O Ministério da Justiça e Segurança Pública criou um grupo de trabalho para discutir a implementação, em âmbito nacional, do Termo Circunstanciado de Ocorrências pelas Polícias Militares (TC/PM). Recentemente, o tema motivou reações e abriu crise com a Polícia Civil em São Paulo.
Em ofício, assinado pelo secretário nacional de Segurança Pública, Mário Sarrubbo, o governo federal já prevê realizar a primeira reunião, em Brasília, nos dias 3 e 4 de junho.
No documento, indisponível para ser consultado em meios públicos, a pasta registra que o grupo de trabalho foi formado para tratar do Projeto de Incremento das Capacidades de Atendimento das Polícias Militares.
A proposta seria voltada ao “aprimoramento do atendimento a infrações de menor potencial ofensivo por meio do registro de termos circunstanciados de ocorrência”. Segundo o ofício, as pautas incluem “treinamento e qualificação” de PMs, além de “integração de sistemas e de articulação interagências”.
Termo Circunstanciado de Ocorrência
O Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO) é feito em casos de contravenção penal ou de crimes com pena máxima de até dois anos de detenção. Nessa lista, estão delitos como lesão corporal, posse de droga, esbulho possessório (invasão de propriedade) e desobediência.
Para o grupo de trabalho, Sarrubbo convidou representante da Federação Nacional de Entidades de Oficiais Militares Estaduais (Feneme). A entidade é abertamente favorável ao aumento de poder das PMs no país.
O coronel Marlon Jorge Teza, presidente da Feneme, afirma que “já tem conversado” com Sarrubbo sobre o assunto há pelo menos dois meses. Segundo relata, o secretário nacional de Segurança Pública participou, em meados de março, de um congresso de oficiais militares em Florianópolis (SC).
No grupo de trabalho, o coronel afirma que a Feneme vai apresentar os seus 30 enunciados, espécie de diretriz para lavratura do TC/PM, aprovados no congresso de março. Nota-se o surgimento de juristas militares.
Uma dessas instruções da Feneme afirma: “Quando o autor da infração de menor potencial ofensivo for autoridade com foro por prerrogativa de função, deve-se registrar a ocorrência, sem a lavratura do termo de compromisso, e encaminhá-la ao órgão competente, via Comandante da Organização Policial Militar”.
Já outro enunciado diz: “Na hipótese de requisição de diligências pelo Ministério Público ou Poder Judiciário, esta deverá ser cumprida, preferencialmente, pelo responsável pela lavratura do Termo Circunstanciado”.
Diligências “investigativas” realizadas por policiais militares
O Termo Circunstanciado de Ocorrência tem natureza jurídica de procedimento de investigação criminal com o objetivo de produzir coleta de informações, oitivas de pessoas, apreensões de objetos, realizações de perícias, requisições administrativas e demais diligências necessárias para identificação de crimes, de autoria e nexo de causalidade. O TCO possui atos de polícia judiciária para apurar infrações penais, com a análise jurídica realizada por um delegado de polícia, possuidor de cargo com exigência de investidura a condição de bacharel em Direito, com formação jurídica e aptidão para promover o condicionamento de elementos necessários para fomentar possível ação penal suscitada pelo Ministério Público.
A possibilidade de PMs cumprirem diligências, o que extrapola a mera lavratura do TC/PM, foi outro ponto que motivou protestos contra o plano de empoderar policiais militares em São Paulo. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) chegou a classificar a medida como “inconstitucional”.
Delegados também viam invasão de atribuições e “usurpação de função pública”. Por causa das reações, o governo Tarcísio de Freitas (Republicanos) decidiu recuar da proposta.
Na manhã desta quinta-feira (16/5), após a publicação desta reportagem, o Ministério da Justiça enviou um posicionamento sobre a tema.
A nota afirma que “o Grupo de Trabalho não foi institucionalizado”, mas que “uma primeira reunião para o aprimoramento do projeto ocorrerá no início de junho”.
No texto, o órgão, chefiado pelo ex-ministro do STF Ricardo Lewandowski, afirma que o objetivo da proposta é “qualificar as capacidades de atendimento das polícias militares a partir de investimentos do governo federal junto aos Estados e ao Distrito Federal. Para tanto, serão realizadas discussões informadas por evidências da literatura acadêmica e da realidade empírica dos policiais e da comunidade”.
A nota afirma ainda que o grupo vai começar “analisando as práticas correntes e propor melhorias no atendimento das polícias ostensivas, desde o registro de ocorrências, avaliação dos serviços policiais, qualificação dos dados e análise criminal, além de estratégias de prevenção e aproximação comunitária”.
A resistência em São Paulo realizada por policiais civis contra a confecção de TCO por policiais ostensivos destaca a importância do tema que desconstitui as alegações dos militares de que a medida ajudaria a “desafogar a Polícia Civil”, “acelerar o serviço da Polícia Militar” e “evitar a revitimização”.
Ora, existem demandas altíssimas de processos judiciais que promotores de justiças e juízes de direito não conseguem “desafogar” por causa de milhares de processos judiciais e, não por isso, delegados de polícia poderiam ser usados para emitir denúncias ou sentenças com o fim de “desafogar o Ministério Público ou o Poder Judiciário”.
A questão não envolve situação de construção de atos em face de inventada carência de serviço ou de quantitativo escasso de policiais civis e federais, mas, sim, de respeito à legalidade, à atribuição investigativa da polícia judiciária e o cometimento de usurpação de função pública por policiais que deveriam atuar para prevenir os crimes.
As Polícias Civis e Federal não utilizam seus agentes para realizar policiamento ostensivo com o objetivo de “desafogar” o único trabalho que não é executado de forma satisfatória e razoável pela Polícia Militar: atividade ostensiva e preventiva. Polícia Militar que quer “desafogar” o trabalho da Polícia Civil pode “afogar” o policiamento ostensivo.
Os §§ 1º e 4º, do art. 144, da Constituição Federal, destacam, de forma clara, precisa e direta, que a Polícia Civil e a Polícia Federal, são os únicos órgãos de segurança pública com “competência” para apurar infrações penais, ou seja, para investigar crimes comuns, crimes de menor potencial ofensivos e os demais crimes específicos de cada órgão policial judiciário. Quanto à Polícia Militar, segundo o § 5º do mesmo artigo da CF, cabe o policiamento ostensivo; e só!
A Constituição Federal recebeu, recentemente, uma atualização hermenêutica, deixando retrógado o anterior entendimento do STF sobre a ‘impressão’ de TCO por policiais ostensivos que deveriam desempenhar suas atividades preventivas, e não de forma repressiva. Trata-se da Lei Orgânica Nacional das Polícias Civis – Lei 14.735/23, de 23 de novembro de 2023. Essa nova norma, em seu art. 6º, reforçou o caráter constitutivo da investigação de crimes comuns como atributo típico de polícia judiciária civil, e não militar.
Não existe na Constituição Federal exposição normativa que impute ao policial militar ou qualquer outro policial ostensivo, o poder de investigar e de apurar infrações penais. O TCO não é um boletim de ocorrência policial, é um procedimento de investigação de infrações penais. Querer incluir, abruptamente, usurpando a função de investigar crimes comuns, os militares como personagens da persecução penal, desconfigura integralmente os princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito, que deve respeito à Carta Magna e às leis. O servidor público, e o policial militar é um, só pode agir de acordo com a lei, e não há lei que discipline essa liturgia de investigar ao policial “ostensivo”.
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