‘O Estado não pode tratar preso como líder de nada’, diz juiz de Direito

Analisa corrupção de agentes públicos, atuação de facções criminosas e da guerra às drogas A primeira coisa que o juiz da Vara de Execução Penal (VEP), Luís Carlos Valois, fez em 2017 foi negociar a libertação de reféns na rebelião

Por Editoria Delegados

Analisa corrupção de agentes públicos, atuação de facções criminosas e da guerra às drogas

A primeira coisa que o juiz da Vara de Execução Penal (VEP), Luís Carlos Valois, fez em 2017 foi negociar a libertação de reféns na rebelião que resultou na morte de dezenas de detentos do Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), além de mais de duzentos foragidos, no primeiro dia do ano. A tragédia deu início a pior crise no sistema prisional dos últimos anos, exigindo atuação do Judiciário, governos federal e estadual, Defensoria Pública e outras instituições. Passado o momento mais agudo dos acontecimentos, Valois falou à reportagem de suas convicções sobre o tema, fruto de extensa pesquisa e vasta experiência no assunto, e elenca os motivos que fazem as facções criminosas estarem cada vez mais fortalecidas.

 

Que providências o senhor tomaria se tivesse recebido a carta que detentos escreveram informando risco de morte e denunciando corrupção?

Difícil dizer, porque a carta foi encaminhada ao Ministério Público e, antes de tomar qualquer medida, eu teria que ouvir o representante ministerial sobre o seu posicionamento e parecer sobre o caso.

 

É frequente que detentos denunciem à VEP a postura de gestores nas prisões e façam “pedidos de socorro”. Com que frequência os presos informam risco de morte e, em tese, qual a medida a ser adotada nesses casos?

Pedidos com relação a gestores não são frequentes, são raros, na verdade. Nos últimos anos quase não se tem visto. Informação com relação a risco de morte são frequentes sim. Mas, recentemente, o Ministério Público do Controle Externo da Atividade Policial interditou o batalhão de polícia para onde iam os presos com risco de morte, deixando a administração penitenciária de mãos atadas, posto que, quando há risco, normalmente ele abrange todos os estabelecimentos penais do sistema. O máximo que se tem podido fazer é enviar o preso para uma cela de “seguro” que, como se tem visto, não garante a vida do cidadão preso.

 

E qual seria a alternativa nesse caso?

O Estado, há muito, já devia ter criado um estabelecimento para recolher presos com risco, filhos, parentes de policiais, pessoas que auxiliaram a polícia de alguma forma, ex-policiais etc.

 

O senhor ficou surpreso com as denúncias de corrupção envolvendo a direção de unidades prisionais, com facilitação para entrada de armas e drogas?

Surpreso não fiquei, porque sabemos que essas armas só podem entrar mediante falha na fiscalização, mas a apuração desse tipo de irregularidade não cabe à Vara de Execuções Penais.

 

Em sua opinião, quais são as causa da atual crise no sistema prisional do Amazonas? E no que o sistema adotado no AM difere do restante do País?

A crise no sistema prisional do Amazonas tem a mesma origem da crise nacional do sistema penitenciário brasileiro, o superencarceramento, a superlotação, somados ao pouco investimento na área.

 

Que país o senhor citaria como modelo de um bom sistema carcerário?

Acho que não vem ao caso citar modelo, porque se a Lei de Execução Penal fosse cumprida, o Brasil teria um dos melhores sistemas penitenciários do mundo. Não adianta buscar soluções dentro da ilegalidade. Primeiro, há que se buscar cumprir a lei para depois tentar encontrar outros tipos de soluções.

 

Que providências imediatas precisam ser tomadas para contornar essa crise?

De forma imediata, é apurar o ocorrido, com todos os ramos da segurança pública atuando em conjunto e se comunicando, para que, em seguida, se abra a possibilidade de direcionar melhor os investimentos na área.

 

O que o Poder Judiciário e a Vara de Execuções Penais podem fazer para contribuir com o funcionamento adequado do sistema prisional?

No momento, estamos em contato direto com as autoridades policiais, auxiliando na recaptura dos presos que estão foragidos e na punição, via execução penal, dos presos que forem indiciados pelos eventos da última rebelião.

 

O ministro da Justiça disse que o sistema brasileiro prende muito e prende mal. O senhor concorda?

Concordo. Casos de menor potencial ofensivo deveriam responder em liberdade e, se condenadas, punidas com penas alternativas. Pessoas que cometeram crimes sem violência não deveriam ficar presas misturadas com pessoas que cometeram homicídio, latrocínio e estupro, por exemplo.

 

Com tantos foragidos à solta na cidade, o senhor compartilha da sensação de insegurança que tomou conta da população?

Não só em razão dos foragidos, como qualquer cidadão, compartilho a sensação de insegurança que o aumento da criminalidade de uma forma geral tem causado.

 

O senhor diz que ameaças são frequentes em sua carreira. A que o senhor atribui as ameaças?

As ameaças são objeto de apuração, e eu confio nas pessoas encarregadas disso. Ao mesmo tempo que o juiz da execução deve, por lei, resguardar o direito dos presos, também toma medidas severas contra aqueles detentos mais perigosos, e isso pode levar a ameaças, embora não tenha deixado nenhuma delas influenciar o meu trabalho.

 

O senhor afirma que presos são “empoderados” dentro da prisão. Que tipo de poder é esse? Como retirar deles esse poder?

Acho que o Estado, qualquer agente do Estado, não pode tratar preso como líder de nada. Preso tem que ser tratado como preso. Quando se permite considerar preso líder de uma ou outra facção, dentro do sistema carcerário, aquele preso ganha status, e isso não é bom. Criminoso e quadrilha têm que ser tratados como criminosos e como quadrilha, independentemente da organização desses grupos. Não compactuar com essas nomenclaturas seria um começo para deslegitimar esse poder interno.

 

O senhor foi investigado pela PF por suspeitas de envolvimento com facções por ter sido citado em conversas de presos e advogados grampeados na Operação La Muralla. O senhor acha que foi perseguido?

Não acho que fui perseguido. Acho que todos devem ser investigados quando há uma suspeita, embora ligação telefônica entre terceiros não devesse levantar suspeitas a esse ponto. O respeito que tenho pelo trabalho que faço, não deixando processos atrasados, zelando pelo que determina a lei, visitando os estabelecimentos penais, atendendo diariamente familiares e vítimas, em 17 anos de trabalho, é natural, mas muitos não compreendem. Faço apenas o que manda a lei, mas zelar pelo direitos dos presos, reconheço, causa uma antipatia. Todavia, uma antipatia injusta, visto que o cumprimento da lei é necessário para a manutenção do Estado de Direito.

 

O senhor defende que a guerra contra o tráfico de drogas é um equívoco muito grande. Pode explicar melhor essa tese?

A guerra não é contra o tráfico de drogas. Historicamente é uma guerra às drogas, algumas delas apenas, sem que nunca tenha havido um estudo científico para dizer o porquê de o álcool, que é a droga que mais causa violência, e o tabaco, que é a droga que mais mata, serem regulamentadas e outras não. A guerra às drogas foi objeto de meu doutorado na USP, e ficou bem claro que o Estado está perdendo dinheiro, o crime organizado está se financiando com as drogas ilegais, aumentando a corrupção no meio policial e os crimes em geral, enquanto todo tipo de criminalidade só cresce.

 

Qual é a consequência do foco sobre a questão das drogas?

O foco na questão das drogas tem feito com que muitos outros crimes mais sérios não sejam investigados. Hoje em dia, uma pessoa é assaltada, sequestrada, chega na delegacia e recebe um B.O. porque a polícia está nas ruas fazendo blitz para prender usuários e pequenos traficantes. A guerra às drogas tem prejudicado toda a segurança pública, superlotado o sistema penitenciário, com essas drogas tidas como ilegais financiando o crime, e proporcionando um exército de pessoas para o crime organizado. Temos feito isso, essa guerra, há cem anos, e as drogas aumentaram nas ruas, ficaram mais fortes e prejudiciais, enquanto não temos dinheiro para o tratamento e para a educação, inclusive para a educação relacionada às drogas.

 

O senhor é favorável à legalização de drogas como a maconha e a cocaína, sob o controle estatal, assim como o álcool e o cigarro?

Dizer que se é favorável à legalização é uma simplificação, pois o que se quer é a regulamentação. As drogas estão liberadas e entregues ao mercado negro. Quanto ao modelo de regulamentação também não há que se fazer comparações. Disse isso no meu livro “O direito penal da guerra às drogas”. Cada droga deve ter uma regulamentação diferente, assim como a do álcool não é igual a do cigarro, o que não se pode é entregar essa “regulamentação” para o crime organizado, que mata, causa violência e corrupção em um mercado sem qualquer controle, com regras apenas do submundo do crime.

 

A Crítica

 

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