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O poder de julgamento disciplinar

por MARCELO FERNANDES DOS SANTOS
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JURÍDICO

Poder de julgamento disciplinar

Por Flávio Cristiano

 

JURÍDICO

 

Por Flávio Cristiano Costa Oliveira

Mestre em Direito Constitucional e Especialista em Direito Empresarial

 

 

 

Sumário: Introdução; 1. A organização do Estado Moderno; 2. A função típica do Poder Judiciário; 3. O Poder Executivo e sua função julgadora; 4. Uma visão crítica da atuação dos órgãos administrativos de correição; 5. Conclusões e Bibliografia.

 

 

 

Introdução.

Conforme o sistema de freios e contra pesos e o princípio da independência entre os poderes, o Poder Executivo é dotado do poder-dever disciplinar, ou seja, de julgar internamente as condutas de seus servidores públicos configuradoras de infrações disciplinares.

 

Mas essa função de julgar, exercida pelo Poder Executivo, é uma função atípica e comparada com a função jurisdicional, função típica do Poder Judiciário e de seus membros, levantam questionamentos que serão considerados no presente trabalho.

 

1. A organização do Estado Moderno.


O modelo de Estado Moderno, de orientação insofismavelmente liberal, que, historicamente, sucedeu o Estado Absolutista, era pautado nos seguintes dogmas, que ainda hoje são reproduzidos nas Constituições escritas: a) liberdade, igualdade e fraternidade e b) divisão, harmonia e equilíbrio entre os Poderes.

 

Na realidade, o Estado constitucional de direito fundamenta-se na idéia de unidade, pois o Poder soberano é uno e indivisível e o que existe é a distribuição das funções estatais : legislativa, administrativa e jurisdicional entre órgãos distintos.

 

O legislador constituinte originário atribuiu essas funções sem contudo caracterizá-las com a exclusividade absoluta.

 

Assim a função típica do Poder Legislativo é legislar e fiscalizar, mas também exerce as funções atípicas de administrar e julgar.

 

O Poder Judiciário exerce a função típica de julgar, mas também de forma atípica, legisla e administra.

Por fim, O Poder Executivo, cuja função típica é administrar, também exerce as funções atípicas de legislar e julgar.

 

2. A função típica do Poder Judiciário.


A expressão “Poder Judiciário” designa os órgãos judiciários constitucionais e os respectivos agentes públicos responsáveis pelo exercício da jurisdição, ou seja, da função típica e primordial de compor os litígios e de dizer o Direito.

 

Seus membros, os juízes, desembargadores e ministros, estão investidos de jurisdição, ou seja, do poder soberano de dirimir os litígios[1].

 

A jurisdição possui as seguintes características: a) unidade, b) secundariedade, c) imparcialidade, d) substitutividade e e) definitividade ou imutabilidade.

 

Dentre elas impende-nos destacar a imparcialidade, uma vez que deve ser uma atividade eqüidistante e desinteressada do conflito e que, em regra, só age quando provocada. Outrossim, realce-se a definitividade, pois os atos jurisdicionais são os únicos que podem transitar em julgado.

 

Ademais, a jurisdição é regida pelos seguintes princípios: a) princípio do juiz natural ou da investidura; b) princípio da improrrogabilidade, c) princípio da indeclinabilidade ou da inafastabilidade, d) princípio da inevitabilidade e e) princípio da indelegabilidade.

 

O princípio do juiz natural ou da investidura estabelece que a jurisdição só pode ser exercida por juízes ou órgãos colegiados cuja competência esteja prevista previamente na Constituição Federal. O princípio veda a criação de juízo ou Tribunal de exceção, ou seja, criado após a ocorrência do fato, especialmente para o julgamento de pessoas ou casos específicos.

 

Pelo princípio da improrrogabilidade os limites da jurisdição são estabelecidos pela Constituição Federal, devendo o legislador ordinário acatá-los.

 

Conforme o princípio da indeclinabilidade ou da inafastabilidade, a lei não pode excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão ou ameaça a direito, tampouco, pode o juiz deixar de proferir decisão alegando lacuna ou obscuridade da lei.

 

Consoante os princípios da inevitabilidade e da indelegabilidade, a jurisdição não depende da vontade das partes e nem o juiz pode dela dispor, respectivamente.

 

Além das características e dos princípios já retroditos, na Constituição Federal estão previstos outros mecanismos legais que almejam resguardar e garantir autonomia, independência e imparcialidade, tanto ao Poder Judiciário, enquanto instituição,quanto aos seus membros.

 

A doutrina costuma dividir tais garantias em institucionais( garantias aplicáveis ao Poder Judiciário) e garantias aplicáveis aos seus membros.

 

Sobre as garantias institucionais vale registrar que: a) aplicam-se à Instituição em sua plenitude e garantem a independência do Poder Judiciário em suas relações com os demais Poderes; b) fundamentam a concessão de autonomia funcional, administrativa e financeira ao Poder Judiciário; c) permitem que os Tribunais sejam dotados de autogoverno e, outrossim, elaborem suas propostas orçamentárias dentro dos limites estipulados conjuntamente com os demais poderes conforme a lei de diretrizes orçamentárias; d) possibilitam que as custas e emolumentos sejam destinados exclusivamente ao custeio dos serviços relacionados com as atividades judiciárias, conforme a emenda constitucional nº 45/04; e) o processo de provimento dos cargos de desembargadores, através do acesso dos magistrados de carreira, deve iniciar e ser concluído no âmbito do respectivo tribunal Tribunal de Justiça, sem a participação de quaisquer dos demais Poderes do Estado. Outrossim, a composição do Supremo Tribunal Federal, órgão de cúpula do Poder Judiciário, está prevista como cláusula pétrea, significando garantia de independência ao judiciário como um todo; f) a escolha dos dirigentes dos Tribunais, cuja função é de insofismável natureza governativa, compete aos membros do respectivo Tribunal, sem ingerências dos demais Poderes; g) a lei complementar que dispõe sobre o estatuto da magistratura é de iniciativa do Supremo Tribunal Federal; h) o subsídio dos membros do Poder Judiciário será fixado por lei federal ordinária, cuja iniciativa é do presidente do Supremo Tribunal Federal e i) compete privativamente aos Tribunais elaborar seus regimentos internos.

 

As garantias aplicáveis aos membros do Poder Judiciário são: a) irredutibilidade de subsídios, b) vitaliciedade e c) inamovibilidade[2].

 

Todas as fórmulas das garantias acima referidas, são de insofismável importância pois conforme Eugênio Raul Zaffaroni, citado pelo professor Alexandre de Moraes( 2007:485): “ a chave do Poder Judiciário se acha no conceito de independência”.

 

Dissertando sobre a amplitude da necessidade de proteção da independência ao Poder Judiciário, Carl Schmitt, citado pelo mesmo autor:

 

“ a utilização da legislação pode ser facilmente direcionada para a atingir os predicamentos da magistratura, afetando a independência do Poder Judiciário. Como auto-proteção, o próprio judiciário poderá garantir sua posição constitucional, por meio do controle judicial destes atos, de onde concluímos a ampla possibilidade de controle de constitucionalidade das leis ou atos normativos que desrespeitem o livre exercício deste Poder”( Moraes, 2007: 486).

 

Por derradeiro, nas palavras do próprio Alexandre de Moraes:“ as garantias conferidas aos membros do Poder Judiciário têm assim como condão conferir à instituição a necessária independência para o exercício da jurisdição, resguardando-a das pressões do Legislativo e do Executivo( 2007: 489).

 

Em remate: a função de julgar, seja típica ou atípica, ficaria esvaziada de sentido e propósitos, caso não se desse num ambiente onde estivessem presentes garantias de imparcialidade, autonomia e independência para os seus membros. Sobretudo quando este julgamento se dá fora da esfera jurisdicional.

 

Caso contrário, tal pretensão nem de longe teria aparência de jurisdição. Nem de perto teria a sombra de um julgamento.

 

3. O Poder Executivo e sua função  julgadora.


A função atípica julgadora do Poder Executivo está presente no poder-dever disciplinar que detém a Administração Pública de punir internamente os atos de seus servidores públicos configuradores de infrações disciplinares.

 

O regime disciplinar aplicável aos servidores públicos civis federais, por exemplo, encontra-se regido nos artigos 116 a 142 da Lei 8.112/1990.

 

A inobservância dos deveres funcionais, em tese, constitui infração disciplinar, acarretando para o servidor público as sanções disciplinares que vão desde uma simples advertência, até a pena máxima que e á demissão.

 

Os meios de apuração das infrações disciplinares praticadas pelos servidores públicos no exercício de suas atribuições são a sindicância e o processo administrativo disciplinar(PAD).

 

A sindicância é um instrumento mais rápido de apuração das infrações disciplinares cometidas pelos servidores. Ao final de uma sindicância pode resultar: a) arquivamento, b) aplicação direta de penalidades mais brandas, c) instauração de processo administrativo disciplinar, caso se verifique a hipótese de penalidade mais grave.

 

A instauração do processo administrativo disciplinar é efetivada pela autoridade competente, que designa a comissão de servidores públicos encarregados dos trabalhos de investigação, instrução e apresentação de relatório.

 

O julgamento do processo administrativo disciplinar, dependendo da gravidade da punição, poderá ser realizada por agentes políticos ou agentes administrativos.

 

Aos servidores públicos acusados no âmbito do processo administrativo disciplinar pelo menos em tese estão previstos a garantia do direito ao contraditório e da ampla defesa.

 

4. Uma visão crítica da atuação dos órgãos administrativos de correição.


Realizando um estudo analítico e comparativo entre o julgamento realizado pelos membros do Poder Judiciário, sua função típica, e o julgamento realizado no âmbito do Poder Executivo, função atípica, podemos elencar uma série de críticas.

 

A Administração Pública do Poder Executivo é chefiada com o auxílio de agentes políticos, Ministros e Secretários de Estado, que, através de critérios menos de mérito do que de interesses político-partidários, nomeiam os servidores públicos que irão ocupar os cargos de direção, chefia, assessoramento.

 

Assim, não se pode negar que o ambiente administrativo encontra-se inserido na questão política.

Os agentes políticos decidem, inclusive, quais servidores públicos serão lotados no órgão correicional, justamente o órgão responsável pela função atípica de julgar, ou seja, do poder administrativo disciplinar exercido sobre a conduta de todos os servidores públicos ali lotados.

 

Diferentemente do que ocorre da esfera jurisdicional, no âmbito do órgão correicional do Poder Executivo os membros  das comissões processantes são designados livremente, após a ocorrência do fato disciplinar, havendo assim, a possibilidade de indicações por encomenda e de ingerências externas.

 

Ao contrário do que pode aparentar, normalmente é vantajoso para o servidor público estar lotado no órgão correicional pelos seguintes motivos: a) estará livre das preocupações e dos desgastes relacionados com o exercício da atividade fim( segurança pública, saúde, educação e etc.); b) geralmente receberá uma verba pecuniária de natureza compensatória, seja uma gratificação, seja um adicional; c) ficará menos suscetível de envolver-se em episódios cotidianos disciplinares; d) passará a ser mais respeitado pelos demais servidores públicos, havendo inclusive o fenômeno da relativização da hierarquia funcional em relação ao cargo que ocupa e e) a natureza do trabalho correicional permite o prévio planejamento e a flexibilização do horário de expediente, sobrando tempo para a dedicação a atividades diversas, dentre elas, estudar para ser aprovado no concurso público dos sonhos.

 

Do exposto, os servidores públicos ali lotados, considerando os benefícios já apontados, tenderão a agir de forma a garantir suas posições institucionais e, dificilmente, terão aptidão para enfrentar as possíveis investidas do poder político no sentido de promover ingerências de natureza política.

 

Ademais não existe a previsão de formação de um repertório de decisões administrativas disciplinares, similar ao trabalho jurisprudencial, de forma a imprimir coerência, uniformidade e segurança jurídica. Nada impede, então, que casos semelhantes venham a ter interpretações e julgamentos diversos.

 

Também não se pode olvidar que não é obrigatória a exigência do bacharelado para que o servidor público tenha assento nas comissões processantes, o que compromete sobremaneira o efetivo respeito às garantias processuais fundamentais e ao próprio princípio da eficiência.

 

Apesar dos membros das comissões administrativas disciplinares se utilizarem do processo judicial e de suas normas como parâmetro, na realidade, são agentes desprovidos de garantias que tutelem efetivamente os princípios que normalmente se aplicam à Justiça e aos Juízes de Direito.

 

No processo judicial penal, por exemplo, de natureza predominantemente acusatória, existem órgãos distintos, independentes e autônomos, entre si, responsáveis pelo início, pela acusação e pelo julgamento. Acrescente-se que a pessoa do juiz também figura como uma espécie de mediador, mormente quando ocorre alguma ofensa a direito ou garantia fundamental do acusado. Por fim, o órgão responsável pelas investigações pertence a outro Poder, não se admitindo a futura condenação apenas com base nos trabalhos do órgão policial investigador.

 

No processo administrativo disciplinar a instauração, investigação, acusação e julgamento se dá no mesmo âmbito, ou seja, entre grupos de servidores públicos que gravitam em torno do agente político; que fazem parte do mesmo sistema disciplinar; que se revezam no exercício de tais funções, conforme as diretrizes superiores.

 

O agente político que, ao mesmo tempo, é responsável pelas lotações, pela distribuição das gratificações, dos adicionais, do pagamento de diárias, ajudas de custo, autorizações para participações em cursos, pelas concessões dos elogios, honrarias, merecimentos, pela carreira, enfim dos seus fiéis servidores.

 

Como se poder perceber, não existem garantias legais de um julgamento administrativo imparcial. Mesmo que se contra-argumente com a alegação de que os julgamentos são realizados pela autoridade instauradora ou pela autoridade política, mesmo assim, a atmosfera árida de garantias de isenção e imparcialidade ainda seria a mesma.

 

Outrossim, não exime de críticas o atual modelo, o fato do trabalho desenvolvido pelas comissões administrativas disciplinares estar sujeito ao controle finalístico, exercido por membros das carreiras jurídicas ligadas ao Poder Executivo.

 

Apesar da incontestável capacidade jurídica dos exercentes do mencionado controle finalístico, ainda, com relação a estes, também não se vislumbra a existência de reais mecanismos jurídicos de contenção e possíveis ingerências políticas.

 

Destarte, tal controle serviria apenas para ampliar a vulnerabilidade do trabalho administrativo correicional para o âmbito de uma realidade política e jurídica, o que seria duplamente desfavorável. Sem esquecer que a função administrativa, mesmo orientada pelos membros ocupantes dos cargos das carreiras jurídicas, é desempenhada no interesse do Estado, ou seja, no interesse público, que acaba coincidindo com vontade do seu ocupante, já a ação da jurisdição é ação desinteressada.

 

Como se não bastasse as razões acima elencadas, impende salientar que o Poder Executivo, em toda a história do Estado Moderno, mormente no sistema presidencialista, como o nosso, tem demonstrado ser o centro de gravidade da maioria dos desvios de poder.

 

Nas palavras de Paulo Bonavides:

 

“a) o ato imperial de dissolução da Constituinte de 1823 e outorga da Carta de 1824, por Dom Pedro I, baseada em princípios absolutistas e liberais; b) no primeiro reinado, duras repressões por parte de Dom Pedro I contra os patriotas da legitimidade, os integrantes da Confederação do Equador, símbolo de resistência ao despotismo; c) quatro ditaduras, uma das quais com duração de vinte anos, sete golpes de

Estado  ostensivos  –  o  da  implantação  da  República,  o  da  deposição  de Deodoro, o da queda de Washington Luis, o da derrubada de Getúlio e do Estado Novo, o da deposição de João Goulart, o do AI-5 e o da Junta Militar que outorgou a Emenda 1, sem falar de atos institucionais, fechamento e recesso do Congresso Nacional. (BONAVIDES,1996: 82).

 

Por tal razão, um processo administrativo disciplinar confeccionado por personagens indicados e vulneráveis frente às possíveis investidas do poder político, já em potência padece de insofismável inconstitucionalidade for ofensa aos princípios constitucionais que tutelam uma modelo de Administração Pública moral, impessoal, imparcial, eficiente e legal.

 

As opiniões recalcitrantes supedaneadas na defesa do atual modelo e do princípio da separação dos poderes, encontra oposição nos princípios jurídicos já referidos. Ademais no fato de que o Estado Moderno também éuma instituição sujeita ao processo de aperfeiçoamento histórico, o qual:

 

“ em sua concepção, o Estado Democrático de Direito, enquanto idéia reguladora, significa a submissão do Estado, do poder, à razão e não da razão ao poder… as decisões dos órgãos públicos não se justificam simplesmente em razão da autoridade que as dita, sendo ademais, necessário que o órgão em questão apresente razões intersubjetivamente válidas, à luz dos critérios gerais de racionalidade prática e dos critérios positivados no ordenamento jurídico”(Moraes98).

 

Ou como dizia Perelman: nenhum direito pode exercer-se de uma maneira irrazoável, pois o que é irrazoável não é Direito.

 

Seguindo a análise crítica, neste ponto é necessária a realização de uma comparação entre as normas penais, um dos subsídios do julgamento judicial penal, e as normas disciplinares que também servem de subsídio para o processo administrativo disciplinar.

 

O princípio da reserva legal determina que a lei penal seja precisa. Conforme tal princípio a conduta criminosa deve estar descrita na lei de forma detalhada, clara e específica.

 

Tipos extremamente vagos,imprecisos e indefinidos, serviriam para gerar insegurança jurídica, uma vez que forneceria ao aplicador da norma enorme poder discricionário,contrariando o espírito do Estado Democrático de Direito.

 

A configuração do crime exige perfeita subsunção entre a ação e todos os elementos e circunstâncias da conduta delituosa prevista abstratamente na lei criminal.

 

Conforme Capez:

 

“ Daí a impossibilidade de o Direito Penal atingir a ilicitude na sua totalidade e de preencher, através do processo integrativo da analogia, eventuais lacunas… O deletério processo de generalização estabelece-se com a utilização de expressões vagas e sentido equívoco, capazes de alcançar qualquer comportamento humano e, por conseguinte, aptas a promover a mais completa subversão no sistema de garantias da legalidade. De nada adiantaria exigir a prévia definição da conduta na lei se fosse permitida a utilização de termos muito amplos.”(655,656).

 

Normalmente, as normas penais conduzem a uma única solução juridicamente possível.

Em relação às normas disciplinares existe a presença dos chamados conceitos jurídicos indeterminados.

Estes exigem do aplicador um processo de valorização subjetiva, havendo a possibilidade de, diante de um caso prático, existirem mais de uma interpretação compatível com o Direito.

 

Por serem tipos abertos, envolvem grande discricionariedade, ademais seu preenchimento pode perfeitamente se dar conforme a força prevalente dos interesses políticos concorrentes na ocasião.

Considerando que, no âmbito dos órgãos correicionais administrativos, inexistem mecanismos jurídicos que tutelem a real autonomia, independência e imparcialidade de tais órgãos administrativos; considerando a a presença de tipos abertos ou conceitos jurídicos indeterminados nas normas disciplinares, isso aumenta, ainda mais, a situação de insegurança jurídica dos servidores públicos da Administração Pública do Poder Executivo.

 

Como exemplos de conceitos jurídicos indeterminados podemos elencar as seguintes expressões: “dignidade da função, presteza, eficiência, probidade ,moderação, discrição”.

 

Assim, infelizmente, existe a indesejável possibilidade de se eclipsar, sob o manto da discricionariedade clássica, perseguições pessoais, dificilmente detectáveis como desvio de poder ou abuso de poder.

Certas opiniões costumam contra-argumentar alegando que, devido a existência do princípio da inafastabilidade da jurisdição, as distorções e os excessos do  processo administrativo poderiam ser corrigidos pelo Poder Judiciário.

 

Entretanto, a concepção ainda majoritária disseminada no âmbito do Poder Judiciário, é no sentido de um controle apenas de legalidade do ato administrativo, em que a discricionariedade e o mérito do ato administrativo estaria imune à sindicabilidade judicial.

 

Ocorre que a doutrina brasileira e alienígena, fonte mediata do Direito, demonstram uma tendência de fortalecimento do ativismo judicial e um paulatino decréscimo da insindicabilidade judicial sobre o mérito administrativo do Poder Executivo. Esvaziando, assim, de todo o sentido a permanência do processo administrativo disciplinar nos moldes atuais.

 

Conforme Moraes:

 

“ A discricionariedade, entendida como área imune à sindicabilidade judicial, não mais comporta essa concepção, segundo a qual onde exista poder discricionário, nenhum controle do juiz é possível, ou sequer conceptível. Esta definição negativa de discricionariedade somente se enquadra no perfil do direito por regras, cujo contexto se reduzia ao princípio da legalidade administrativa, entendido como conformidade dos atos administrativos com as regras de direito, tidas como o único referencial da Administração Pública, absolutamente alheia a quaisquer outros vetores axiológicos. A concepção clássica de discricionariedade, traduzível na impossibilidade de controle judicial, concebida à época em que o Direito se identificava com a legalidade – direito por regras, precisa ser repensada e redefinida de maneira a adequá-la a nova compreensão contemporânea do direito por princípios o que implica também a redefinição de categorias afins, como o mérito do ato administrativo”(41-42).

 

Segundo Sérvulo Correia, citado por Moraes, resumindo o pensamento de Rupp: “ a matéria dos poderes discricionários pode ser pensada em termos de normatividade e é cognoscível através de meios de hermenêutica apropriados, especialmente o teleológico e o tópico”.

 

Complementando, afirma Moraes:

 

“ No que diz respeito ao controle jurisdicional de discricionariedade e da valorização administrativa dos conceitos indeterminados, as noções de proporcionalidade e razoabilidade representam, quanto aos parâmetros de sindicância dos atos administrativos não vinculados, o ponto comum de convergência do direito administrativo de diversos países da Comunidade Européia…É de maior alcance na Alemanha e Espanha, onde houve maior desenvolvimento doutrinário e acolhida jurisprudencial da doutrina dos conceitos jurídicos indeterminados, sem falar nos recentes estudos das teorias que tratam da redução da discricionariedade a zero, que começaram a justificar, nesses dois países, a possibilidade de substituição da decisão administrativa pela decisão judicial”(105).

 

Ademais, o estudo do processo administrativo disciplinar deve ser realizada à luz da Constituição Federal, dentro da perspectiva de compreender e repensar o Direito Administrativo a partir da Lei Maior.

Para esse mister as regras e princípios constitucionais exercem importantíssimo papel, seja na função de revisão dos antigos dogmas jurídicos, seja na função de orientação do processo de produção de novas fórmulas legislativas.

 

O intérprete e aplicador típico do estado Democrático de Direito , com fulcro nos princípios constitucionais, sempre busca uma interpretação criativa, atual e social.

 

O apego excessivo, insulado e desarrazoado às vetustas formas constantes em desatualizadas regras infraconstitucionais, reflete a ideologia do intempestivo modelo hermenêutico de orientação liberal em que o intérprete estava limitado pela própria boca da lei ou pelo sentido dado pelo legislador.

 

Dentre os princípios constitucionais que poderiam ser utilizados como ponto de partida para se repensar o atual modelo do processo administrativo disciplinar, podemos elencar: a) o princípio da impessoalidade que procurar garantir a atuação sem influências políticas, de forma neutra, imparcial, valorando objetivamente os interesses públicos e b) princípio da moralidade que se coaduna com o dever de honestidade, sem prejudicar os outros e dar a cada um o que lhe pertence por Direito. Tratar o administrado e o servidor público com franqueza, sem obtenção de vantagens pessoais, sem perseguição de opositores ideológicos. Enfim é agir com verdade, honestidade, lealdade e confiança.

 

5. Conclusões.


O princípio da legalidade não deve ser utilizado como justificativa para sacralizar o atual modelo de atuação dos órgãos correicionais do Poder Executivo.

 

O Estado Democrático de Direito, marcado pela liberdade do pensamento, por uma sociedade pluralista, pelo desenvolvimento nacional e científico, não se coaduna com a existência de dogmas jurídicos imutáveis.

Dogmas se bem servem aos propósitos das normas religiosas, aplicados à inteligência do mundo jurídico implicará na dissociação entre a realidade tangível e a norma.

 

Neste sentido são valiosas os ensinamentos de renomados expoentes da epistemologia jurídica.

Karl Popper(18-129-199) afirma que: “ a irrefutabilidade não é uma virtude e sim um vício inerente às teorias não científicas… A ciência está em constante transformação, ou, em permanente retificação, não podendo nenhuma teoria científica ser considerada como verdade absoluta, visto que uma teoria científica é verdadeira apenas enquanto aceita como tal… à medida que aprendemos com os erros cometidos, nosso conhecimento aumenta.”

 

Arnaldo Vasconcelos(20) diz que “ os conceitos são sempre parciais e aproximativos da essência das coisas. Conseguimos conhecer muitos e vários aspectos de uma coisa, porém jamais penetramos de modo definitivo na sua essência. Se tal fosse possível, esgotaríamos o conhecimento, por termos atingido seu fim.

Para Filho(111): “o caráter democrático da ciência está na possibilidade de qualquer um tentar e, eventualmente, demonstrar que até mesmo uma hipótese criada há gerações está errada.”

Por derradeiro, o pensamento de Hilton Japiassu(112): “ a epistemologia crítica nos ensina que, face à verdade, não podemos ter princípios absolutamente fundamentais, nem tampouco critérios que seguem inquestionáveis, permitindo-nos instalar-nos no conforto de um reino qualquer de segurança, que nada mais é que o repouso no sono dogmático.”

 

Os princípios epistemológicos retromencionados ajudam a descortinar o véu do idealismo que cobre a realidade sensível dos servidores públicos sujeitos ao Poder Disciplinar efetivado pelos órgãos correicionais da Administração Pública do Poder Executivo.

 

A função atípica de julgar exercida pelo Poder Executivo, um dos mecanismos do Estado Moderno, fruto do dogma da independência dos Poderes, é uma fórmula bastante antiga que precisa ser repensada.

 

Comparada com a função típica exercida pelo Poder Judiciário, cujos membros são investidos da contemporânea noção de jurisdição e das conseqüentes garantias funcionais e institucionais de imparcialidade, independência e autonomia; a função atípica disciplinar do Poder Executivo já apresenta sinais de superação e incompatibilidade com as necessidades hodiernas.

 

Considerando o atual sistema disciplinar, à cargo do Poder Executivo, que conta com a participação de agentes políticos e administrativos; desprovidos de mecanismos jurídicos que tutelem o risco da politização, a independência, autonomia e imparcialidade; considerando, ademais, que tal sistema se utiliza de normas disciplinares que contam com a presença de tipos abertos; é insofismável que tal realidade exige uma reforma premente, para que se garanta à sociedade que o bom e o mau servidor público, independentemente de sua opção política ou amizades, sejam julgados pelos mesmos critérios.

Como proposta de solução, reputamos razoável a adoção de uma legislação que, dentro do possível, aproximasse o processo administrativo do processo judicial, principalmente no que diz respeito ao aspecto institucional de seus membros julgadores.

 

Criar-se-iam  mecanismos jurídicos que modernizariam e garantiriam autonomia, independência, imparcialidade, eficiência, justiça e segurança jurídica aos servidores públicos.

 

Um novo modelo disciplinar aplicável ao Poder Executivo poderia se pautar nas seguintes idéias: a) previsão de um órgão correicional central, com atribuição para gerir o julgamento da conduta disciplinar de todos os servidores públicos pertencentes aos quadros da Administração do respectivo Poder Executivo; b) a previsão, na estrutura do órgão central, de outros órgãos menores responsáveis pelas atividades investigativas, pelo processo administrativo e pela formação acadêmica dos servidores públicos; c)os órgãos investigativos e os órgãos processantes estariam sujeitos a prévias regras que estabeleceriam sua composição, suas atribuições e critérios republicanos de divisão das tarefas, de acesso e de permanência; d) a composição dos órgãos privilegiaria a diversidade dos cargos e funções evitando a corporativismo e a formação de oligarquias administrativas julgadoras; e) o órgão central teria formação colegiada, e além da função instauradora e administrativa geral, funcionaria como instância recursal de segundo grau em relação às decisões dos órgãos processantes; f) ao órgão central seria destinada uma dotação orçamentária para garantir o desempenho de suas atribuições, uniformidade salarial entre seus membros, enquanto durasse o exercício da respectiva função correicional; g) os membros dos órgãos correicionais gozariam de estabilidade durante o exercíico da função e durante um prazo após a cessação da mesma; h) os membros do sistema correicional teriam plena autonomia funcional para trabalhar segundo a legalidade e o princípio do livre convencimento motivado.

 

Sob prisma diverso, caso não se opte pela eleição de tal proposta que, insofismavelmente, aproximaria o modelo correicional atual da esfera judicial; considerando a tendência atual ao ativismo judicial e a redução da discricionariedade administrativa a quase zero; outra possibilidade, não menos viável, seria a extinção do processo administrativo disciplinar nos moldes atuais e a criação de uma jurisdição especializada no âmbito do Poder Judiciário que em termos de mecanismos de contenção do Poder, já está bem mais evoluído.

 

6. Bibliografia.


ALEXANDRINO, Marcelo. Direito Administrativo. São Paulo: Editora Impetus, 2007;

BONAVIDES,  Paulo. A  Constituição  Aberta:  Temas  políticos  e constitucionais  da atualidade, com ênfase no Federalismo das regiões. São Paulo: Malheiros, 1996.

, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2004.

, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. São Paulo: Editora Malheiros, 2004.

____________, Paulo. Teoria do Estado. São Paulo. Editora Malheiros, 2004;

FILHO, José dos Santos Carvalho. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 22ª Edição, 2009;

MORAES, Germana de Oliveira. Controle Jurisdicional da Administração Pública. São

Paulo: Editora Dialética, 2004.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Editora Atlas S.A, 2007;

MEIRELES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo.Editora Malheiros, 2004;

MELO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Editora Malheiros, 36ª Edição, 2009;

PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di. Direito Administrativo. São Paulo: Editora Atlas, 22ª Edição, 2009;

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Editora Malheiros, 2007;

VASCONCELOS, Arnaldo. Temas de Epistemologia Jurídica.



[1] Litígios são os conflitos de interesses qualificados por uma pretensão resistida.

[2] A vitaliciedade significa que o juiz somente poderá perder seu cargo por decisão judicial transitada em julgado. Pela garantia da inamovibilidade, o magistrado somente poderá ser removido ou promovido por iniciativa própria, jamais por iniciativa de ato de membro do Tribunal a que pertença ou de outro Poder do Estado. A exceção prevista na Constituição é no caso de maioria absoluta do respectivo Tribunal ou do Conselho Nacional de Justiça, assegurada ampla defesa.

 

DELEGADOS.com.br

Revista Defesa Social

Portal Nacional dos Delegados

 

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