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O exercício da autodefesa e o crime de falsa identidade

por MARCELO FERNANDES DOS SANTOS

JURÍDICO
Exercício da autodefesa e o crime de falsa identidade

Por William Dal Bosco Garcez Alves

 

JURÍDICO

 

A apresentação de identidade falsa perante Autoridade Policial com o objetivo de ocultar maus antecedentes é crime previsto no artigo 307 do Código Penal e a conduta não está protegida pelo princípio constitucional da autodefesa, insculpido no artigo 5º, inciso LXIII, da Constituição Federal.

 

Com esse entendimento, o Plenário do Supremo Tribunal Federal reconheceu a repercussão geral[1] contida no Recurso Extraordinário 640139 e reafirmou a jurisprudência da Corte. Com essa decisão, os Ministros deram provimento ao recurso para restabelecer a condenação proferida pela Justiça do Distrito Federal por crime de falsa identidade.

 

Na ocasião, a Segunda Turma Criminal do Tribunal de Justiça do Distrito Federal havia afastado a condenação, proferida em primeiro grau, pelo delito de falsa identidade por entender que se tratava de atitude de autodefesa, que garante ao acusado o direito de permanecer em silêncio.

 

O Ministério Público do Distrito Federal argumentou haver repercussão geral do tema quanto a seus aspectos sociais e jurídicos. No mérito, questionou se o direito de autodefesa comporta interpretação constitucional extensiva à conduta do agente de atribuir-se falsa identidade por ocasião de prisão em flagrante, visando omitir antecedentes criminais.

 

O Ministro Dias Toffoli, relator do processo, manifestou-se pelo reconhecimento da repercussão geral do tema constitucional examinado por considerar a quantidade de causas similares que tramitam em todas as instâncias da justiça brasileira.

 

Na decisão, ele se pronunciou pela ratificação da jurisprudência consolidada do Supremo, no sentido de que o princípio constitucional da autodefesa não alcança aquele que atribui falsa identidade perante Autoridade Policial com a intenção de ocultar maus antecedentes, sendo, portanto, típica a conduta praticada pelo agente de crime previsto no artigo 307 do Código Penal.

 

Pois bem:

 

A decisão acima comentada é de suma importância. A relevância do tema constitucional deduzido, sob o amparo da repercussão geral, possibilitará a fruição de todos os benefícios da decisão proferida.

 

Já era tempo de tal matéria ser objeto de repercussão geral. A doutrina penalista diverge muito acerca do assunto, assim como os Juizes e Tribunais inferiores, os quais vêm proferindo decisões controversas e conflitantes entre si, gerando a multiplicação de processos e grave insegurança jurídica.

 

Além disso, o argumento de que é atípica a conduta daquele que usa documento falso ou se atribui falsa identidade diante da Autoridade Policial para fins de obstar prisão, ou evitar o conhecimento de antecedentes judiciais, em manifesto intuito de autodefesa, significa inverter os valores sociais e distorcer a interpretação legal dos dispositivos de lei suscitados.

 

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, infelizmente, possui várias decisões chancelando esse comportamento.

 

Inclusive, recentemente, a Segunda Câmara Criminal proferiu decisão onde a Relatora, Desembargadora Marlene Landvoigt, aludiu que “o agente preso em flagrante, ao atribuir-se identidade falsa perante a autoridade policial para ocultar seu passado criminoso ou sua condição de foragido do sistema prisional, não pratica o crime previsto no artigo 307 do Código Penal. Tal conduta não constitui ilícito penal, pois situa-se dentro do que se denomina atitude de autodefesa, com amparo inclusive em norma constitucional, ex vi do artigo 5º , LXIII, da CF/88” (Apelação Crime Nº 70029625274, Julgado em 28/06/2011).

 

No mesmo sentido, a Quarta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça Gaúcho proferiu decisão, no julgamento a Apelação Criminal 70028174829, aludindo que “o agente que, ao ser interpelado por autoridade policial, apresenta carteira de identidade falsificada, porque estava foragido do sistema prisional, não comete o crime previsto no art. 304 do CP, pois age em autodefesa, o que torna atípica a conduta. Absolvição decretada”. (Relator: Constantino Lisbôa de Azevedo, Julgado em 19/03/2009).

 

O Superior Tribunal de Justiça havia pacificado esse entendimento, estando consolidado que tanto a atribuição de falsa identidade, quanto à efetiva apresentação de documento falso, nas circunstâncias referidas, não constituiria ilícito penal.

 

De acordo com a jurisprudência classificada desta corte, “na linha da orientação pacificada nesta Casa, a conduta praticada pelo réu, de se atribuir falsa identidade perante autoridade policial, para ocultar antecedentes criminais, não configura o crime descrito no art. 307 do Código Penal, tratando-se de hipótese de autodefesa, consagrada pela Carta Magna” (HC 49036).

 

Na mesma esteira, fora proferida a seguinte decisão: “Uso de documento falso para ocultar a condição de foragido. Exercício de autodefesa. Absolvição. Consolidou-se nesta Corte o entendimento de que a atribuição de falsa identidade, visando ocultar antecedentes criminais, constitui exercício do direito de autodefesa” (HC 151470).

 

Como se vê, as lamentáveis decisões vinham consolidado o direito de os foragidos e acusados brincar e ludibriar o Estado. Agora, a decisão do Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário antes referido, sob amparo da repercussão geral, deverá sacramentar a matéria, impedindo decisões levianas, como as acima colacionadas.

 

Já estava na hora de tal medida ser adotada, uma vez que não é coerente, nem tampouco favorável à sociedade e aos órgãos de combate ao crime, lecionar a conduta criminosa prevista no art. 307 do Código Penal como exercício da autodefesa.

 

O direito fundamental do acusado consiste em “permanecer calado” para não se autoincriminar. Não há, de fato, nenhuma norma autorizando o acusado a induzir a Autoridade Policial em erro quanto a sua pessoa, muito menos apresentar documento falso com esse intento.

 

Qualquer interpretação em sentido contrário, salvo melhor juízo, está permitindo que o Direito dê apoio a ações imorais e ilícitas, o que vai de encontro aos fundamentos da ciência jurídica. O Direito não pode chancelar ações criminosas, nem os julgadores podem permitir isso através de decisões desfiguradas.

 

O “direito ao silêncio” ou o “direito de mentir”, que se extrai do brocardo latino nemo tenetur se detegere, somente é admitido para contestar os fatos imputados, que não se confunde com o direito de fornecer identificação falsa.

 

Nos termos do artigo 187 do Código de Processo Penal, infere-se que o interrogatório se constitui de duas partes: “sobre a pessoa do acusado e sobre os fatos”.

 

Esse direito de “permanecer calado”, assim, impera na segunda fase do interrogatório, ou seja, refere-se aos fatos (aqui, o increpado exerce seu direito de não autoincriminar-se). Entretanto, acerca de sua pessoa, não está o acusado autorizado a silenciar, nem tampouco mentir.

 

Nesse sentido, veja-se, é o magistério de Rogério Greco[2], para quem “o agente pode até mesmo dificultar a ação da Justiça Penal no sentido de não revelar situações que seriam indispensáveis à elucidação dos fatos. No entanto, não poderá eximir-se de se identificar. É um direito do Estado saber em face de quem propõe a ação penal e uma obrigação do indiciado/acusado revelar sua identidade”.


Com efeito, adotar o entendimento de que, no intuito de se autodefender, o acusado tem o direito de cometer crimes, a exemplo de falsidades e estelionatos, seria o mesmo, mutatis mutandis, que afirmar que o homicida que ocultar o cadáver não poderá ser processado por isso, posto que, ao ocultar o corpo de sua vítima, está no exercício do legítimo direito a autodefesa.

 

Ora, permanecer calado e não produzir prova contra si, de fato, é direito englobado pela não autoincriminação. Todavia, cometer crimes diversos para garantir a impunidade não. O exercício da ampla defesa não acoberta, tampouco justifica, a prática de crimes.

 

Acertou o Supremo Tribunal Federal ao reconhecer a repercussão geral da matéria e sedimentar decisão, a qual que deverá ser acatada pelos demais Tribunais e Juizes do país, em prol da sociedade e dos órgãos de combate ao crime.

 


[1] A Repercussão Geral é um instrumento processual inserido na Constituição Federal de 1988, por meio da Emenda Constitucional 45, conhecida como a “Reforma do Judiciário”. O objetivo desta ferramenta é possibilitar que o Supremo Tribunal Federal selecione os Recursos Extraordinários que irá analisar, de acordo com critérios de relevância jurídica, política, social ou econômica.

O uso desse filtro recursal resulta numa diminuição do número de processos encaminhados à Suprema Corte. Uma vez constatada a existência de repercussão geral, o Supremo Tribunal Federal analisa o mérito da questão e a decisão proveniente dessa análise será aplicada posteriormente pelas instâncias inferiores, em casos idênticos.

A preliminar de Repercussão Geral é analisada pelo Plenário da Corte, através de um sistema informatizado, com votação eletrônica, ou seja, sem necessidade de reunião física dos membros do Tribunal, diz-se, nesses casos, “plenário virtual”.

[2] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial. Rio de Janeiro: Editora Impetus, 2007. Volume 1.

 

 

William Dal Bosco Garcez Alves é delegado de Polícia.

 

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