Nos últimos meses a polêmica sobre a legitimidade/legalidade de outras autoridades para conduzir investigações criminais veio à tona em proporções outrora ainda não vistas.
Isso se deve, em maior parte, à aprovação preliminar (em sede de comissão) do projeto de EC 37, que restringe a competência para investigações de crimes às policias civil e federal, dirigidas por delegados, e, por decorrência, mutila as investidas investigatórias de outros órgãos e instituições que vinham, sem o desejado profissionalismo, se aventurando nessa seara.
Delegado Henrique Trevizan, da PCMT
O Ministério Público com toda a sua influência, especialmente sobre a mídia, tem empreendido uma campanha de ridicularização do projeto de emenda, alardeando que resultaria em comprometimento da liberdade de investigação, supostamente, necessária ao regime democrático, e que reduzir a competência às polícias lhe impediria de garantir a aplicação da lei penal a quem a infringe.
Por sua vez, as policias civil e federal não têm a mesma força para expor os seus argumentos. Ao que parece, por dois motivos. Primeiro, porque a própria mídia se recusa a dar igual espaço, pois a polícia não goza do mesmo carisma, resquício de uma imagem ainda muito ligada à ditadura e à metodologia de trabalho pouco democrática daquela época. Depois, porque as instituições policiais, especialmente os seus dirigentes, diga-se: delegados, não tem as garantias de independência outorgadas aos membros do MP, o que, é fato, limita, e muito, sua liberdade de manifestação.
Mas o foco, a questão principal, não são as instituições, muito menos uma guerra de vaidades entre autoridades, mas sim o regime democrática e, principalmente, o cidadão.
Partamos de um pressuposto indiscutível: a investigação, especialmente a criminal, é invasiva e constrangedora. Inevitavelmente, expõe a intimidade e a vida do cidadão, colocando-o à mercê dos órgãos de Estado que a promovem.
É já é sabido, ensinou o mestre Geraldo Ataliba, que a pedra de toque que diferencia um estado democrático de um estado totalitário é o foco de interpretação que se dá ao seu sistema jurídico. Num estado totalitário prevalecem as razões de estado. Num estado democrático prevalecem as razões do cidadão, pois ele é o princípio e o fim em si mesmo da própria existência da sociedade e do estado.
Pois bem, considerando que o estado brasileiro é um estado democrático, antes de se perguntar qual das instituições está “certa ou errada”, o que seria considerar em primeiro plano as razões de estado, deve-se perguntar qual dos dois sistemas é mais democrático para cidadão em termos de garantia de direitos fundamentais.
Uma desgovernada ampliação da competência dos órgãos estatais pra investigar resulta, é claro, em sensível dificuldade, senão impossibilidade, de fiscalização.
Na esteira do que se disse acima, num estado democrático de direito os poderes de estado, especialmente os que constrangem os cidadãos, têm que, necessariamente, vir acompanhados de instrumentos que permitam o controle e a fiscalização por outros órgãos predispostos para tanto e pela própria população.
As polícias judiciárias são, é incontestável, uma das instituições estatais mais sujeitas a controle e fiscalização. Aliás, nenhum de seus procedimentos está imune ao crivo do próprio Ministério Público e do Judiciário. Todos os seus atos executórios devem ser homologados, sancionados e expostos a tais instituições. Os procedimentos iniciados devem obedecer a formalidades pré-estabelecidas legalmente. Suas autoridades e agentes são profissionalizados para investigar com cautela e respeito aos cidadãos. Submetendo-se, repita-se, a intenso e constante controle e fiscalização.
O Ministério Público, instituição imprescindível ao estado democrático de direito, foi criado com a precípua função de fiscalizar os órgãos estatais de execução, especialmente as polícias judiciárias. Os doutos promotores têm livre acesso às investigações e aos procedimentos instaurados nas delegacias. Têm poder de requisitar a instauração de inquéritos ou de pedir o seu arquivamento, e se manifestam sobre todos os pedidos de providências e prisões propostos pela autoridade policial. Nenhuma interceptação telefônica ou quebra de sigilo se concretiza sem a ciência e a fiscalização do parquet.
Sem descer à minúcia de citar diversos dispositivos, qualquer conhecedor, ainda que superficial, de nosso sistema jurídico de persecução criminal, pode concluir de uma simples análise sistemática, que a polícia judiciária foi criada para investigar e executar a lei penal no plano concreto e que o Ministério Público, nessa matéria, o foi para fiscalizar a atividade policial, propondo medidas e diligências, e para promover a persecução penal em juízo, sem a atribuição de dirigir o inquérito, competência exclusiva da autoridade policial, segundo a própria constituição da república.
Como se vê, há um órgão executor e um fiscalizador.
A pergunta que fatalmente vem na sequência é a seguinte: quando o Ministério Público se propõe a conduzir investigações (sem poder instaurar inquérito, atribuição exclusiva da autoridade policial), quem o fiscaliza?
Eis a pedra de toque.
Não há previsão legal de qualquer instituição com competência para fiscalizar as atividades dos nobres promotores. O controle é exclusivamente interno, isto é, interna corporis.
Aliás, não há sequer o que se controlar ou fiscalizar, porque o parquet não pode instaurar inquérito ou outro instrumento investigatório criminal formalmente previsto pela legislação nacional (diga-se: lei. E não alguma resolução ou norma interna da instituição).
E mais, até o controle popular e de outras instituições como a OAB restam dificultados ou impedidos, pois não há procedimento formal controlável e exposto à opinião pública.
Nem mesmo os instrumentos predispostos pela legislação para a efetividade da investigação são adequados a essas “investigações preliminares”. O leitor poderá se perguntar e analisar cada um deles e verá que todos foram criados para serem conduzidos pela autoridade policial num inquérito, sob a fiscalização, e não execução, do Ministério Público.
Dito isso, é forçoso retornar ao ponto de partida, e se perguntar sobre qual dos sistemas de investigação é mais democrático e respeitoso ao cidadão. A conclusão parece óbvia e passa pela pergunta que serviu de título a este texto: quem vigia o vigia?
Fato é que as instituições estatais, especialmente as incumbidas de fiscalizar, se apaixonaram pela idéia de investigar, pela repercussão e pelos frutos imediatos que traz, mas se esqueceram de respeitar a linha tênue que traça o limite entre controlar e executar com profissionalismo segundo o sistema jurídico vigente, tudo em respeito ao regime democrático de direito, cujo foco principal é o cidadão.
Sobre o autor
Henrique Trevizan é delegado da Polícia Judiciária Civil do Estado de Mato Grosso, titular da Delegacia de Comodoro.
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