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Atitude Suspeita é vestir determinado tipo de roupa? Andar em determinados lugares?

por Editoria Delegados

A abordagem por atitude suspeita precisa decorrer de alguma situação objetiva

 

A abordagem por atitude suspeita precisa decorrer de alguma situação objetiva. Não pode ser simplesmente por estereótipos penais, muito menos da intuição dos agentes policiais. No voto vencido do Des. Alexandre Victor de Carvalho, do TJMG, proferido nos autos n. 1.461.10.008455.0.1.001, a situação é retratada da seguinte forma: É vestir determinado tipo de roupa? Andar em determinados lugares? Conversar com determinadas pessoas?

 

Confira o voto abaixo

 

 

DES. ALEXANDRE VICTOR DE CARVALHO (REVISOR)

VOTO

Peço vênia ao Eminente Desembargador Relator para apresentar divergência.

Entendo, diferentemente do douto Relator, que não há substrato probatório mínimo para sustentar a condenação prolatada em primeira instância e no voto condutor.

A acusação se deu nos seguintes termos:

Consta nos autos que no dia 10 de setembro de 2009, por volta das 17h20, no Bairro Nossa Senhora do Carmo, em um Bar localizado na Rua J. K., a polícia militar abordou o denunciado, que havia se portado de maneira suspeita, encontrando com o mesmo, em sua cueca, a quantia de R$1.295,00 (mil, duzentos e noventa e cinco reais) em cédulas diversas, sendo o denunciado suspeito de autoria do crime de roubo ocorrido no Bairro P. F., cuja vítima era E. C. M.. O denunciado fora deslocado junto à casa da vítima, em que fora reconhecido pela mesma através de foto que segue em anexo nos autor, f. 07, em apenso, 0461.09.062598-3. (f. 02).

Primeiramente, a questão da “atitude suspeita” é deveras intrigante no âmbito das abordagens policiais. O que é atitude suspeita?

É vestir determinado tipo de roupa? Andar em determinados lugares? Conversar com determinadas pessoas?

Como delimitar o alcance de tal expressão, que, apesar de não dizer nada, em processo penal, acaba dizendo tudo?

É o que os sempre pertinentes professores Alexandre Morais da Rosa e Salah H. Khaled Jr brilhantemente, traduzem quando dizem que é evidente que a lógica classificatória que preside esquemas interpretativos dessa ordem inevitavelmente padecerá dos deslizes típicos da indesejável subjetividade que ainda permeia o trabalho policial: as duas primeiras tipologias obviamente encontrarão maior concretude quando cruzadas com o estoque lombrosiano de imagens da criminalidade que ainda delimita o horizonte compreensivo padrão de autuação. Em outras palavras, a combinação das descrições supostamente objetivas – ainda que excessivamente abrangentes – com o imaginário autoritário e racista capacita os esquemas intuitivos dos policiais para a realização seletiva do sistema penal. Ou seja, para a abordagem ostensiva e ampliação das redes subterrâneas de criminalização secundária de indivíduos portadores de certos signos de identificação: fundamentalmente para a persecução de negros em situação de vulnerabilidade social. Com isso não estamos satanizando os policiais de forma maniqueísta – longe disso – mas desvelando que o problema se situa na esfera da pré-compreensão, motivo pelo qual se deve estar plenamente ciente da possibilidade inconsciente de realização dessa autoritária regra de bolso de forma irrefletida. Anotamos por fim que a atuação policial deve ser ostensiva e séria. Algo que a Professora Priscilla Placha Sá apontou na tese intitulada “Mal-estar de arquivo: as polícias como arquivistas do soberano” (UFPR, 2013). (Disponível em http://justificando.com/2014/10/07/homens-vagando-em-locais-de-grande-frequencia-de-mulheres-podem-s…, acesso em 11 de fevereiro de 2015.)

Não estou, aqui, a desmerecer toda a experiência de vida acumulada pelos milicianos na realização de suas operações de rotina, mas, talvez, não fosse essa “atitude suspeita”, esse “sexto sentido” pelo qual o Estado fareja os bons e os maus, talvez não houvesse tantas condenações sem prova com base, meramente, nas características físicas do acusado, configurando odioso determinismo biológico, que faz com que o acusado seja julgado pelo que é e não pelo que fez, caracterizando verdadeiro direito penal do autor.

O caso dos autos merece enumeração dos elementos usados para a condenação do acusado.

O roubo que ensejou o presente processo penal ocorreu em 26 de agosto de 2009, sendo subtraída da vítima a quantia de R$ 4.000,00.

O apelante foi encontrado em um bar, no dia 10 de setembro de 2009, ou seja, 15 dias após a ocorrência do delito, na posse de cerca de R$ 1.200,00, dinheiro que foi encontrado em sua cueca.

Levada uma foto sua à presença da vítima, ela o reconheceu como autor do delito, sem o mínimo de observância do procedimento para reconhecimento estabelecido pelo Código de Processo Penal.

Não houve qualquer testemunha ocular do crime, há, nos autos, apenas, o relato da vítima, idosa, perante a autoridade policial, segundo o qual o apelante foi o autor de um roubo ocorrido 15 dias antes, por meio de um reconhecimento muito questionável sequer ratificado em juízo.

Como bem explicado por Aury Lopes Jr e Alexandre Morais da Rosa, o reconhecimento fotográfico induz reconhecimento posterior pelo ofendido, contaminando o “procedimento” por completo.

Tal prática é costumeira no dia a dia policial, não sendo raro que, às vítimas, sem que tenha sido colhido formalmente seu depoimento e a descrição do autor e suas características, seja apresentado o famoso “álbum de fotografias” ou mesmo as “imagens de computador” dos agentes que já passaram por investigações policiais ou que os policias possuem a intuição da autoria. Há, com isso, a apresentação do conjunto dos agentes e, muitas vezes, instigação pelo reconhecimento. Segue-se a lavratura do “auto de reconhecimento fotográfico” e, não raro, o pedido de prisão e/ou indiciamento. Lembre-se que a produção de prova processual deve atender aos requisitos legais e, como tal, a exigência de diversos suspeitos, com características similares, é condição de possibilidade à sua validade. Não se trata de reconhecer a nulidade posterior e sim a ilegalidade de sua produção, a saber, o ato de reconhecimento se deu ao arrepio da regra procedimental. Daí em diante fixa-se a imagem do agente (falsa memória) e, assim, o conteúdo está contaminado. O reconhecimento fotográfico não é previsto em lei e se trata, no fundo, do “jeitinho brasileiro” aplicado ao processo penal. Uma das modalidades de doping processual.[1]

Tal situação é ainda mais comum quando se trata de crimes patrimoniais em que há violência, pois a tendência da vítima é tentar encontrar um culpado para “pagar” pelo delito, popularmente falando, e satisfazer seu sentimento de injustiça e impunidade.

Ocorre que tal reconhecimento perde sua credibilidade, pois enseja, não raramente, falsas memórias.

Como bem apontam Rosa e Lopes Jr no artigo supramencionado, a testemunha e/ou vítima têm expectativa que faz com que tendam a ver e ouvir o que querem ver, [2] daí porque os estereótipos culturais (cor, classe social, sexo etc.) têm uma grande influência na percepção dos delitos, fazendo com que as vítimas/testemunhas tenham uma tendência de reconhecer em função desses estereótipos (exemplo típico ocorre nos crimes patrimoniais com violência, em que a raça e perfil socioeconômico são estruturantes de um estigma). Por fim não se pode desconsiderar que no imaginário coletivo, o que é bonito, é bom. Isso significa que tendemos a reconhecer como criminoso a “cara mais feia”, mais agressiva, pois um rosto bonito e atraente possui mais traços de uma conduta socialmente desejável do que uma cara feia…

Por tais motivos a ausência das formalidades legais não configura “mera irregularidade”, argumento paulatinamente utilizado para se camuflarem nulidades, pois forma é, evidentemente, garantia no processo penal.

Tudo isso para se buscar a malfadada Verdade Real, que pressupõe uma condenação a todo custo, não se levando em consideração que tais práticas inquisitórias maculam de tal forma o processo penal que as garantias constitucionais do acusado não passam de letra morta de texto de Constituição.

Nas palavras de Aury Lopes Jr e Alexandre Morais da Rosa, “Não é possível negociar com o devido processo legal substancial. Há limites na investigação e no uso que se possa realizar de elementos materiais que restam excluídos em face de sua má formação. O DNA da prova resta manipulado em nome da eficiência processual penal.” (LOPES JR., ROSA, 2014).

No caso dos autos, não é que o reconhecimento fotográfico tenha sido utilizado como uma “prova” (sic) para respaldar a condenação do apelante.

O reconhecimento foi (suposta) a prova, haja vista que, em juízo, há apenas as palavras do filho da vítima, que se limitou a repetir as declarações feitas por seu pai perante a autoridade policial.

O acusado negou integralmente a prática do delito, não tendo a acusação envidado esforços mínimos para desacreditar o seu relato, segundo o qual morou por 22 anos em São Paulo e estava juntando dinheiro na época dos fatos e que desconhece a vítima do delito ora apurado.

Além disso, a quantia encontrada com o apelante não foi sequer a mesma subtraída e, sendo dinheiro bem fungível, é perfeitamente possível que a quantia com ele encontrada 15 dias após o crime contra o patrimônio seja proveniente de outra fonte que pode, inclusive, ser ilícita, mas consectário lógico da ausência de prova é ausência de condenação.

Ante o exposto, dada lacônica prova produzida nestes autos – para não dizer absoluta ausência de prova -, não há outro provimento possível que não o absolutório.

Diante do exposto, DOU PROVIMENTO ao recurso interposto, absolvendo o apelante da imputação que lhe foi feita com fundamento no artigo 387, VII, do Código de Processo Penal.

É como voto.

Sem custas.

DES. PEDRO COELHO VERGARA – De acordo com o (a) Relator (a).

SÚMULA: “POR MAIORIA, DERAM PROVIMENTO EM PARTE”

 

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