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A epidemia de “SIM cards-laranjas” e o crime de falsidade ideológica

por Editoria Delegados

Por Erick da Rocha Spiegel Sallum[1]

Por Erick da Rocha Spiegel Sallum[1]

                                                                               
A atividade investigativa volta-se à identificação de condutas típicas (materialidade) e imputação dessas condutas a indivíduos (autoria). Esse processo tem se tornado cada vez mais árduo, em especial, no que concerne à qualificação dos suspeitos. As dificuldades percebidas no cotidiano policial derivam sobretudo do uso das novas tecnologias digitais. Redes VPN, aplicativos de comunicação criptografada, servidores internacionais, Deep Web e toda sorte de canal de dissimulação para impedir a descoberta dos responsáveis por determinada conduta tem se tornado comum, ainda que em crimes rotineiros.

                       
Nesse contexto, um dos mais simples métodos de disfarce de identidade é o falso cadastramento de SIM cards em nome de terceiros. Como se sabe, o SIM card é um circuito integrado impresso num pequeno pedaço de plástico. Esse circuito integrado possui capacidade de até 128 kilobytes, podendo armazenar até 250 contatos, um menu personalizado pela operadora para acesso a serviços, diversos mecanismos de segurança e, o mais importante, o IMSI (International Mobile Subscriber Identity). Por sua vez, o IMSI é um número de até 15 dígitos que marca a identidade internacional da linha, contendo o país, operadora de origem e o número individual. É o IMSI que individualiza determinado aparelho na rede. Considerando que significativa parcela da comunicação moderna se faz por meio da rede de telefonia móvel, é imprescindível que cada IMSI seja vinculado a um indivíduo, seja ele pessoa física ou pessoa jurídica. Essa individualização possibilitaria um mínimo controle pois, em tese, identificaria quem realmente estaria por trás de um terminal telefônico usado para determinada conduta.

                       
Justamente com essa finalidade, a lei n. 10.703, de 18 de julho de 2003, regulamentada pela resolução 477/2007 da ANATEL traz como obrigação da prestadora de serviço e do usuário o registro dos dados cadastrais, fixando, inclusive, multas e suspensão do serviço, veja:

Art. 1° Incumbe aos prestadores de serviços de telecomunicações na modalidade pré-paga, em operação no território nacional, manter cadastro atualizado de usuários.

§ 1° O cadastro referido no caput, além do nome e do endereço completos, deverá conter:

I – no caso de pessoa física, o número do documento de identidade ou o número de registro no cadastro do Ministério da Fazenda;

II – no caso de pessoa jurídica, o número de registro no cadastro do Ministério da Fazenda;

 

Art. 4° Os usuários ficam obrigados a:

I – atender à convocação a que se refere o § 2° do art. 1o;

II – comunicar imediatamente ao prestador de serviços ou seus credenciados:

  1. a) o roubo, furto ou extravio de aparelhos;
  2. b) a transferência de titularidade do aparelho;
  3. c) qualquer alteração das informações cadastrais

Parágrafo único. O usuário que deixar de atender ao disposto neste artigo ficará sujeito à multa de até R$ 50,00 (cinqüenta reais) por infração, cumulada com o bloqueio do sinal telefônico.

                        
Ocorre que a criminalidade rapidamente percebeu a facilidade/impunidade em falsificar esses dados. Sendo assim, ao cadastrar o SIM card em nome de terceiro, o criminoso consegue uma primeira camada de anonimato. Essa camada não é intransponível, mas gera transtornos às Autoridades Policiais. Isto porque, quaisquer informações que ultrapassem os meros dados cadastrais dependem de ordem judicial para acesso. Nesse sentido, a nem sempre célere obtenção da autorização para a quebra de sigilo de dados representa uma vantagem temporal ao criminoso.      

                       
Estabelecido todo esse contexto, cabe indagar acerca da eventual tipificação criminal dessa conduta, qual seja, habilitação de SIM card em nome de terceiros. Esse questionamento ganha ainda mais relevância dentro da ideia de proteção de dados pessoais. Com a publicação da lei n. 13.709, de 14 de agosto de 2018 (LGPD), os dados pessoais ganharam envergadura jurídica ainda maior. Com efeito, essa norma traz as seguintes regras que balizam toda a concepção da tutela desses dados:

Art. 1º – Esta Lei dispõe sobre o tratamento de dados pessoais, inclusive nos meios digitais, por pessoa natural ou por pessoa jurídica de direito público ou privado, com o objetivo de proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural.

Art. 17- Toda pessoa natural tem assegurada a titularidade de seus dados pessoais e garantidos os direitos fundamentais de liberdade, de intimidade e de privacidade, nos termos desta Lei.

                       
A LGPD trouxe uma inovação penal ao criar o art. 154-A (invasão de dispositivo informático), mas foi silente quanto ao caso ora tratado. Sendo assim, há espaço para aperfeiçoamento. Contudo, entende-se que, embora ainda despercebida, já existe norma penal apta a reprimir essa conduta. Trata-se do art. 299 do código penal que descreve o crime de falsidade ideológica, veja:

Art. 299 – Omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante:

Pena – reclusão, de um a cinco anos, e multa, se o documento é público, e reclusão de um a três anos, e multa, de quinhentos mil réis a cinco contos de réis, se o documento é particular. (Vide Lei nº 7.209, de 1984).

                       
Quanto aos elementos desse tipo, a única dúvida suscetível seria quanto a constatação do “documento” no qual os dados falsos são inseridos. Contudo, essa dúvida claramente é sanada com uma análise mais ampla das normas vigentes. Com efeito, pode-se dizer que a partir da entrada em vigor da Lei 11.419/2006 (“processos digitais”), não há mais qualquer questionamento acerca da fungibilidade entre os meios físico e digital. Isto é, o documento de papel (físico) vale exatamente o mesmo que seu representante virtual. Por isso, a forma digital não descaracteriza a natureza “documental”. Assim, em que pese o cadastramento do SIM card seja efetivado remotamente e pelo canal digital, esse registro continua sendo um documento para todos os fins, inclusive penais, pois trata-se de um ato formal, juridicamente perfeito e como condição de validade de uma relação contratual.

                       
Avançando no raciocínio, perceba que, como já dito, pela lei n. 10.703, de 18 de julho de 2003, é dever do usuário efetivar cadastro fidedigno junto à prestadora de serviço de telefonia móvel. De fato, esses dados cadastrais são imprescindíveis ao aperfeiçoamento do contrato entre a prestadora de serviços telefônicos e o usuário, sendo, portanto, parte integrante de um documento particular.

                       
Estabelecidas essas premissas, tem-se que a omissão ou inserção de dados falsos nesse cadastro obrigatório pode se amoldar ao crime de falsidade ideológica. Nesse contexto, é importante que as Autoridades Policiais também percebam que o crime de falsidade ideológica possui pena em abstrato (reclusão de 1 a 5 anos) superior a da receptação (reclusão de 1 a 4 anos). Logo, fornecer dados falsos para o cadastramento do SIM card é mais grave do que adquirir o próprio celular furtado/roubado. E realmente assim deve ser.

                       
O bem jurídico tutelado no crime previsto no artigo 299 do Código Penal é a fé pública, genericamente e, especificamente, podemos dizer que é a confiança presente entre as partes que realizam o documento. A violação da fé pública, a depender do caso concreto, pode gerar danos piores do que o crime patrimonial. Afinal, o cadastramento falso de um SIM card pode, à título de exemplo, tornar pessoas absolutamente inocentes suspeitas de homicídio ou outros crimes graves, caso referido número tenha sido usado no iter criminis.

                       
À conta de toda essa lógica, o falso cadastramento de SIM cards não pode ser entendido como um nada jurídico. Trata-se, sem sombra de dúvida, de conduta típica que deve ser combatida nos termos da Lei. A banalização desse fenômeno e a inércia do sistema de segurança pública diante de seu exponencial crescimento poderá gerar um futuro estado de coisas irreversível.

 

[1] O autor é Delegado de Polícia do DF. Bacharel em Direito e Administração de Empresas. Pós-graduado em Direito Constitucional, Penal e Processual Penal. Diretor da DIRAD/CORPATRI/PCDF. Ex-Agente de Polícia Federal classe especial.

 

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