Início » Metodologia investigatória na perspectiva de gênero, desenvolvida no Estado do Piauí II

Metodologia investigatória na perspectiva de gênero, desenvolvida no Estado do Piauí II

por Editoria Delegados

 

5.3 COMPONENTE FÁTICO – RECOGNIÇÃO VISUOGRÁFICA

 

É necessário afirmar, que é a partir do local do crime que se alcança o suprassumo dos elementos preliminares norteadores da investigação policial, isto é, uma leitura plena, desprendida de estereótipos e preconceitos, com sensibilidade para perceber as nuances necessárias a cada caso avaliado, poderá fazer significativa diferença na concretude dos trabalhos desenvolvidos.

Conforme estabelece Marco Antonio Desgualdo, em sua obra Recognição Visuográfica e a Lógica na Investigação Criminal, (2006, p. 24), a Recognição Visuográfica é a semente da futura investigação, depois de formalizada, levando-se em consideração o seu dinamismo e praticidade.

Tal documento traz em seu bojo desde o local, hora, dia do fato e da semana, como também condições junto às testemunhas e pessoas que tenham ciência dos acontecimentos. Enlaça ainda à colação minuciosa, observação sobre o cadáver, identidade, possíveis hábitos, características comportamentais sustentadas pela vitimologia, além de croqui descritivo, resguardados os preceitos estabelecidos no art. 6., I do Código de Processo Penal.

Conforme citado por Desgualdo, (Ano, p. 27), a Recognição é dinâmica, isto quer dizer que ela acrescenta detalhes e traz certezas sobre o criminoso, seu perfil e o local do crime, além de mostrar também o provável trajeto da chegada e de fuga do autor, se estava a pé ou de veículo automotor. Ademais, o mesmo autor estabelece ainda que o ângulo do tiro é importante, pois dirá se o atirador é perito em armas ou se agiu por meio de impulso ou ainda por distorção emotiva.

Na verdade, Desgualdo (2006) arremata suas conclusões fáticas sobre o crime atestando que a recognição é a reconstituição do todo por fragmento ou parte conhecida, que embora esteja em fase de aprimoramento já está sendo aceita e é um passo a mais no estabelecimento da verdade real.

Ressalte-se que, segundo o Caderno Temático de Referência de Investigação Criminal de Homicídios (2014, p. 37), a etapa investigação preliminar é todo o procedimento de registro e análise de elementos objetivos e subjetivos, realizados na cena do crime, imediatamente após a chegada dos primeiros policiais ao local. (BRASIL, 2014).

Além disso, conforme foi mencionado no Caderno Temático mencionado, na etapa investigação preliminar, a cena do crime pode ser a única oportunidade de coletar vestígios absolutamente essenciais à plena elucidação do delito.

Os vestígios físicos coletados em cena de crime de homicídios possuem o potencial de orientar toda a investigação. A plena realização deste potencial, no entanto, depende inteiramente das providências tomadas pela polícia já nos primeiros instantes em que ela toma conhecimento do crime e se dirige ao local dos fatos. (BRASIL, 2014).

Em que pese à praxe policial despertar nesses profissionais, em decorrência do exercício investigativo diário, uma expertise que garante um efetivo levantamento de dados que orientarão o desenvolvimento das ações subsequentes daquele procedimento administrativo, é necessário enfatizar que, em se tratando de um crime motivado por razões de gênero, é substancial a instalação da lente de gênero para o vislumbre desta perspectiva.

Note-se que, exatamente como apontam as Diretrizes Nacionais, (ano, p. 75), com esse procedimento, é possível fazer a retomada de duas características das mortes violentas por razão de gênero: 1ª) essas mortes, em regra, não são episódios isolados da vida de uma mulher, já que é comum no local de feminicídio decorrente da violência doméstica e familiar; 2ª) essas mortes simbolizam grave violação dos direitos humanos e podem ocorrer em contexto de vulneração de outros diretos humanos.

A coleta desses dados se dá através de entrevistas realizadas com familiares e vizinhos que constatam, por várias vezes, que ouviram ou até mesmo presenciaram cenas de violência constante, que sequer chegaram ao conhecimento das autoridades constituídas.

Portanto, foi nesta ótica que se propôs, através deste protocolo, a elaboração de um formulário, o qual funciona como roteiro, para orientar os trabalhos executados no local de crime, provocando a atenção dos policiais, na perspectiva de gênero, para todos os detalhes transmissores da compreensão da motivação daquela prática, permitindo a verificação da existência da misoginia, desprezo ou discriminação à condição de mulher, sentimentos sexistas de posse ou dominação em face daquela.

Conforme consta na pagina 7 da Apostila, foram utilizados especialmente aportes teóricos da Polícia Civil de São Paulo, notadamente a obra Recognição visuográfica é a lógica na investigação criminal, de Marco Antonio Desgualdo, e da Polícia Civil do Piauí – Protocolo Investigatório do crime de Homicídio, elaborado pelo Núcleo de Inteligência da SSP/PI. Desse modo, considerando o modelo tradicional de investigação de assassinatos utilizado pelas polícias brasileiras, construiu-se uma nova metodologia que procurou adicionar uma nova visão em todos os documentos a serem elaborados pela polícia civil nos casos de Feminicídio, adequados também à realidade local. O referido Protocolo é composto por sete circunstâncias:

1) Tempo: data e hora do fato e da comunicação, velocidade da dinâmica do atendimento policial;

2) Lugar: isolamento e preservação do local de crime, ampliação territorial e garantia da dignidade dos envolvidos;

3) Modo: protocolo da cadeia de custódia dos instrumentos e/ou meios apreendidos;

4) Protagonistas: identificação, qualificação, condição das vítimas, autoria conhecida, autoria desconhecida, suspeitos, relações subjetivas;

5) Forma: meio insidioso, cruel, intenso sofrimento físico e/ou psicológico, presença de pessoas vulneráveis;

6) Ações: transcorridas e executadas;

7) Consequências: danos graves.

 

Imagem V: Protocolo II – RECOGNIÇÃO VISUOGRÁFICA

 

Fonte: Núcleo de estudos e pesquisa em violência de gênero, 2017.

 

5.4. COMPONENTE PROBATÓRIO – ATOS INVESTIGATÓRIOS

 

O componente probatório tem o condão de desnudar a materialidade delitiva através dos elementos indiciários, os quais poderão ser qualificados como prova na fase processual. Eles devem corroborar, portanto, com os elementos fáticos e jurídicos resvalando na definição cabal da ocorrência do fato e dos elementos da conduta típica, com a consequente responsabilização criminal.

Harmonizando com a exposição trazida na página 9, da Apostila, temos que a consecução desse objetivo se dará por meio dos discursos oficiais e não oficiais angariados no decurso das atividades ordinárias atreladas ao inquérito policial, sendo que os discursos oficiais são todos os documentos institucionais, produzidos pelos órgãos oficias da Polícia Civil, tais como, laudos produzidos pelo SAMVIS (violência sexual) e pela Polícia Técnica Científica (mídias, áudios, local de crime, cadavérico, lesão corporal, psíquico), recognição visuográfica e registros anteriores, enquanto que os discursos não oficiais correspondem às declarações das vítimas e dos informantes, as oitivas das testemunhas e os interrogatórios dos investigados.

Essa etapa se perfaz com o carreamento de todos os elementos produzidos durante a formalização do inquérito policial, como o que o Caderno Temático de Referência de Investigação Criminal de Homicídios (2014, p. 37) intitulou de investigação de segmento, definida como a etapa que abarca os procedimentos investigativos e cartoriais realizados pela polícia, desde o encerramento dos trabalhos preliminares até a conclusão do inquérito (resultando, preferencialmente, na completa elucidação do crime e de suas circunstâncias, com obtenção de autoria e materialidade) (BRASIL, 2014).

Durante a elaboração desses documentos, é necessário observar se podem ser captados elementos que denotem a existência de violências anteriores entre os envolvidos, além de outras informações a respeito do ciclo de convivência familiar da vítima e do autor do fato, ou mesmo de registros ou informações de atendimentos ou buscas a outros órgãos institucionais e a motivação dessas buscas, bem como se o investigado já havia sido apontado como suspeito ou autor de outra prática de violência de gênero e, finalmente, necessário saber se as vítimas primárias ou secundárias foram bem assistidas e receberam as orientações pertinentes.

Conforme o Caderno Temático de Referência de Investigação Criminal de Homicídios intitulou de investigação de segmento (2014, p.53), diferentemente de outros tipos de investigação, a apuração de um homicídio precisa mergulhar fundo nos diversos âmbitos da vida pessoal, sentimental, familiar e, em alguns casos, criminosas de um determinado número de pessoas para, deste emaranhado, aparentemente desordenado de circunstâncias, extrair uma história cujo último capítulo é o assassinato da vítima (BRASIL, 2014).

 

Imagem VI: Protocolo III: Atos Investigatórios

 

 

Fonte: Núcleo de estudos e pesquisa em violência de gênero, 2017.

 

É imperioso dizer, que o arcabouço de informações procedentes dos substratos acima elencados, além de serem carreados ao inquérito policial são, consequentemente, inventariados no relatório, o qual figura como peça terminativa dessa fase pré-processual e retrata toda a dinâmica da investigação e os resultados e conclusões logradas.

 

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

O desenvolvimento dessa metodologia e sua apresentação se destinou às instituições de segurança pública – polícias civis, polícias militares, órgãos de perícias criminais e de medicina legal que atuam na apuração de responsabilidades criminais, com o intuito de contribuir para a aquisição e incorporação da perspectiva de gênero aplicada na investigação de cada caso de morte violenta de mulher. Além do mais, deve ser observada pelos agentes do corpo de bombeiros e da guarda metropolitana, sempre que necessária sua intervenção no caso de morte violenta tentada ou consumada de uma mulher, conforme mencionado pela Apostila, documento utilizado para dar publicidade à metodologia investigatória do Feminicídio.

Com a criação desse protocolo e a capacitação dos policias para que haja efetividade em sua aplicabilidade, será possível alcançar uma maior qualidade nos inquéritos policias dessa natureza para, finalmente, romper com o cenário de invisibilidade do Feminicídio e, a partir desse ponto, possamos alcançar mecanismos qualificados para o seu enfrentamento.

O Instituto Patrícia Galvão, na obra Feminicídio (2017), cita a socióloga Eleonora Menicucci, professora titular de Saúde Coletiva da Universidade Federal de São Paulo, na ocasião em que a mesma definiu Feminicídio como um crime de ódio, ao passo que informou que o referido conceito surgiu na década de 1970, para reconhecer e dar visibilidade à morte violenta de mulheres, resultante da discriminação, opressão, desigualdade e violência sistêmica. Segundo esta mesma autora:

essa forma de assassinato não constitui um evento isolado e nem repentino ou inesperado. Ao contrário: faz parte de um processo contínuo de violências, cujas raízes misóginas caracterizam-se pelo uso de violência extrema. Inclui uma vasta gama de abusos, desde verbais, físicos e sexuais, como o estupro, e diversas formas de mutilação e de barbárie GALVÃO (2017ano).

 

Vale ressaltar, que esse posicionamento pode ser reforçado pela realidade observada e avaliada no Núcleo de Estudo e Pesquisa em Violência de Gênero do Piauí, que despojou aquilo que foi também assinalado durante as investigações de muitos Feminicídios perpetrados no âmbito da violência doméstica e familiar, ou seja, Feminicídio íntimos.

Em tais casos, foram recorrentes nos discursos de familiares, vizinhos e conhecidos dos polos envolvidos durante suas oitivas, que a situação de violência entre os referidos polos era incessante, alguns, inclusive afirmavam que já haviam orientado, em outras oportunidades, que aquela mulher alvo de tantas e sucessivas agressões que evoluíam de forma aparente para níveis mais gravosos, buscasse amparo na rede de enfrentamento a violência contra a mulher. Todavia, foi desvelado através dos levantamentos durante a formatação dos inquéritos policias que não havia qualquer registro de ocorrência anterior, na significativa maioria dos casos, referentes às violências transcorridas, as quais passavam a ser tardiamente informadas.

A compreensão supramencionada corroborou com o que foi desnudado pela CPMI, a qual concluiu que no Brasil os assassinatos de mulheres são praticados, majoritariamente, por parceiros íntimos. Por isso, em suas conclusões, a CPMI evidenciou a importância de tipificar o Feminicídio, realçando o fato de que mulheres estão sendo mortas pelo fato de serem mulheres, exibindo a marginalização do gênero feminino que persiste em nossa realidade social.

Em face desses cenários, constatou-se não só a necessidade de dar visibilidade ao fato de que a violência tende a expandir seu nível, principalmente não sendo contida de alguma forma, como também a importância de tornar esse fenômeno visível, inclusive com o propósito de romper o silêncio não só daquelas mulheres que sofrem a violência, mas também de todos que tenham conhecimento de sua existência. Afinal, é necessário difundir a ideia de que todos devem ser responsáveis pela informação da violência, para que o Estado, através de suas instituições detentoras do poder de polícia, possa promover a reprimenda a essas práticas, evitando o alcance de resultados mais gravosos e irreparáveis.

A partir deste conceito, priorizou-se a atuação através de campanhas informativas, convocando toda a sociedade para atuar em face da violência, lembrando que ao romper o silêncio qualquer um poderá estar salvando uma vida, partindo do pressuposto de que o limite da prática agressiva pode figurar na repercussão de uma denúncia.

Com o propósito de dar vazão a essas denúncias, foi criado, no âmbito da Secretária de Segurança Pública do Estado do Piauí, o aplicativo Salve Maria, o qual possibilita a informação sigilosa, por parte de qualquer cidadão que adquira gratuitamente o aplicativo, através do sistema Android, de violências contra a mulher, sejam elas em estado flagrancial, apertando o botão do Pânico que georeferencia o local da prática do ato, sendo essa localização recebida pela central de monitoramento local da Polícia Militar. A polícia, por sua vez, encaminha a viatura mais próxima para o local da ocorrência ou o APP pode ser acionado através do botão Denúncia. Neste botão, devem ser informados fatos transcorridos, portanto, que não estejam em cenário de flagrante, espaço virtual que necessita da maior quantidade de informações que o usuário puder conceder, uma vez que ao ser encaminhado será direcionado à Central de monitoramento da polícia judiciária, a qual, de posse desse formulário, expedirá uma ordem de missão para verificação da procedência preliminar da informação e, a partir do relatório alusivo à demanda, serão tomadas as providências pertinentes ao caso concreto.

Finalmente, essa também foi uma medida desenvolvida com base nos dados e avaliações dos inquéritos policiais do Núcleo de Feminicídio, portanto, possível apenas a partir do momento em que se pode isolar essa prática específica, devastando a invisibilidade desse fenômeno e realçando a importância de que tornar esse cenário visível é imprescindível para enfrentá-lo e, consequentemente, salvar vidas.

  

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BRASIL, 20015. Mapa da violência 2015: homicídio de mulheres no Brasil.

 

BRASIL, Constituição Federal, Brasília, Senado Federal,1988.

 

_______, LEI 11.340, Lei Maria da Penha, Senado Federal, 2006.

 

_______, LEI 13.104, Lei do Feminicídio, Senado Federal, 2015.

 

_______, CPMI-VCM, Senado Federal, 2013.

 

BRASIL. Mapeamento de programas de prevenção de homicídios na América Latina e Caribe, resumo executivo, FBSP, 2016.

 

BRASILIA. Caderno Temático de Referência: Investigação Criminal de Homicídios. 2014.

 

BRASILIA, Diretrizes Nacionais Feminicídio, investigar, processar e julgar com a perspectiva de gênero as mortes violentas de mulheres. ONU MULHERES, 2016.

 

BOGOTA, PROTOCOLO DE BOGOTA: sobre a qualidade dos dados de homicídios na América Latina e o Caribe, 2015.

  

BOURDIEU, PIERRE. A dominação masculina: a condição feminina e a violência simbólica. 3 ed. Edições Bestbolso, 2016

  

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 8. ed, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.

 

CAMPOS, C. H. de. Sistema penal e violência. Porto Alegre, vol. 7 – Número 1 – p. 103-115 – janeiro-junho 2015. http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/sistemapenaleviolencia/article/view/20275/13455.

 

CONVENÇÃO INTERAMERICANA PARA PREVENIR, PUNIR E ERRADICAR A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER, “CONVENÇÃO DE BELÉM DO PARÁ https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/m.belem.do.para.htm.

 

CORDEIRO, E.de S. Violência contra a mulher é crime!, Curitiba: Ed. Juruá, 2014.

 

DESGUALDO, M. A. Recognição visuográfica e a lógica na investigação criminal.

 

FERNANDES, V. D. S. Lei Maria da Penha: o processo penal no caminho da efetividade. São Paulo: Atlas, 2015.

 

GRECO, L. Introdução à dogmática funcionalista do delito.
Em comemoração aos trinta anos de “Política Criminal e Sistema Jurídico- Penal”, de Roxin*. Revista Brasileira de Ciências Criminais, 2000 – felipebambirra.com.br

http://felipebambirra.com.br/wp-content/uploads/2016/05/FuncionalismoPenal-Greco.pdf

 

JESUS, D. de. Violência contra a mulher. 2. ed. São Paulo: Ed. Saraiva, 2015.

 

MELLO, A. R. de. Feminicídio, uma análise sociojurídica da violência contra a mulher no Brasil, Rio de Janeiro: Editora GZ, 2016.

 

PORTO, P. R. Da F. Violência doméstica e familiar contra a mulher: Lei 11.340/06, análise crítica e sistêmica. 3. ed. Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 2014.

 

SAO PAULO, Instituto Patrícia Galvão, Feminicídio, invisibilidade mata. 2017.

 

____________, Casoteca: FBSP, 2017.

 

SEGATO, R. L. Gênero e colonialidade: em busca de chaves de leitura e de vocabulário estratégico descolonial, http://eces.revues.org/1533.

 

TERESINA, Metodologia investigatória na perspectiva de gênero. Apostila do Núcleo de Estudo e Pesquisa em Violência de Gênero, 2017.

 

 
DELEGADOS.com.br
Portal Nacional dos Delegados & Revista da Defesa Social

 

você pode gostar