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Vícios de higidez valorativo-probatória na cadeia de custódia

por Editoria Delegados

Por Adriano Sousa Costa, Mário Dermeval Aravechia de Resende e Hudson Benedetti

A utopia custodial e a flexibilização da perícia oficial

Com a vigência da Lei do Pacote Anticrime (Lei nº 13.964/2019) foram introduzidos dispositivos no Código de Processo Penal normatizando a cadeia de custódia. Ainda assim, o tema é explorado insuficientemente por nossa literatura.

Os dispositivos legais previstos no CPP (artigo 158-A e seguintes) tratam do escalonamento custodial, passando por conteúdos elementares como coleta, análise, preservação e acondicionamento do vestígio. Essa conceituação codificada, exaustiva e minudente, a qual, sinceramente, poderia ter sido relegada a um outro instrumento normativo posterior (decreto, por exemplo), acabou criando ambiente propício para reiterados pedidos de nulidade de processos judiciais por contaminação probatória.

A nosso ver, esse novel procedimento custodial, desenhado pelo legislador nos artigos 158-A e seguintes do CPP, não parece estar perfeitamente sincronizado com a realidade brasileira. Primeiro, porque é consabida a falta de cultura organizacional, dificultando a adesão massiva de policiais ostensivos a ditames burocratizados, principalmente quando não conseguem visualizar a sua efetividade prática; segundo, porque em um país em que há cerca de 50 mil homicídios ao ano não parece que os policiais consigam aplicar utopias probantes; terceiro, pela absurda lacuna de recursos humanos e materiais das corporações policiais e dos próprios institutos de perícia, os quais não receberam aporte estrutural para tanto.

E isso tudo é catalisado por um sistema persecutório no qual se coloca a perícia criminal como necessária ainda que em circunstâncias de fácil constatação e de possibilidade de prova por outros meios, tornando-a imprescindível mesmo quando nenhum tipo de conhecimento científico mais apurado seja necessário para chegar a uma conclusão lógica.

Por isso, reagindo a tais mandamentos, já se percebe um movimento jurisprudencial no sentido de flexibilizar a perícia oficial, mormente quando não seja necessário conhecimento científico específico e quando houver possibilidade de ser a circunstância demonstrada por outros elementos hábeis: constatação de dano (AgRg no HC 736.752/SP – STJ), escalada e/arrombamento para a qualificadora do crime de furto (AgRg no REsp nº 1.583.053/RS – STJ) e a aptidão lesiva de arma empregada no contexto do roubo (AgRg no AREsp 2.076.555 / RS – STJ).

Fórmula geral de purgação da ilicitude

Não há previsão legal expressa sobre a possibilidade de purgação dos efeitos decorrentes da quebra dessa cadeia de custódia (break in the chain of custody), nem muito menos se mencionam as formas de se superarem eventuais irregularidades formais. Na verdade, não existe consenso nem mesmo sobre os caminhos para se superarem as máculas que ocasionam a ilicitude real de uma prova.

E, se o legislador não o fez, o STJ foi impulsionado a construir um procedimento saneador padrão para casos semelhantes. A grosso modo, em estando preservada a fonte da prova, possível a purgação por um novo caminho (absolutamente independente). Essa nos parece a regra adotada, em homenagem ao artigo 158, § 1º, do CPP, incluído pela Lei nº 11.690/2008.

Vejamos o caso paradigmático sobre a repetibilidade da prova, no qual a 3ª Seção do STJ definiu que, ainda que o conteúdo dos aparelhos celulares tenham sido acessados sem ordem judicial por policiais militares em patrulhamento, ou seja, provas patentemente ilícitas, a prova poderia ser novamente produzida, desde que observada a chancela pela autoridade judicial. Até porque a fonte da prova estaria preservada, já que a apreensão do celular foi lícita; ilícita foi somente a sua análise.

6. O acesso a mensagens do WhatsApp decorrente de busca pessoal e sem autorização judicial constitui violação de uma garantia fundamental e, portanto, sua utilização possui a natureza de prova ilícita, e não de prova meramente ilegítima.

7. Sem embargo, ainda que excluída a prova ilícita, enquanto tal, é possível sua renovação, se, ainda existente e disponível no mundo real, puder ser trazida ao processo pelos meios legítimos e legais.Assim, muito embora a ilicitude imponha o desentranhamento das provas obtidas ilegalmente, nada impede seja renovada a coleta de dados (bancários, documentais, fotográficos etc), com a devida autorização judicial. Precedentes.
[…]

12. Sendo certo, porém, que a apreensão do celular do reclamante foi legal, por haver sido ele flagrado na posse de droga, não há prejuízo a que, realizada perícia sobre o aparelho, eventualmente se reinicie a ação penal.

13. Reclamação improcedente. Ordem concedida de ofício para reconhecer a nulidade do processo ab initio, sem prejuízo de que, realizada a perícia, desta feita por decisão judicial motivada, seja eventualmente apresentada nova denúncia e deflagrada outra ação penal. (Rcl 36.734/SP, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, 3ª SEÇÃO, julgado em 10/02/2021, DJe 22/02/2021)

O que importa dizer é que a fórmula acima não se amolda perfeitamente ao malferimento das regras custodiais, até porque são vícios de natureza diferente.

Consequências da quebra da cadeia de custódia: vícios de higidez valorativo-probatória

Percebe-se que, com tal leniência, o legislador acabou delegando à doutrina e à jurisprudência a tarefa de estabelecer a sanção pelo descumprimento do referido procedimento custodial e, principalmente, especificar quando a nulidade absoluta deveria ser necessariamente declarada. Surgiram, então, duas correntes:

1ª corrente: a consequência é a ilicitude da prova, com a sua exclusão, assim como das demais provas dela derivadas (sinonimiza quebra de cadeia de custódia com prova ilícita). Essa é a posição de Geraldo Prado, Gustavo Junqueira, Patrícia Vanzolini, Paulo Fuller e Rodrigo Pardal.

2ª corrente: a quebra da cadeia de custódia não leva, obrigatoriamente, à ilicitude ou à ilegitimidade da prova, devendo ser analisado o caso concreto (prioriza o livre convencimento do magistrado para sopesar a influência da quebra de cadeia de custódia sobre a higidez da prova). Essa é a posição de Guilherme Nucci e de Gustavo Henrique Badaró.

A discussão também foi enfrentada pelo STJ no julgamento do HC 653.515-RJ, no qual o referido Tribunal acolheu os argumentos da segunda corrente, conforme:

7. Mostra-se mais adequada a posição que sustenta que as irregularidades constantes da cadeia de custódia devem ser sopesadas pelo magistrado com todos os elementos produzidos na instrução, a fim de aferir se a prova é confiável. […]
[…]

12. Não foi a simples inobservância do procedimento previsto no art. 158-D, § 1º, do CPP que induz a concluir pela absolvição do réu em relação ao crime de tráfico de drogas; foi a ausência de outras provas suficientes o bastante a formar o convencimento judicial sobre a autoria do delito a ele imputado. A questão relativa à quebra da cadeia de custódia da prova merece tratamento acurado, conforme o caso analisado em concreto, de maneira que, a depender das peculiaridades da hipótese analisada, pode haver diferentes desfechos processuais para os casos de descumprimento do assentado no referido dispositivo legal.

A nosso ver, acertada a tese acolhida pelo STJ, uma vez que não há, com eventual quebra da cadeia de custódia, violação frontal a lei material com supedâneo constitucional ao ponto de justificar a nódoa total do elemento. Principalmente porque esse tipo de rigor procedimental não parece promover a aplicação justa da norma material; no máximo, afeta a credibilidade probante do elemento perante o julgador. Por isso nominamos isso de vício de higidez valorativo-probatória. Em semelhante sentido, a lição de Leonardo Barreto Moreira Alves:

“É dizer, a quebra da cadeia de custódia não resulta, necessariamente, em prova ilícita ou ilegítima, interferindo apenas na valoração dessa prova pelo julgador. A irregularidade na cadeia de custódia reduzirá a credibilidade da prova, diminuirá o seu valor, passando-se a ser exigido do juiz um reforço justificativo caso entenda ser possível confiar na integridade e na autenticidade da prova e resolva utilizá-la na formação do seu convencimento. Enfim, “a quebra da cadeia de custódia não significa, de forma absoluta, a inutilidade da prova colhida. É preciso não se esquecer que a cadeia de custódia existe não para provar algo, mas para garantir uma maior segurança — dentro do possível — à colheita, ao armazenamento e à análise pericial da prova […]. Desta forma, a análise do elemento coletado e periciado, se houver quebra dos procedimentos de cadeia de custódia, interferirá apenas e tão somente na valoração dessa prova pelo julgador” (Manual de Processo Penal. Salvador: Juspodivm, 2021, p. 754).

Por isso, o processo de análise do fiel cumprimento da cadeia de custódia volta-se novamente ao papel de destaque do magistrado, destinatário das provas, o qual sopesará a confiabilidade delas no desfecho do procedimento criminal. Isso porque, no Brasil, a autenticação da prova influi mais em sua valoração do que em sua admissibilidade.

E essa introdução sobre a cadeia de custódia se faz necessária para a discussão sobre a flexibilização de tal rito ao longo da evolução tecnológica do crime e da respectiva investigação.

Acesso às informações em celulares apreendidos

Na investigação criminal contemporânea, a apreensão de aparelhos celulares se tornou uma indiscutível fonte de provas, uma vez que os smartphones guardam, além de diálogos nos mais variados aplicativos, dados de localização, histórico de pesquisas, dados bancários, fotos, etc..

Neste âmbito, o apreensão e acesso legítimos aos dados telemáticos contidos nos aparelhos celulares dependem de autorização judicial, quando submetidos à cláusula de reserva de jurisdição.

Fato é que nem toda análise de dados contidos no aparelho celular precisa passar pelo prévio crivo do Poder Judiciário, mas somente aquelas que receberam especial proteção do ordenamento jurídico. Por essa razão, o acesso direto do policial à agenda de contato telefônicos do investigado pela autoridade policial não é eivado de ilicitude (REsp 1.782.386, STJ)

Por outro lado, acessos a informações protegidas constitucionalmente precisam de chancela judicial. Mas isso não indica que se necessite de uma ordem judicial específica para cada ação a ser realizada pelo policial. Por exemplo, uma vez decretada a busca e apreensão de aparelhos celulares não se faz necessária nova autorização judicial para acesso a dados sigilosos contidos nos aparelhos, como dados bancários, fiscais ou de diálogos em aplicativos de conversa. O celular, que é objeto da medida constritiva probatória, é um conjunto de firmware, hardware e dos respectivos conteúdos, ainda que gravados de sigilo constitucional. É inviável dissociar o conteúdo do aparelho, portanto.

O acesso ao conteúdo armazenado em telefone celular ou smartphone, quando determinada judicialmente a busca e apreensão destes aparelhos, não ofende o artigo 5º, inciso XII, da Constituição da República, porquanto o sigilo a que se refere o aludido preceito constitucional é em relação à interceptação telefônica ou telemática propriamente dita, ou seja, é da comunicação de dados, e não dos dados em si mesmos. III – Não há nulidade quando a decisão que determina a busca e apreensão está suficientemente fundamentada, como ocorre na espécie. IV – Na pressuposição da ordem de apreensão de aparelho celular ou smartphone está o acesso aos dados que neles estejam armazenados, sob pena de a busca e apreensão resultar em medida írrita, dado que o aparelho desprovido de conteúdo simplesmente não ostenta virtualidade de ser utilizado como prova criminal. V – Hipótese em que, demais disso, a decisão judicial expressamente determinou o acesso aos dados armazenados nos aparelhos eventualmente apreendidos, robustecendo o alvitre quanto à licitude da prova. Recurso desprovido. (RHC 75.800/PR, rel. ministro FELIX FISCHER, 5ª TURMA, julgado em 15/9/2016, DJe 26/9/2016)

Relatório policial e perícia

No âmbito dos tribunais superiores, em especial no STJ, debate-se sobre a necessidade, ou não, de perícia sobre todo e qualquer dado contido em aparelhos telefônicos apreendidos. Inclusive, se o acesso por membros da Polícia Judiciária gera a quebra de cadeia de custódia.

Tanto o trabalho do policial, como eventual exame pericial, fundam-se na mesma origem: o celular. Ele é a real fonte de prova.

Na prática, após apreensão do aparelho celular apreendido por ordem judicial, os dados passam para a análise da equipe de investigação. E o trabalho dos policiais é, materializado em relatório, descrever os dados contidos no aparelho.

E esse relatório de análise é relevante, pois permite a conjugação de informação que vão além do conteúdo do aparelho, pois, inclusive, menciona como o celular foi apreendido e quem era o responsável por ele. E esses dados contextuais são essenciais para a escorreita delimitação da cadeia de custódia, inclusive.

Além disso, não há qualquer previsão legal de uma necessária perícia criminal de extração e de análise de dados, sendo que a defesa de tal imprescindibilidade torna burocrático um procedimento investigatório frequentemente complexo, perpetualizando-o por vezes. E isso parece ofender ao mandamento de não procrastinação injustificada das investigações, consubstanciado no artigo 31 da Lei de Abuso de Autoridade.

O relatório de análise não demanda expertise informática da equipe de investigação, ainda que o tenha, tendo em vista que apenas sintetiza em um documento as informações relevantes para a investigação criminal, buscadas no aparelho celular (que é a fonte da prova).

Por isso, a nosso ver, a mera transcrição de troca de mensagens em relatório, inclusive com lastro em fotos da tela do aparelho celular, ou ainda, o uso de prints, como forma de ilustrar o diálogo entre o investigado e interlocutores, não é eivada de mácula, tal qual já decidiu o Superior Tribunal de Justiça, conforme:

O instituto da quebra da cadeia de custódia diz respeito à idoneidade do caminho que deve ser percorrido pela prova até sua análise pelo magistrado, sendo certo que qualquer interferência durante o trâmite processual pode resultar na sua imprestabilidade. Tem como objetivo garantir a todos os acusados o devido processo legal e os recursos a ele inerentes, como a ampla defesa, o contraditório e principalmente o direito à prova lícita. 2. No presente caso, não foi verificada a ocorrência de quebra da cadeia de custódia, pois em nenhum momento foi demonstrado qualquer indício de adulteração da prova, ou de alteração da ordem cronológica da conversa de WhatsApp obtida através dos prints da tela do aparelho celular da vítima. 3. In casu, o magistrado singular afastou a ocorrência de quaisquer elementos que comprovassem a alteração dos prints, entendendo que mantiveram “uma sequência lógica temporal”, com continuidade da conversa, uma vez que “uma mensagem que aparece na parte de baixo de uma tela, aparece também na parte superior da tela seguinte, indicando que, portanto, não são trechos desconexos”. 4. O acusado, embora tenha alegado possuir contraprova, quando instado a apresentá-la, furtou-se de entregar o seu aparelho celular ou de exibir os prints que alegava terem sido adulterados, o que só reforça a legitimidade da prova. 5. “Não se verifica a alegada ‘quebra da cadeia de custódia’, pois nenhum elemento veio aos autos a demonstrar que houve adulteração da prova, alteração na ordem cronológica dos diálogos ou mesmo interferência de quem quer que seja, a ponto de invalidar a prova”. (HC 574.131/RS, rel. ministro Nefi Cordeiro, 6ª Turma, julgado em 25/8/2020, DJe 4/9/2020). (AgRg no HC 752444 / SC AGRAVO REGIMENTAL NO HC 2022/0197646-2)

Conclusão: os riscos da banalização do conceito de prova ilícita

Esse debate ganha relevância acadêmica, pois a banalização do conceito de prova ilícita é um risco não só para a higidez da persecução penal, mas também para os seus próprios agentes. É que dar o rótulo de ilícito quando, a nosso ver, há mera irregularidade procedimental no desatendimento de rito custodial, ocasionando meros vícios de higidez valorativo-probatória, parece desproporcional.

Ainda que a Lei de Abuso de Autoridade seja de difícil aplicação prática nesse tipo de vício (pela necessidade de demonstração de dolo genérico e de dolo específico), uma interpretação outra pode desmotivar a Autoridade Policial a usar elementos que, ainda que por mera hermenêutica doutrinária ou jurisprudencial, sejam potencialmente taxados com o rótulo da ilicitude.

Art. 25. Proceder à obtenção de prova, em procedimento de investigação ou fiscalização, por meio manifestamente ilícito: Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa. Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem faz uso de prova, em desfavor do investigado ou fiscalizado, com prévio conhecimento de sua ilicitude. (Lei nº 13.869/2019)

Por isso, tão relevante que se compreenda que eventuais vícios gerados pela quebra da cadeia de custódia se vinculam mais ao conceito de irregularidade procedimental (pelo malferimento de ritos) do que de uma ilicitude real, que deve se restringir às ofensas mais graves frutos de violação de regras materiais e constitucionais.

 

Sobre os autores

Adriano Sousa Costa é delegado de Polícia Civil de Goiás, autor pela Juspodivm e Impetus, professor da pós-graduação da Verbo Jurídico, MeuCurso e Cers, membro da Academia Goiana de Direito e doutorando em Ciência Política pela UnB e mestre em Ciência Política pela UFG.

Mário Dermeval Aravechia de Resende é delegado-geral da Polícia Civil do Mato Grosso e atual presidente do Conselho Nacional dos Chefes de Polícia (CONCPC).

Hudson Benedetti é delegado de Polícia Civil de Goiás, professor de Direito Penal para carreiras policiais do curso CPPolícia, pós-graduado em Direito Administrativo pela Universidade Cândido Mendes e pós-graduado em Ordem Jurídica e Ministério Público pela Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (FespMDFT).

 

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