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Por um controle democrático da Polícia Judiciária

por Editoria Delegados

Por Raquel Kobashi Gallinati


Por Raquel Kobashi Gallinati

Em nossa ordem constitucional, no Estado Democrático de Direito, a segurança figura como um direito fundamental, nos termos do artigo 5º, caput, e está estabelecida também nos artigos 6º, caput, na condição de direito social e no artigo 144, caput, todos da Constituição Federal, como dever do Estado, no sentido de Segurança Pública , direito e responsabilidade de todos, discriminando que caberá às polícias o seu exercício. Disto decorre que a Segurança Pública é tomada enquanto direito social, e não somente como prestação de serviço público ou manutenção da ordem pública. Conforme ensina Paulo Bonavides, toda interpretação dos direitos fundamentais vincula-se, de necessidade, a uma teoria dos direitos fundamentais; esta, por sua vez, a uma teoria da Constituição e ambas – a teoria dos direitos humanos e a teoria da Constituição – a uma indeclinável concepção de Estado, da Constituição e da Cidadania.

A juridicidade, a constitucionalidade e os direitos fundamentais são os três pilares de sustentação do Estado Democrático de Direito , e foram previstos pela Constituição Federal, nos artigos 1º a 3º, os quais afirmam princípios que consagram os fundamentos e os objetivos do Estado Democrático de Direito brasileiro. Cunha Martins afirma que o sistema processual de inspiração democrático-constitucional só pode conceber um e um só “princípio unificador”: a democraticidade; tal como só pode conceder um e um só modelo sistémico: o modelo democrático. Dizer “democrático” é dizer contrário de “inquisitivo”, é dizer contrário de “misto” e é dizer mais do que “acusatório”.

Nesse esteio, para afirmarmos a Polícia Judiciária no Estado Democrático, cabe lembrar que ele detém o poder político, no qual se inclui o monopólio do uso da força física, tendo por objetivos primordiais a manutenção da ordem social, o controle da violência e, assim, a manutenção da ordem pública. O Constituinte de 1988 foi além da ideia de três poderes para alcançar uma organização de órgãos autônomos reunidos em mais funções, partindo da ideia de que o Estado é uno, consequentemente seu poder também o é. Assim a máxima efetividade democrática é alcançada por meio da distribuição de funções por meio de seus órgãos.

Nesse contexto, a autonomia da Polícia Judiciária embasa-se nesta divisão de poder e é característica indispensável para o seu funcionamento, assim como a autonomia dos demais órgãos responsáveis pela execução das atividades estatais relacionadas à justiça e Segurança Pública, como o Poder Judiciário e o Ministério Público. Muito já se discutiu e firmada está a necessidade de um Ministério Público e de uma magistratura independentes para um sistema processual democrático, mas é preciso mais: há que se assegurar também a autonomia da Polícia Judiciária, como se verá. A cada um é dado sua parcela de deveres e responsabilidades, como de autonomia (representando o poder partilhado) para o cumprimento desses deveres.

Este poder e autonomia, contudo, devem observar a parâmetros determinados: a evolução dos direitos humanos – em especial os direitos previstos nas Declarações Internacionais de Direitos e positivados constitucionalmente – elevaram a Segurança Pública ao patamar de um direito (e não mais somente de uma prerrogativa do Estado), constituindo-se assim, também dever estatal, constando do rol dos direitos sociais de um grande número – para não dizer da totalidade – das nações do mundo, inclusive do Brasil. Esta condição tem em si imbricada a ideia de que também, a Segurança Pública tem por premissa o respeito aos direitos fundamentais e a dignidade da pessoa humana, que consubstanciam a primeira limitação ao exercício da atividade policial. No entendimento de Goldstein a polícia não está apenas obrigada a exercer sua limitada autoridade em conformidade com a Constituição e, por meios legais, aplicar suas restrições: também está obrigada a observar que outros não infrinjam as liberdades garantidas constitucionalmente.

O controle das atividades públicas pode ser exercido através de duas formas: 1- Prestação de Contas (Accountability): controle na obrigação dos integrantes dos órgãos públicos e representantes políticos de prestarem contas tanto às instâncias controladoras bem como à população das suas atividades com transparência. 2- Capacidade de Resposta (Responsiveness): respostas no sentido de esclarecer a forma como políticos priorizam as suas diferentes decisões de políticas públicas.

Além desta limitação constitucional, a atividade da Polícia Judiciária deve obedecer a uma outra limitação, a dos controles interno e externo. O controle interno é exercido por meio da ação das Corregedorias, e o externo pelo próprio Poder Judiciário, tanto pela fiscalização de sua atividade-fim pelo do Ministério Público, e o controle popular por qualquer do povo através das ouvidorias. Mister compreender que a autonomia “é identificada na regra geral de outorga da legitimidade pela sociedade durante a criação legislativa, neste sentido, o Delegado de Polícia é investido das prerrogativas do seu cargo e designado a decidir dentro dos estritos balizamentos legais”, segundo Guilherme da Cunha Werner6 . Para o autor “suas decisões são de cunho jurisdicional uma vez que, ao decidir aplica as normas legais, subsumindo-as ao caso concreto, as decisões proferidas encontram duplo suporte nos conhecimentos jurídico-legais e nas habilidades e experiências técnico-profissionais”.

Tratando-se então do binômio autonomia/controle, filiamo-nos ao entendimento de Roberto Maurício Genofre8 que crê que a exclusão do Poder Judiciário na investigação policial não é compatível com os preceitos maiores da legislação pátria, pois “qualquer diminuição do sistema de controle e fiscalização nesta seara representa uma perda substancial na luta pela defesa dos direitos impostergáveis do cidadão”: é com base nas premissas democráticas que se estrutura um sistema de investigação criminal eficiente e que tenha por objetivo primordial tornar efetivo o princípio da dignidade da pessoa humana.

A crítica que ora se estabelece é a do excesso de controle sobre a atividade da Polícia Judiciária que em sua função de investigar e de garantir direitos e garantias fundamentais por decisões próprias em seus contornos de responsabilidade criminal, pelos elementos verdade, democraticidade e constitucionalidade, principalmente em sua função de concessão de cautelar da liberdade, reconhecido pela CIDH como função materialmente judicial, ainda que emanado de autoridade administrativa, ao interpretar o artigo 7.5, “ou outra autoridade que exerce função judicial”, in verbis: “as ditas características não correspondem somente aos órgãos estritamente jurisdicionais, mas que as disposições do artigo 8.1 da Convenção se aplicam também as decisões de órgãos administrativos”, pois função fora da reserva absoluta da jurisdição.

Guilherme Cuinha Werner bem demarca em seus estudos que o apoderamento, a usurpação e a desestruturação são “a antítese da autonomia em suas dimensões administrativa, funcional e orçamentária, respectivamente”, apontando estes três paradigmas como sendo fulcrais para uma correta análise do binômio autonomia/controle da atividade da Polícia Judiciária, chamando a atenção para o fato de que cada Instituição deve cumprir com rigor o seu papel designado pela Constituição Federal e ser estruturalmente bem constituída. A Polícia Judiciária da União, neste contexto, deve ter autonomia administrativa, funcional e financeira, representam os pilares da sustentação de uma instituição republicana, eficiente, isenta e imparcial.

Indubitável que o Delegado de Polícia exerce verdadeiro poder decisório sobre os contornos da responsabilidade criminal, e para isso, após o processo de redemocratização, tornou mais do que ultrapassada a ideia estanque de divisão de poderes, não se confundindo com funções do Estado. E a esta, explicitamente disposta no artigo 2º da Lei 12.830/2013, que no microcosmo político democrático implica dizer em total possibilidade de exercer verdadeiro controle difuso de constitucionalidade e no plano internacional, para efetivação dos tratados de direitos humanos, controle de convencionalidade.

Segundo Werner o controle externo da atividade de Polícia Judiciária efetuado pelos representantes dos Ministérios Públicos Estaduais e da União, nos moldes como vem sendo desenvolvido, não atende aos preceitos constitucionais originariamente concebidos, uma vez que distorce a natureza da atividade da investigação em sua essência, fortalece a ingerência do Poder Executivo, afasta a apreciação do Poder Judiciário e, por conseguinte o controle de legalidade; e possibilita a invasão da competência constitucional por meio de usurpação de função e procedimentos de investigação seletiva.

Portanto o controle externo da polícia judiciária deve ser exercido respeitando os ditames constitucionais sob pena de comprometer a própria investigação criminal, a transparência, o tratamento igualitário às partes, e a estabilidade do Estado Democrático de Direito.

Referências

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo, Ed. Malheiros, 2003.

FABRETTI, Humberto Barrionuevo. Segurança pública: fundamentos jurídicos para uma abordagem constitucional. São Paulo: Atlas, 2014.

GENOFRE, Roberto Maurício. O papel do juiz criminal na investigação criminal. Boletim da Associação dos Juízes para a Democracia, n. 23, jan./mar. 2001.

GOLDSTEIN, Herman. Policiando uma sociedade livre. Tradução: Marcello Rollemberg. 9 ed. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 2003. Série Polícia e Sociedade, n.9. (Organização Nancy Candia).

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 8 ed., rev., ampl. e atual., São Paulo: Saraiva, 2007. PRADO, Geraldo,

MARTINS, Rui Cunha; CARVALHO, L.G. Grandinetti Castanho de. Decisão Judicial – A Cultura Jurídica Brasileira na Transição para a Democracia. Madrid, Barcelona, Buenos Aires, São Paulo: Marcial Pons, 2012.

WERNER, Guilherme Cunha. Isenção Política na Polícia Federal: A autonomia em suas dimensões administrativa, funcional e orçamentária. Revista Brasileira de Ciências Policiais. Brasília, v. 6, n. 2, p. 17-63, Edição Especial – jul/dez 2015.

Sobre a autora

Raquel Kobashi Gallinati é Presidente do Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo.

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