O reconhecimento de pessoas e o papel do delegado na condução das investigações

Por Leonardo Marcondes Machado, Fernanda Moretzsohn e Patricia Burin Por Leonardo Marcondes Machado, Fernanda Moretzsohn e Patricia Burin A recente decisão do STJ, no julgamento do HC 598.886/SC, sobre a prova penal oriunda do reconhecimento de pessoas gerou enorme interesse

Por Editoria Delegados

Por Leonardo Marcondes Machado, Fernanda Moretzsohn e Patricia Burin

Por Leonardo Marcondes Machado, Fernanda Moretzsohn e Patricia Burin

A recente decisão do STJ, no julgamento do HC 598.886/SC, sobre a prova penal oriunda do reconhecimento de pessoas gerou enorme interesse no mundo jurídico por quebrar um antigo paradigma: a interpretação tradicional da norma contida no artigo 226 do CPP como mera recomendação. No entanto, pouco se atentou a outro viés fundamental desse julgado, qual seja, a relevância da correta atuação das polícias investigativas judiciárias no procedimento de instrução do caso penal.

Inobstante sua importância prática, a fase inicial da persecução penal ainda figura como tema periférico na maioria das análises doutrinárias e jurisprudenciais, o que repercute diretamente no desenho institucional do sistema de justiça criminal brasileiro. Aury Lopes Júnior adverte ser “óbvio que a qualidade e eficácia do processo penal está diretamente relacionada com a qualidade da investigação preliminar, enquanto fase preparatória, destinada a justificar a acusação ou o arquivamento” [1]. O acórdão em exame segue nesta linha ao reconhecer, na contramão da doutrina tradicional, que “vícios” do inquérito têm o condão, sim, de macular a futura ação e mesmo o processo penal [2].

No tocante ao reconhecimento de pessoas, como bem adverte a citada decisão do STJ, fundamental termos em mente que, diante do fenômeno das falsas memórias, uma atuação descuidada em sede policial pode corromper toda a persecução penal, até mesmo ensejando condenações injustas.

Oportuno lembrar que a instrução da grande maioria dos casos penais, em que pese forte movimento de expansão das provas periciais [3], inclusive a partir de vestígios digitais [4], ainda se mostra muito vinculada às fontes de prova de natureza pessoal (vítimas, testemunhas e imputados). De fato, as “provas dependentes da memória humana” continuam na base formativa do juízo de culpa criminal, muitas vezes estabelecido sem qualquer rigor epistêmico compatível com a garantia fundamental de presunção de inocência. Não por acaso, falsos reconhecimentos estão entre as principais causas de erros judiciais tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos da América.

Aliás, falsos reconhecimentos que, segundo Cecconello e Stein, podem ocorrer devido a fatores intrínsecos ao evento criminoso ou às próprias limitações da memória humana (exemplo: observação do crime pela testemunha a longa distância), os quais reunidos pela literatura especializada junto à categoria “variáveis de estimação”. Há, contudo, inúmeros “procedimentos utilizados pelo sistema de Justiça” que “também podem aumentar a probabilidade de um falso reconhecimento” (exemplo: apresentação de fotografia única para reconhecimento — showup), assim entendidos como “variáveis de sistema” [5].

Tudo isso precisa ser mais bem compreendido e trabalhado no campo jurídico-penal, em interlocução com os achados científicos da psicologia do testemunho e do raciocínio probatório, para a regular admissão, produção e valoração do reconhecimento de pessoas no contexto das investigações criminais e processos penais. Afinal de contas, como diria Elizabeth Loftus, “a memória é totalmente maleável, seletiva e mutável” [6]. Daí a enorme preocupação com a sugestionabilidade dos atores jurídicos e seu potencial gerador de falsas memórias [7].

Frise-se, embora já repetido à exaustão pela ciência, que falsas memórias são informações sinceras anunciadas pelos sujeitos, muito embora incompatíveis com a realidade fática. Ou seja: falsas memórias não são mentiras (embora sejam falsas, isto é, não verdadeiras) [8]. O que torna esse tipo de fenômeno cognitivo ainda mais complexo e, ao mesmo tempo, perigoso na esfera penal.

Não por outra razão, a enorme urgência quanto à implementação concreta de protocolos científicos no sistema de Justiça criminal para as “provas dependentes da memória humana”, em que se inclui o reconhecimento de pessoas [9]. Um tipo de demanda que está longe de figurar como mera “divagação academicista”. Isso porque um ato de reconhecimento pessoal conduzido de forma sugestiva, ainda que sem dolo ou má-fé do responsável, contamina não somente a memória humana do reconhecedor, mas a própria atividade estatal de persecução criminal, na medida em que repercute diretamente na esfera probatória do caso penal.

A repetição do ato, seja em juízo, seja na própria fase policial, quando o reconhecimento anterior foi marcado pela sugestionabilidade, não teria o condão, por óbvio, de “reintegrar” a memória humana tampouco de expurgar o vício informativo (ou probatório) estabelecido naquele caso, ainda que o novo procedimento fosse considerado isoladamente perfeito (ou íntegro).

Logo, em situações desse tipo, diversamente do que pareceu viabilizar o STJ no julgado em questão [10], não restaria alternativa, no campo processual penal, senão a declaração de inadmissibilidade do reconhecimento como meio de prova por vício anterior insanável. Isso mesmo sem recorrer a posicionamento doutrinário respeitável, muito inspirado nas lições da psicologia cognitiva, de que o reconhecimento pessoal seria necessariamente um tipo de prova irrepetível [11].

Aliás, estudos demonstram que quanto mais vezes a memória é evocada (sem técnicas adequadas), maiores as chances de que ela seja distorcida [12]. A própria decisão proferida no HC 598.886/SC faz referência a esse dado ao registrar que “há (…) correlação entre a quantidade de vezes que uma testemunha/vítima é solicitada a reconhecer uma mesma pessoa e a produção de uma resposta positiva” (página 20 de 47). Assim, bastante temerário acreditar que se o ato fosse refeito, mesmo que em conformidade com a lei, poder-se-ia reaproveitar a fonte de prova (memória humana).

Justamente aqui reside a importância do papel desempenhado pelo delegado de polícia enquanto primeiro garantidor das liberdades públicas e do devido procedimento penal na fase de investigação preliminar. Incumbe, portanto, à autoridade policial, na condução dos procedimentos investigativos, zelar ao máximo pela higidez do ato formal de reconhecimento e, diante de eventual irregularidade, registrá-la nos autos para devido controle epistêmico da prova penal.

[1] LOPES JÚNIOR, Aury. Prefácio. In: ANSELMO, Márcio Adriano; BARBOSA, Ruchester Marreiros; CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de; MACHADO, Leonardo Marcondes. Polícia Judiciária no Estado de Direito. 01 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017, p. X.

[2] Sobre a apropriação, por parte de setores importantes da justiça criminal, inclusive de tribunais superiores, do discurso da inquisitividade e informatividade do inquérito policial como mais um engodo retórico para o não reconhecimento de nulidades processuais penais: MACHADO, Leonardo Marcondes. Manual de Inquérito Policial. 01 ed. Belo Horizonte: Editora CEI, 2020, p. 34-36.

[3] FENOLL, Jordi Nieva. Fundamentos de Derecho Procesal Penal. Madrid: Edisofer/Buenos Aires: EditorialBdeF, 2012, p. 232.

[4] SOARES, Gustavo Torrres. Investigação Criminal e Inovações Técnicas e Tecnológicas: perspectivas e limites. Tese (Doutorado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014.

[5] CECCONELLO, William Weber; STEIN, Lilian Milnitsky. Prevenindo Injustiças: como a psicologia do testemunho pode ajudar a compreender e prevenir o falso reconhecimento de suspeitos. Avances en Psicología Latinoamericana, Bogotá, v. 38, n. 1, p. 172-188, mar. 2020, p. 173-174. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.12804/revistas.urosario.edu.co/apl/a.6471>. Acesso em: 21.04.2020.

[6] LOFTUS, Elizabeth. Falsas Memórias e Erros Judiciários. Entrevista ao Canal Ciências Criminais. Disponível em: <https://canalcienciascriminais.jusbrasil.com.br/noticias/188132449/falsas-memorias-e-erros-judiciarios-entrevista-com-elizabeth-f-loftus>. Acesso em: 11.08.2020.

[7] MACHADO, Leonardo Marcondes; CECCONELLO, William Weber. É Necessário Rever as Técnicas de Investigação decorrentes da Memória Humana. São Paulo: Consultor Jurídico, 24 mar. 2020. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-mar-24/academia-policia-necessario-rever-investigacao-decorrente-memoria-humana>. Acesso em: 13.04.2020.

[8] NORMAN, Keneth A.; SCHACTER, Daniel. L.. False Recognition in Younger and Older Adults: exploring the characteristics of illusory memories. Memory & Cognition, v. 25, p. 838-848, 1997.

[9] MATIDA, Janaina. O Reconhecimento de Pessoas não pode ser Porta Aberta à Seletividade Penal. São Paulo: Consultor Jurídico, 18 set. 2020. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-set-18/limite-penal-reconhecimento-pessoas-nao-porta-aberta-seletividade-penal>. Acesso em: 14.12.2020.

[10] O item 3 da ementa do acórdão assim prevê: “O reconhecimento de pessoas deve, portanto, observar o procedimento previsto no artigo 226 do Código de Processo Penal, cujas formalidades constituem garantia mínima para quem se vê na condição de suspeito da prática de um crime, não se tratando, como se tem compreendido, de ‘mera recomendação’ do legislador. Em verdade, a inobservância de tal procedimento enseja a nulidade da prova e, portanto, não pode servir de lastro para sua condenação, ainda que confirmado, em juízo, o ato realizado na fase inquisitorial, a menos que outras provas, por si mesmas, conduzam o magistrado a convencer-se acerca da autoria delitiva. Nada obsta, ressalve-se, que o juiz realize, em juízo, o ato de reconhecimento formal, desde que observado o devido procedimento probatório” (grifo dos autores).

[11] CECCONELLO, William Weber; ÁVILA, Gustavo Noronha de; STEIN, Lilian Milnitsky. A (ir) repetibilidade da prova penal dependente da memória: uma discussão a partir da psicologia do testemunho. UNICEUB. Revista Brasileira de Políticas Públicas, v. 8, n. 2, p. 1058-1073, 2018.

[12] STEIN, Lilian Milnitsky; PERGHER, Giovanni Kuckartz. Criando Falsas Memórias em Adultos por meio de Palavras Associadas. Psicologia: Reflexão e Crítica, v. 14, n. 2, p. 353-366, 2001. Disponível em: <https://www.scielo.br/pdf/prc/v14n2/7861.pdf>. Acesso em: 05.08.2020.

Sobre os autores

Leonardo Marcondes Machado é delegado de polícia em Santa Catarina, doutorando e mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná, pós-graduado em Raciocínio Probatório pela Universidade de Girona (Espanha) e especialista em Direito Penal e Criminologia pelo ICPC. Professor em cursos de graduação e pós-graduação.

Fernanda Moretzsohn é delegada de polícia no Estado do Paraná, pós-graduada em Direito Público e pós-graduanda em Direito LGBTQ+.

Patricia Burin é delegada de polícia no Estado de Santa Catarina, mestra em Direito Constitucional e pós-graduada em Segurança Pública e Criminologia.

DELEGADOS.com.br
Portal Nacional dos Delegados & Revista da Defesa Social

 

 

 

 

 

Veja mais

Delegados da PF reagem a discurso do deputado Coronel Meira contra delegada

Parlamentar proferiu insinuações misóginas, ofensivas e infundadas contra a Delegada de Polícia Federal Carla Patrícia

Delegados da PF reagem a ameaças de deputado licenciado e prometem responsabilização

Federação dos Delegados de Polícia Federal - Fenadepol - repudia declarações de deputado licenciado

Delegada não pode ser investigada por desclassificar tráfico de drogas para porte, decide juíza

Judiciário afirma que a decisão da autoridade policial foi devidamente justificada, respaldada por fundamentos legais, e não evidenciou qualquer desvio funcional

Homem é morto após ser flagrado com esposa de amigo e debochar da traição

(MT) Polícia Civil apurou que a médica foi ao hospital onde a vítima estava internada e apagou evidências. Ivan Bonotto foi esfaqueado e morreu

Governador do PI anuncia nomeação de 660 policiais militares e concurso para as polícias

(PI) Rafael Fonteles também confirmou um novo concurso para ingresso na corporação, em 2026, com previsão de mil vagas

Piauí anuncia instalação de 1.200 câmeras inteligentes para segurança pública

SPIA: Novo sistema de videomonitoramento com inteligência artificial será lançado por Rafael Fonteles em 16 de agosto O secretário de Segurança Pública do Piauí, Chico Lucas, anunciou, nesta terça-feira (15),

Delegado é assassinado, mas na audiência de custódia a preocupação é se o assassino foi agredido

O delegado Márcio Mendes, da Polícia Civil do Maranhão, foi assassinado no dia 10 de julho de 2025 durante o cumprimento de um mandado de prisão. Dois policiais civis baleados.

Veja mais

ADEPOL-MA: CARTA ABERTA À SOCIEDADE MARANHENSE E AO GOVERNO DO ESTADO Diante do brutal assassinato do delegado Márcio Mendes, ocorrido durante o exercício de suas funções na zona rural de

11JUL25-MA-MARCIO

Caxias (MA), 11 de julho de 2025 – Uma operação policial na manhã desta quinta-feira (10), na zona rural de Caxias, terminou de forma trágica com a morte do delegado

09JUL25-RAQUEL-2

No Brasil, há uma realidade que raramente ganha espaço no debate público. Mais policiais morrem por suicídio do que em confrontos armados, seja durante o serviço ou nos dias de

Brasília (DF) – O Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) publicou, no Diário Oficial da União desta segunda-feira (30), a Portaria nº 961, datada de 24 de junho de

Pix, gatonet e facções criminosas estão entre os principais alvos do megapacote de combate à criminalidade que será apresentado por secretários estaduais de segurança pública nesta semana, durante a I

POST-MELHORES-DELEGADOS-2025-RUCHESTER-MARREIROS

Ruchester Marreiros Barbosa foi aluno do doutorado em Direitos Humanos da Universidad Nacional Lomas de Zamora, Argentina, foi aluno do mestrado em Criminologia e Processo Penal da Universidade Cândido Mendes,

Thiago Frederico de Souza Costa é Delegado da Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF), de Classe Especial. É graduado em Direito e pós-graduado em Altos Estudos em Defesa, pela Escola

Veja mais