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Inquérito policial: 150 anos de resiliência

por Editoria Delegados

Por Marcelo de Lima Lessa, Rafael Francisco Marcondes de Moraes e Ronaldo Augusto Comar Marão Sayeg

Por Marcelo de Lima Lessa, Rafael Francisco Marcondes de Moraes e Ronaldo Augusto Comar Marão Sayeg

22 de novembro, data do Decreto 4.824, de 1871, que, em seu artigo 42, definiu que “o inquérito policial consiste em todas as diligências necessárias para o descobrimento dos fatos criminosos, de suas circunstâncias e de seus autores e cúmplices”, marco histórico do instituto, que completa um século e meio de existência legal [1].

Suplantada a monarquia com a Constituição da República de 1891, as cartas políticas subsequentes foram permeadas por turbulências e ditaduras, até os movimentos democráticos que levaram à Constituição Cidadã de 1988, consagradora do inquérito policial como forma a ser adotada na investigação de suspeitas de ilícitos penais e instrumento das instituições de polícia judiciária para o desempenho dos poderes explícitos conferidos pela Lei Maior (artigo 144, §§1º e 4), imbricados à legalidade pública, preceito normativo positivo do agir estatal.

Trata-se de autêntico procedimento investigatório criminal previsto em lei (Lei 12.830/13, artigo 2º, §1º e CPP, artigos 4º e seguintes) e na CF (artigo 129, VIII), que documenta a apuração das circunstâncias e da materialidade de fatos supostamente delitivos, voltado a revelar a verdade atingível e esclarecer a respectiva autoria, presidido por delegado de polícia, carreira jurídica qualificada pela formação policial e autoridade titular da investigação criminal [2].

Por vezes pouco e mal tratado doutrinariamente, mediante narrativas impregnadas do adjetivo depreciativo “mero”, para aparente pretensão reducionista de sua relevância, o inquérito policial tem se amoldado às sucessivas mudanças políticas, jurídicas e sociais.

Na perspectiva constitucional, o inquérito policial funda-se na dignidade humana, valor intrínseco a exigir o tratamento de todos (sobretudo vítimas e investigados) como sujeitos de direitos, à luz do paradigma do devido processo penal [3], cláusula geral cuja dimensão extrajudicial designa a devida investigação criminal [4] ou devida investigação legal [5], pela incidência, na densidade aplicável ao inquérito policial, das consectárias garantias processuais penais da legalidade, presunção de inocência, motivação, imparcialidade, investigante natural, reserva jurisdicional, proibição de provas ilícitas, paridade de armas, razoável duração, publicidade, não autoincriminação, contraditório e ampla defesa.

Sem embargo, a expressão “acusados em geral” na CF (artigo 5º, LV) contempla o investigado [6] e pressupõe interpretação extensiva, para além da dicotomia acusatório-inquisitório [7] e pela releitura das características do inquérito policial [8], segundo a qual consubstancia procedimento autônomo, como regra indispensável e apuratório [9], para assegurar ao suspeito um contraditório possível [10] ou mitigado [11], ajustado às peculiaridades da fase policial e de publicidade restringível [12] para acesso aos autos e participação ativa do investigado.

Destarte, na lição de Joaquim Canuto Mendes de Almeida [13]:

“Asseverar que o indiciado nenhum interesse tem a defender no inquérito policial é desconhecer que o Delegado de Polícia, tanto quanto o Juiz Criminal, subordinado ao princípio de legalidade, é instrumento da lei, obrigado a cumprir a norma penal, em seu bifrontismo, tanto sob o aspecto do interesse de punir, que é de todos os indivíduos impessoalmente considerados, quanto sob o aspecto do interesse de não punir, fora das limitações derivadas da norma penal, que é pessoalmente do indiciado”.

Nesse horizonte, Sérgio Marcos de Moraes Pitombo [14] alertava sobre equivocada insistência doutrinária em considerar o inquérito policial apenas informativo e rejeitar o exercício do direito de defesa, desprezando a vedação de tratamento do investigado como estranho e objeto na etapa extrajudicial. Aludido sofisma é facilmente rechaçado pela autodefesa positiva do direito de fala [15] ou negativa via direito ao silêncio no interrogatório policial, e ainda pelo acionamento de defesa técnica, pedido de diligências ou apresentação de razões e quesitos, sem prejuízo da defesa exógena via medidas judiciais como Habeas Corpus e mandado de segurança.

Em relação à presidência do inquérito policial, a exegese constitucional impõe consolidação da independência funcional do delegado de polícia [16] e reforço à proteção normativa para autonomia das instituições de polícia judiciária [17], de modo a inibir ingerências espúrias e sedimentar a fundamentação nas manifestações de convencimento jurídico [18] e o correlato poder-dever da autoridade investigante analisar tipicidade (e excludentes como a insignificância [19] [20]), ilicitude (e excludentes como a legítima defesa [21]) e culpabilidade (e dirimentes [22]), porquanto a apreciação de um fato, objetivando estabelecer contorno jurídico e classificação penal, demanda ponderação sobre todos os elementos constitutivos do delito.

Já a repercussão da era digital tem sido observada na crescente utilização de gravações audiovisuais de audiências policiais e em iniciativas como o intitulado “Inquérito Policial Eletrônico” [23], realidade no estado de São Paulo, via informatização e interligação com o Poder Judiciário, que propicia eficiência e transparência, assim como economia e celeridade nas comunicações, além de figurar como promissor caminho para a implantação do juiz das garantias [24].

Como se nota, a despeito das dificuldades estruturais advindas da insuficiência de recursos humanos, materiais e tecnológicos das instituições de polícia judiciária [25], o inquérito policial avança e se aperfeiçoa gradativa e constantemente para cumprir seu papel na consecução da Justiça Criminal e atender os compromissos constitucionais, sustentado no tripé legalidade, ciência e lógica, em linguagem formalizada do labor investigativo e com vida própria, pois conta uma história. A história de um crime [26].

  

[1] O Decreto 4.824/1871 regulou a Lei 2.033, de 20 de setembro do mesmo ano. MORAES, Bismael Batista de. Direito e Polícia: uma introdução à polícia judiciária. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1986, p.129.

[2] GUEBERT, Julio Gustavo Vieira. Prefácio. In: IBRAHIN, Francini Imene Dias; BELIATO, Araceli Martins (Org.). Direito policial: temas atuais. Salvador: JusPodivm, 2021, p.9.

[3] TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p.65.

[4] COELHO, Emerson Ghirardelli. Investigação criminal constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2017, p.47-48; DEZAN, Sandro Lúcio; WERNER, Guilherme Cunha. Direito constitucional de polícia judiciária. Belo Horizonte: Fórum, 2021, p.199; SAYEG, Ronaldo. Inquérito policial democrático: uma visão moderna e contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019, p.117-119.

[5] BALDAN, Édson Luís. Devida investigação legal como derivação do devido processo legal e como garantia fundamental do imputado. In: KHALED JR., Salah (Coord.). Sistema penal e poder punitivo: estudos em homenagem ao prof. Aury Lopes Jr. Florianópolis: Empório do Direito, 2015, p.169-178.

[6] SAAD, Marta. Defesa no inquérito policial. In: PEREIRA, Eliomar da Silva; ANSELMO, Marcio Adriano (Org.). Direito processual de polícia judiciária I: o procedimento de inquérito policial. Belo Horizonte: Fórum, 2020, p.192.

[7] PEREIRA, Eliomar da Silva. Saber e poder: o processo (de investigação) penal. Florianópolis: Tirant no Blanch, 2019, p.116.

[8] SEGARRA, Gabriela. Repensando o modelo de inquérito policial moderno: rompimento com a inquisitoriedade. In: IBRAHIN, Francini Imene Dias; BELIATO, Araceli Martins (Org.). Direito policial: temas atuais. Salvador: JusPodivm, 2021, p.149-165; CARACHO, Bruna Caroline Biruel. O inquérito policial como instrumento de garantia e efetivação dos direitos humanos. In: IBRAHIN, Francini Imene Dias; BELIATO, Araceli Martins (Org.). Direito policial: temas atuais. Salvador: JusPodivm, 2021, p.79-98.

[9] HOFFMANN, Henrique. Inquérito policial tem sido conceituado de forma equivocada. São Paulo, Consultor Jurídico, 21 fev. 2017. Disponível em: <www.conjur.com.br/2017-fev-21/academia-policia-inquerito-policial-sido-conceituado-forma-equivocada>.

[10] MORAES, Rafael Francisco Marcondes de; PIMENTEL JR., Jaime. Polícia judiciária e a atuação da defesa na investigação criminal. Salvador: Juspodivm, 2018, p.53 e 156-163.

[11] MACHADO, Leonardo Marcondes. Manual de inquérito policial. Belo Horizonte: CEI, 2020, p.27-30. 

[12] MORAES, Rafael Francisco Marcondes de; PIMENTEL JR. Jaime. Polícia judiciária e a atuação da defesa na investigação criminal. Salvador: JusPodivm, 2018, p.205-210; MORAES, Rafael Francisco Marcondes de; PIMENTEL JR. Jaime. A publicidade do inquérito policial. São Paulo, Consultor Jurídico, 28 mai. 2020. Disponível em: <www.conjur.com.br/2020-mai-28/opiniao-publicidade-inquerito-policial>.

[13] ALMEIDA, Joaquim Canuto Mendes. O direito de defesa no inquérito policial. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, v. 52. São Paulo: USP, 1957, p.113.

[14] PITOMBO, Sérgio Marcos de Moraes. Inquérito policial: exercício do direito de defesa. Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Ano 7, Edição Especial, n.83, out.1999.

[15] GONÇALVES, Fernando David de Melo; PEREIRA, Luis Henrique Lima. Direito de fala no inquérito policial e sua resignificação como face da moeda autodefesa do investigado. In: SÃO PAULO. Arquivos da Polícia Civil – vol. 57. Academia de Polícia: São Paulo, 2021, p.11-31.

[16] LESSA, Marcelo de Lima; MORAES, Rafael Francisco Marcondes de; SAYEG, Ronaldo. A independência funcional do delegado e a polícia judiciária de Estado. São Paulo, Consultor Jurídico, 16 dez. 2020. Disponível em: <www.conjur.com.br/2020-dez-16/opiniao-independencia-delegado-policia-judiciaria>; HOFFMANN, Henrique; SANNINI, Francisco. Independência funcional é prerrogativa do delegado e garantia da sociedade. São Paulo, Consultor Jurídico, 2 jun.2016. Disponível em:<www.conjur.com.br/2016-jun-02/independencia-funcional-prerrogativa-delegado>.

[17] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão. São Paulo: RT, 2002, p.617.

[18] PEREIRA, Maurício Henrique Guimarães. Habeas corpus e polícia judiciária. In: PENTEADO, Jaques de Camargo (Coord.). Justiça penal: tortura, crime militar, habeas corpus. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p.226.

[19] MACHADO, Leonardo Marcondes. Flagrantes de bagatela: mais um caso de prisão sem delito. São Paulo, Consultor Jurídico, 12 fev.2020. Disponível em: <www.conjur.com.br/2019-fev-12/academia-policia-flagrantes-bagatela-prisao-delito>; MORAES, Rafael Francisco Marcondes de. Prisão em flagrante delito constitucional. Salvador: JusPodivm, 2020, p.276-283; KHALED JR., Salah Hassan; ROSA, Alexandre Morais da. Delegados relevantes e lesões insignificantes: a legitimidade do reconhecimento da falta de tipicidade material pela autoridade policial. São Paulo, Justificando, 25 nov.2014; HOFFMANN, Henrique. Aplicação do princípio da insignificância pelo delegado de polícia. In: HOFFMANN, Henrique; et al. Investigação criminal pela polícia judiciária. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016, p.47-53; GARCIA, Thiago. Tudo que você precisa saber sobre delegado de polícia, lei Maria da Penha e princípio da insignificância. São Paulo: Rideel, 2019, p.21-29; LIMA, Murillo Ribeiro de. Princípio da insignificância e sua aplicação pelo delegado de polícia. In: CHAVES, José Mário (Org.). Tópicos essenciais de direito criminal. Juiz de Fora: Editar, 2017, p.205-230; OLIVEIRA, Daniela Lelis Botelho de. A aplicação do princípio da insignificância pelos delegados de polícia na atualidade: panorama e reflexões. In: IBRAHIN, Francini Imene Dias; BELIATO, Araceli Martins (Org.). Direito policial: temas atuais. Salvador: JusPodivm, 2021, p.99-119; RANGEL, Carlos Eduardo. Poder punitivo, polícia judiciária e democracia: reflexões contemporâneas sobre a atividade de investigação criminal. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2020, p.280; XAVIER, Luiz Marcelo da Fontoura. Constitucionalização da investigação policial. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2020, p.330-334.

[20] Sobre o tema, o STJ manifestou-se em julgado que absolveu réu em caso de furto de bagatela, decisão unânime na qual foi louvada a atitude do delegado de polícia, ao reputar aplicável o princípio da insignificância e não decretar a prisão em flagrante. Contudo, houve discordância de entendimento jurídico e a acusação ofereceu denúncia, desencadeando ação penal e condenação pelas instâncias ordinárias da Justiça (RHC 126.272-MG, 6ª T., j.01/06/21).

[21] MORAES, Rafael Francisco Marcondes de. Prisão em flagrante delito constitucional. Salvador: JusPodivm, 2020, p.269-276; HOFFMANN, Henrique. Delegado pode e deve aplicar excludentes de ilicitude e culpabilidade. São Paulo, Consultor Jurídico, 6 set.2016. Disponível em: <www.conjur.com.br/2016-set-06/academia-policia-delegado-aplicar-excludentes-ilicitude-culpabilidade>; HAMID, Lhais Navarro; SANTOS, Jakelline Costa Barros dos. A teoria geral do crime e sua aplicação aos casos submetidos à análise da autoridade policial. In: IBRAHIN, Francini Imene Dias; BELIATO, Araceli Martins (Org.). Direito policial. Salvador: JusPodivm, 2021, p.303-319; PAGLIONE, Eduardo Augusto. A prisão em flagrante e as causas excludentes da antijuridicidade. Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, v.15, set. 2007, p.15-17; SILVA, Laudelina Inácio da; COSTA, Adriano Sousa. Prática policial sistematizada. Niterói: Impetus, 2014, p.29.

[22] BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal. 8.ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p.1160-1161; BRENE, Cleyson. Ativismo policial: o papel garantista do delegado de polícia. Salvador: JusPodivm, 2018, p.185-205; BRITO, Alexis Couto de; FABRETTI, Humberto Barrionuevo; LIMA, Marco Antonio Ferreira. Processo penal brasileiro. São Paulo: Atlas, 2012, p.237-238; FERREIRA, Wilson Luiz Palermo. Percepção dos aspectos analíticos do delito na atuação concreta do delegado de polícia. Salvador: JusPodivm, 2021, p.198-207.

[23] MORAES, Rafael Francisco Marcondes de; ORTIZ, Luiz Fernando Zambrana. Inquérito Policial Eletrônico: tecnologia, garantismo e eficiência na investigação criminal. In: GIORDANI, Manoel Francisco de Barros da Motta Peixoto; MORAES, Rafael Francisco Marcondes de (Coord.). Estudos contemporâneos de polícia judiciária. São Paulo: LTr, 2018, p.83-96.

[24] RIBEIRO, Sarah Gonçalves; GUIMARÃES, Rodrigo Régnier Chemim. A introdução do juiz das garantias no Brasil e o inquérito policial eletrônico. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, v.6, p.147-174, jan.-abr.2020. Os artigos 3º-A a 3º-F do CPP, que cuidam do juiz das garantias, encontram-se com eficácia suspensa por liminar nas ADIs 6298, 6299, 6300 e 6305.

[25] BERMUDEZ, André Luiz. A investigação criminal orientada pela teoria dos jogos. Florianópolis: Emais, 2020, p.28.

[26] DESGUALDO, Marco Antonio. Recognição visuográfica e a lógica na investigação. São Paulo: Polícia Civil de São Paulo, 2006, p.19.

Sobre os autores

Marcelo de Lima Lessa é delegado de polícia de São Paulo e professor da Academia de Polícia de São Paulo (Acadepol).

Rafael Francisco Marcondes de Moraes é delegado de polícia de São Paulo, mestre e doutorando em Direito Processual Penal pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da Academia de Polícia de São Paulo (Acadepol).

Ronaldo Augusto Comar Marão Sayeg é delegado de polícia de São Paulo, especialista em polícia judiciária e sistema de Justiça criminal e professor da Academia de Polícia de São Paulo (Acadepol).

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