A primeira lei especial sobre drogas no Brasil foi aprovada em 1976. Lei hiperpunitivista, elaborada sob a égide da política norte-americana da guerra contra as drogas (war on drugs). Punia o usuário com pena de prisão. A segunda lei especial foi editada em 2002, com muitos vetos. Daí o advento da lei atual (de 2006), que trouxe, dentre outras, três grandes novidades: pune mais severamente o traficante; distinguiu o grande do pequeno traficante (previsto no § 4º do art. 33) e passou a punir o usuário com penas (exclusivamente) alternativas.
No que diz respeito ao chamado “pequeno traficante” (réus primários e de bons antecedentes, sem vínculo com organizações criminosas) havia, dentre outros, dois questionamentos: é constitucional (ou não) a proibição de aplicação de penas alternativas para eles; a diminuição de pena do § 4º do art. 33, da Lei 11.343/2006, aplica-se para crimes anteriores (crimes cometidos durante a lei precedente)?
A primeira questão foi resolvida pelo STF quando julgou inconstitucional parte do art. 44 da lei de drogas (a que proibia penas alternativas). O Senado Federal, agora, emitiu resolução nesse sentido, tornando obrigatória definitivamente a decisão da Corte Suprema.
A segunda questão foi resolvida pelo STF no RE 596.152. Com empate na votação, prevaleceu o voto esplendoroso do ministro Ayres Britto, que tinha posição contrária e modificou seu pensamento, para admitir a retroatividade do § 4º do art. 33 da Lei 11.343/2006 aos fatos ocorridos no tempo das leis antigas. Muito lúcido o seu voto. O benefício do § 4º (diminuição da pena) é novo no nosso sistema jurídico. Não existia antes. A norma nova benéfica deve ter retroatividade. Inexistência de combinação de leis.
Os julgamentos da Corte Suprema foram importantíssimos porque, pelo histórico da chegada e do alastramento do crack no Brasil, os condenados denominados “pequenos traficantes” têm grande probabilidade ou mesmo quase certeza de serem dependentes que, após ceifados pelo tráfico e tornados dependentes, traficam para obter a dose diária para sustentar seu vício.
Trata-se de um novo paciente que desafia a própria ciência, que detém muito pouca informação e muito pouca gente (que entende do assunto) para lidar, na prática, com esse novo tipo de paciente que em passado recente (ou mesmo atualmente) era (é) tratado como criminoso marginal.
Sabemos que a maioria da população carcerária ainda é constituída por homens pobres, da cor negra ou parda e com baixa escolaridade. A maioria por crimes praticados contra o patrimônio ou por serem “pequenos traficantes”. Hoje, seis anos após a nova Lei de Drogas e com todo o empenho do Poder Público que ainda quase nada sabe desse paciente que anda tirando o sono dos médicos, é justo que seja dada uma chance a esses dependentes transvestidos de traficantes, que merecem a mesma chance dada aos dependentes. A lei é boa nesse ponto e deve retroagir para beneficiar os réus, mormente porque são míseros enfermos os dependentes de substancias psicoativas.
Quando levamos em consideração o alastramento do crack, a velocidade da desconstrução da personalidade desse tipo de adicto, a rapidez com que ele se embrenha pelo crime, em geral iniciando pelo furto para obtenção da porção diária da droga, a celeridade com que se instala a dependência e o assustador aumento do consumo da pedra por esse tipo de dependente, sabemos da quase inevitabilidade da vida marginal. Quem trabalha nessa área sabe que há um enorme o número de dependentes presos, enquadrados como traficantes. A lei de drogas, que veio para suavizar a situação dos usuários, acabou tendo efeito criminógeno, visto que hoje muitos deles são enquadrados como traficantes.
Uma coisa é a pessoa ser traficante, um mercador profissional de drogas, outra muito diferente é estar traficando para conseguir manter seu vício. Um é mercador criminoso, o outro é vítima da sua subserviência à droga.
A questão da quantidade de pedras de crack é um assunto muito complexo para determinar a distinção entre um usuário de um pequeno traficante. Por essa razão a questão da primariedade, com bons antecedentes e a ausência de vínculo com organizações criminosa são fatores imprescindíveis nesses casos para aplicação da pena alternativa ao invés de prisão.
É necessário não perder de vista a indispensável precisão na diferenciação entre a pessoa do dependente ou “do pequeno traficante” e do traficante profissional. E para que isso ocorra com acerto, quanto mais informação e aprimoramento sobre os hábitos, as práticas e a maneira de viver de um dependente, menos possibilidades de incorrermos em injustiça, propiciando ao dependente uma oportunidade de restauração.
Conceição Cinti é advogada e especialista em tratamento de jovens drogados. Escreve no blog http://educacaorestaurativa.blogspot.com/.
Luiz Flávio Gomes é jurista e cientista criminal. Fundador da Rede de Ensino LFG, diretor-presidente do Instituto de Pesquisa e Cultura Luiz Flávio Gomes. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), juiz (1983 a 1998) e advogado (1999 a 2001). Acompanhe meu Blog. Siga-me no Twitter. Assine meu Facebook.
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