Por Eduardo Luiz Santos Cabette
Autor: Eduardo Luiz Santos Cabette, Delegado de Polícia aposentado, Mestre em Direito Social, Pós – graduado em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na pós – graduação do Unisal e Membro do Grupo de Pesquisa de Ética e Direitos Fundamentais do Programa de Mestrado do Unisal.
Mais uma vez é preciso tratar de uma questão que seria óbvia, mas que acaba necessitando de explicações devido à politização do mundo jurídico em seus mais altos escalões, bem como à escalada de um autoritarismo tupiniquim desajeitado.
Tramita pela Polícia Federal, sob a batuta do Ministro Alexandre de Moraes, um Inquérito Policial para apurar suposto crime de violação de segredo porque teria o Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, juntamente com o Deputado Federal, Filipe Barros Baptista de Toledo Ribeiro, divulgado informações que estavam sob sigilo judicial em outro Inquérito da Polícia Federal, que tratava de suspeita de adulteração de resultados em urnas eletrônicas. Desde novembro do ano passado a Delegada de Polícia encarregada do caso já indicava que Bolsonaro e Filipe Barros seriam suspeitos e, portanto, investigados pela suposta prática delitiva. [1]
A Delegada Denise Ribeiro afirmou que somente não indiciou o Presidente da República porque há divergências no STF sobre a Polícia Federal poder ou não indiciar políticos com foro por prerrogativa de função. Em suas palavras:
Os elementos colhidos apontam também para a atuação direta, voluntária e consciente de Filipe Barros Baptista de Toledo Ribeiro e de Jair Messias Bolsonaro, na prática do crime previsto no artigo 325, § 2º, c/c 327, § 2º, do Código Penal brasileiro, considerando que, na condição de funcionários públicos, revelaram conteúdo de inquérito policial que deveria permanecer em segredo até o fim das diligências. [2]
Nessas exatas circunstâncias o Presidente da República é convocado a prestar declarações/interrogatório na Polícia Federal a respeito do caso. O Presidente opta por não comparecer, mas enviar respostas por escrito. Ele poderia, de acordo com os direitos de qualquer investigado ou réu, simplesmente usar seu direito ao silêncio e/ou não comparecer ao ato sem prestar qualquer informação. No Processo Penal o ônus da prova incumbe à acusação e demais órgãos estatais envolvidos na persecução penal (vg. Polícia Judiciária).
Esses direitos do investigado ou réu estão dispostos na Constituição Federal, nos termos do artigo 5º., LIV e LXIII, bem como no Código de Processo Penal nos artigos 185 e 186. Não há qualquer dúvida a respeito da amplitude desses direitos na dogmática nacional, nem na jurisprudência, inclusive do STF. O interrogatório é instrumento de autodefesa e, portanto, seu uso com silêncio, sem silêncio, com silêncio parcial, não comparecimento para o ato etc., são opções de estratégia defensiva a serem sopesadas e decididas exclusivamente entre o investigado ou réu e seu defensor técnico. Não cabe a ninguém (Delegado, Juiz, Promotor…) deliberar ou imiscuir-se na estratégia defensiva, o que seria uma perversão e um abuso inquisitivo. Tanto é fato que o sistema no qual quando o interrogado ficava em silêncio se consignavam as perguntas feitas foi abolido pela reforma procedida pela Lei 10.792/03. Hoje não é dado sequer elaborar perguntas ao interrogando acaso ele manifeste o intento de silenciar, muito menos consigná-las no auto de interrogatório, mesmo porque o exercício desse direito não pode jamais ser interpretado em prejuízo do interrogado (inteligência do artigo 186, Parágrafo Único, CPP).
Não obstante a clareza solar dessa normatização, o STF vem insistindo, sempre que seja o caso do Presidente da República atual (pois isso não ocorria com os anteriores, v.g. Caso do Presidente Michel Temer no Inquérito STF 4621), que, embora sendo um cidadão brasileiro, submetido às leis pátrias, não conta com o direito de não comparecer a interrogatório e nem mesmo de prestar informações por escrito! Tal já se deu em decisão anterior do então Ministro Celso de Mello a qual já foi devidamente refutada em trabalho anterior. [3]
Esse posicionamento “sui generis” vai contra a própria posição firmada pela Corte Suprema que já reconheceu o direito ao silêncio e a não – autoincriminação como componente do devido processo legal no Brasil, abrangendo a proibição de condução coercitiva do investigado ou réu para ato de interrogatório, entendido este como opção de autodefesa, conforme já exposto acima. [4]
A negativa da prerrogativa de prestar informações por escrito se dá geralmente com base no fato de que isso somente pode ser conferido ao Presidente, de acordo com a letra da lei, na condição de “testemunha” (inteligência do artigo 221, § 1º., CPP). Embora a casuística do STF aponte várias vezes para a opção por uma interpretação analógica, como no caso acima citado do Presidente Michel Temer, sendo o tratamento diferenciado a Bolsonaro indicador de violação da igualdade, e pior, da imparcialidade, este certamente não é o ponto principal, embora relevante, a ser discutido. Fato é que induvidosamente, até mesmo pela negativa baseada na argumentação supra, o Presidente não seria inquirido na condição de “testemunha”, caso contrário teria a prerrogativa do artigo 221, § 1º., CPP de forma inegável. É evidente que ele seria ouvido na condição de investigado, prestando não “depoimento”, mas interrogatório ou, no mínimo, declarações como suspeito. Nessa situação o devido processo legal e a ampla defesa lhe reservam, mais do que o direito de, em deferência pessoal, ofertar informações por escrito, mas o direito amplo ao silêncio e também à negativa em prestar interrogatório. Trata-se, como já frisado, de ato de autodefesa, portanto, uma opção de estratégia defensiva. Em suma, a negativa da possibilidade de prestação de informações por escrito conduz inapelavelmente ao reconhecimento da condição de investigado, uma vez negada expressamente a condição de testemunha, e, portando, da não obrigatoriedade de comparecimento ou resposta a qualquer indagação das autoridades, às quais é reservado o “onus probandi” em sua integralidade quanto aos fatos imputados. Isso torna uma monstruosidade jurídica a insistência estéril em uma pretensa “ordem” de comparecimento, desprovida de qualquer logicidade, pois que infringente até mesmo dos chamados “Princípio de não contradição” e “Princípio do Terceiro Excluído” (ou bem o Presidente é uma testemunha e tem o direito de prestar informações por escrito; ou é um investigado e tem direito ao silêncio, a não prestar informação alguma e não comparecer ao interrogatório; impossível que as duas condições estejam presentes ao mesmo tempo, bem como a cogitação de uma terceira hipótese, “tertium non datur”).
Porém, o Ministro Alexandre de Moraes faz questão de ignorar o notório e pretender obrigar o Presidente, como não poderia fazer a ninguém, a comparecer a um ato de interrogatório policial. E o mais assustador é que, para tentar fundamentar essa absurdidade, lança mão de uma alegação sem qualquer lastro técnico, a qual seria de fazer enrubescer a um neófito das ciências jurídicas quando fosse corrigido por seu professor.
O Ministro alega, aparentemente sem qualquer constrangimento, que o fato de que anteriormente Bolsonaro tenha manifestado concordância em prestar declarações pessoalmente, configuraria “preclusão lógica” (sic)! Desse modo, se uma pessoa dissesse que iria prestar interrogatório, nunca mais poderia mudar de ideia por estratégia defensiva! Sim, foi isso que o Ministro escreveu em sua decisão, olvidando que o indivíduo somente presta interrogatório se quiser e que até mesmo durante o interrogatório pode deixar de responder a uma questão, respondendo a outras ou simplesmente decidir calar-se no ato após ter respondido a algumas questões. Em suma, a decisão de exercitar sua autodefesa é do réu, devidamente orientado pela Defesa Técnica, de mais ninguém. Não existe preclusão para o exercício do direito de defesa nessas circunstâncias!
Para que não haja dúvida quanto a essa teratologia jurídica perpetrada no bojo da decisão do Ministro Alexandre de Moraes, transcrevo o texto literalmente abaixo e indico a fonte para confirmação:
Não bastasse a ocorrência da PRECLUSÃO TEMPORAL, comportamentos processuais contraditórios são inadmissíveis e se sujeitam à PRECLUSÃO LÓGICA, dada a evidente incompatibilidade entre os atos em exame, consubstanciados na anterior aceitação pelo investigado em comparecer à sua oitiva em momento oportuno – tendo inclusive solicitado dilação de prazo – e na sua posterior recusa. [5]
A preclusão é a perda do direito de praticar um ato processual pelo decurso de prazo (temporal), pela prática de outro ato (consumativa) ou pela prática de ato contraditório ao que se pretenda praticar (lógica). Ora, a decisão de autodefesa a respeito de prestar ou não interrogatório policial e posteriormente, se for o caso, judicial, obviamente se pode dar a todo tempo até que o mencionado interrogatório seja marcado e realizado. E não existe limite temporal para o exercício de um ato de autodefesa, componente, juntamente com a Defesa Técnica, da ampla defesa. Sempre que essa atitude seja cabível poderá ser exercida, inexistindo também possibilidade de alegação de preclusão lógica ou mesmo consumativa. Digamos que um indiciado ou réu preste interrogatório. Em havendo um segundo ato de interrogatório determinado pelo magistrado, não há falar em preclusão lógica ou consumativa quanto ao exercício do seu direito ao silêncio ou mesmo de não participação do ato subsequente. Certamente se poderia falar em preclusão consumativa se, após prestar interrogatório, viesse o indiciado ou réu pedir que o ato fosse desentranhado dos autos ou coisa parecida, salvo no caso de prova ilícita (interrogatório mediante tortura, por exemplo). Mas, nem de longe esse é o caso em estudo, já que o ato de interrogatório ainda não se perfez e o implicado mantém íntegro seu direito ao devido processo legal e ampla defesa, os quais não se sujeitam a preclusão nessas condições. O que o Ministro Alexandre de Moraes cogita em sua decisão é algo totalmente desprovido de lastro técnico, chegando a ser assustador que uma “fundamentação” dessa estirpe seja encontrada numa decisão de um tribunal que é a última instância na organização judiciária brasileira.
Dada a absoluta inconsistência dessa decisão, embora emanada da mais alta Corte do país, deveria o Sr. Presidente simplesmente ignorá-la, enviando, se quiser, suas informações por escrito ou simplesmente comunicando a Polícia Federal que não comparecerá em exercício de seu legítimo direito ao silêncio e não – autoincriminação, deixando também de prestar qualquer informação que seja. Isso porque não se trata de ordem judicial embasada na legalidade, mas sim no autoritarismo, na falta da mais mínima técnica e na violação de normas constitucionais e ordinárias que regem o devido processo penal no Brasil.
Perceba-se que não se está aqui fazendo juízo de valor sobre a prática ou não de crime pelo Presidente e pelo Deputado envolvido, até mesmo porque se trata apenas de uma investigação policial, vigendo ainda a presunção de inocência. No decorrer das apurações, após o devido processo, se houve crime, caberão as medidas legais e suas consequências. A crítica se sustenta não no aspecto material do caso, mas procedimental, sendo de se indagar até quando serão essas distorções admitidas sem uma reação forte dos juristas brasileiros e da Ordem dos Advogados do Brasil. Sim, porque se até mesmo um Presidente da República pode ser vítima de perversões procedimentais a aviltarem seus direitos e garantias, o que pensar com relação aos demais cidadãos brasileiros submetidos a uma jurisdição que parece não se importar em “dizer o direito” como até etimologicamente seria sua função, mas que se empenha cada vez mais em “criar” uma força que se sobrepõe a qualquer noção de Direito.
REFERÊNCIAS
CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Declarações Pessoais do Presidente no Inq. 4831/DF: filigranas, erudição estéril, caprichos e vazio prático. Disponível em https://eduardocabette.jusbrasil.com.br/artigos/925436887/declaracoes-pessoais-do-presidente-no-inq-4831-df-filigranas-erudicao-esteril-caprichosevazio-pratico , acesso em 29.01.2022.
MORAES, Alexandre de. Inquérito 4.878/DF. Disponível em http://estaticog1.globo.com/2022/01/28/decisao__agravo.pdf?_ga=2.75951125.1268366440.1643478493-2013807125.1623952811, acesso em 29.01.2022.
PF diz que Bolsonaro cometeu crime ao vazar dados sigilosos de investigação. Disponível em https://www.istoedinheiro.com.br/pf-diz-que-bolsonaro-cometeu-crime-ao-vazar-dados-sigilosos-de-investigacao/ , acesso em 29.01.2022.
PF diz que Bolsonaro cometeu crime em divulgação de documentos sigilosos; ajudante de ordens é indiciado. Disponível em https://oglobo.globo.com/política/pf-diz-que-bolsonaro-cometeu-crime-em-divulgacao-de-documentos-sigilosos-ajudante-de-ordens-indiciado-25371784 , acesso em 29.01.2022.
PLENÁRIO declara impossibilidade de condução coercitiva de réu ou investigado para interrogatório. Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=381510, acesso em 13.09.2020.
[1] Cf. PF diz que Bolsonaro cometeu crime em divulgação de documentos sigilosos; ajudante de ordens é indiciado. Disponível em https://oglobo.globo.com/política/pf-diz-que-bolsonaro-cometeu-crime-em-divulgacao-de-documentos-sigilosos-ajudante-de-ordens-indiciado-25371784 , acesso em 29.01.2022.
[2] PF diz que Bolsonaro cometeu crime ao vazar dados sigilosos de investigação. Disponível em https://www.istoedinheiro.com.br/pf-diz-que-bolsonaro-cometeu-crime-ao-vazar-dados-sigilosos-de-investigacao/ , acesso em 29.01.2022.
[3] Cf. CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Declarações Pessoais do Presidente no Inq. 4831/DF: filigranas, erudição estéril, caprichos e vazio prático. Disponível em https://eduardocabette.jusbrasil.com.br/artigos/925436887/declaracoes-pessoais-do-presidente-no-inq-4831-df-filigranas-erudicao-esteril-caprichosevazio-pratico , acesso em 29.01.2022.
[4] PLENÁRIO declara impossibilidade de condução coercitiva de réu ou investigado para interrogatório. Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=381510, acesso em 13.09.2020.
[5] Cf. MORAES, Alexandre de. Inquérito 4.878/DF. Disponível em http://estaticog1.globo.com/2022/01/28/decisao__agravo.pdf?_ga=2.75951125.1268366440.1643478493-2013807125.1623952811 , acesso em 29.01.2022.
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