaziada se a atuação estatal ficasse à critério da vítima. Desse modo, verificada a agressão com lesão corporal leve, a vítima não pode recuar e retratar-se em audiência especificamente designada com essa finalidade. A mulher, nesse contexto, seria hiposuficiente, no sentido de que a qualificação da ação penal como privada  contribuiria para a diminuição de sua proteção e manteria o quadro de violência, discriminação e ofensa à dignidade humana. A ação penal pública incondicionada nesses crimes possibilitaria à vítima romper com o estado de submissão.


Note que esse entendimento do Tribunal é limitado às hipóteses em que esteja caracterizada a violência doméstica e familiar contra a mulher. Outro crimes, como o de ameaça e os cometidos contra a dignidade sexual, continuam necessitando da representação.


O STF não se pronunciou expressamente sobre os efeitos da decisão de mérito que fixou uma interpretação conforme aos art. 12, inciso I, 16 e 41, todos da Lei nº 11.340/06. O silêncio do Tribunal significa que incidirá a regra geral do controle concentrado de constitucionalidade, ou seja, o efeito ex tunc (efeito retroativo). É como os citados artigos nunca tivessem existidos no ordenamento jurídico. Portanto, todas as negativas de representação assinadas pelas mulheres que foram vítimas de violência doméstica e familiar antes da decisão do STF são consideradas sem efeito, devendo a Autoridade Policial instaurar inquérito policial em relação a esses fatos, salvo se sobre eles incidir a prescrição.


Com base nesse fundamento, o Ministério Público do Estado de São Paulo (MPE-SP) propôs uma Reclamação (RCL 14350) diretamente no Supremo Tribunal Federal, em face do ato do juízo de direito da 1ª Vara Criminal da Comarca de Avaré, em São Paulo, que julgou extinta a punibilidade de um acusado de agredir a mulher em ambiente doméstico. O juiz decidiu que a vítima poderia se retratar e retirar a representação contra o agressor sob o argumento de que o delito havia se consumado antes do julgamento que firmou a constitucionalidade da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006).


Na reclamação, o MPE-SP afirma ser “insubsistente o entendimento judicial de primeiro grau que reputou inaplicável a eficácia vinculante e erga omnes (que se impõe a todos) a fato anterior às citadas decisões, posto que delas não consta ressalva nem modulação de efeitos”.


É importante lembrar que, em decisão recente, o STF consolidou mudança de entendimento no sentido de ser cabível a modulação dos efeitos da decisão em sede de embargos declaratório, sem que houvesse pedido do legitimado. Portanto, faz-se necessário acompanhar a Reclamação citada e verificar se o Tribunal materá o efeito retroativo da decisão na ADI nº 4424.

 

 

O colunista possui graduação em Direito pela Faculdade de Direito de Vitória (2004), bem como especialização em Direito Público (2006) e mestrado em Direitos e Garantias Fundamentais (2010) pela mesma instituição de ensino. Atualmente, é Delegado da Polícia Civil do Estado do Espírito Santo e autor de diversas publicações, como o livro “Controle de Constitucionalidade para Concursos”, pela Editora Juspodivm. O colunista possui experiência na área do Direito, com ênfase em Direito Público, atuando principalmente nos seguintes temas: estado democrático de direito, controle de constitucionalidade, inquérito policial e direitos e garantias fundamentais.


Coordena o blog “Controle de Constitucionalidade para Concursos” que é voltado para os dois livros já publicados com a ideia de manter os candidatos a concurso público atualizados sobre o tema. Quem desejar pode receber diretamente no email as informações do blog; para tanto, é necessário cadastrar o email no lado direito do blog.

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