Por Bruno Taufner Zanotti e Cleopas Isaías Santos
Título Original:
Diálogos institucionais: pode o Ministério Público requisitar
a instauração de inquérito policial no curso do PIC?
– Por Bruno Taufner Zanotti e Cleopas Isaías Santos
Muitos que conhecem a nossa trajetória, especialmente no que diz respeito ao posicionamento que adotamos acerca do poder investigativo do Ministério Público, podem estranhar o título deste artigo, na medida em que ele trata de um questionamento diretamente ligado a esse tema e pressupõe a aceitação do poder investigativo do Ministério Público.
Portanto, deve-se fazer uma importante consideração preliminar: este artigo se coloca após a discussão da constitucionalidade, legitimidade e legalidade da investigação conduzida pelo Ministério Público. De fato, somos veementemente contra o “puxadinho hermenêutico” feito pelo Supremo Tribunal Federal, a fim de legitimar um mero capricho institucional do Ministério Público, contrariando, inclusive, normas constitucionais; contudo, esse debate pode ser analisado em nosso livro Delegado de Polícia em Ação, publicado pela Editora Juspodivm, em julho deste ano, cujo tema foi abordado em mais de dez páginas na 4ª edição da obra.
Inclusive, a investigação presidida pelo Ministério Público gera um grave quadro de insegurança, tal como colocou o Ministro Cezar Peluso(1):
A investigação direta pelo Ministério Público, no quadro constitucional vigente, não encontraria apoio legal e produziria consectários insuportáveis dentro do sistema governado pelos princípios elementares do devido processo legal: a) não haveria prazo para diligências nem para sua conclusão; b) não se disciplinariam os limites de seu objeto; c) não se submeteria a controle judicial, porque carente de existência jurídica; d) não se assujeitaria à publicidade geral dos atos administrativos, da qual o sigilo seria exceção, ainda assim sempre motivado e fundado em disposição legal; e) não preveria e não garantiria o exercício do direito de defesa, sequer a providência de ser ouvida a vítima; f) não se subjugaria a controle judicial dos atos de arquivamento e de desarquivamento, a criar situação de permanente insegurança para pessoas consideradas suspeitas ou investigadas; g) não conteria regras para produção das provas, nem para aferição de sua consequente validez; h) não proveria sobre o registro e numeração dos autos, tampouco sobre seu destino, quando a investigação já não interessasse ao Ministério Público. Esclareceu que haveria atos instrutórios que, próprios da fase preliminar em processo penal, seriam irrepetíveis e, nessa qualidade, dotados de efeito jurídico processual absoluto. Seriam praticados, na hipótese, à margem da lei.
Ressalte-se que um dos problemas de maior gravidade diz respeito ao limite do objeto da investigação pelo Ministério Público. A escolha do objeto de investigação criminal do Ministério Público ficaria a critério do Promotor de Justiça? O Promotor de Justiça somente investigaria o que fosse conveniente e oportuno? Somente investigaria os crimes mais graves? O que são crimes mais graves? Então, ele somente investigaria os crimes de repercussão social ou de repercussão política? Por que não investigar também uma lesão corporal, um furto, um roubo ou mesmo uma violência doméstica?
Qualquer critério utilizado significaria a própria falta de critério, no sentido de que a escolha seria sempre uma escolha arbitrária (discricionária). Uma investigação criminal não pode ser casuística e deve ocorrer em todos os delitos que chegam ao conhecimento da autoridade com atribuição investigativa.
Acontece que o tema do artigo coloca-se um passo além desses debates. O artigo “tolera” a decisão do STF sobre a constitucionalidade do poder investigativo implícito do Ministério Público e “atropela”, inclusive, o problema de escolha do objeto da investigação acima exposto, a fim de analisar um ponto que tem gerado graves reflexos práticos para inúmeros Delegados de Polícia.
Imagine a seguinte situação: o Promotor de Justiça, diante de um fato criminoso, faz uso do seu poder investigativo implícito e decide, com base na Resolução nº 13/2006 do CNMP, instaurar um procedimento investigativo criminal (PIC). No curso da investigação, seja porque não tem interesse na continuidade da sua investigação, seja porque não conseguiu chegar a elementos de autoria e materialidade do crime, seja porque o café da manhã(2) não lhe pareceu suficientemente apetitoso, o Promotor de Justiça decide requisitar a instauração do inquérito policial com base nas informações coletadas no PIC até aquele momento. Desse modo, questiona-se: pode o Ministério Público requisitar a instauração de inquérito policial, no curso do PIC, gerando o arquivamento deste?
A resposta ao questionamento passa, necessariamente, por uma análise da Resolução nº 13/2006 do CNMP e das normas constitucionais sobre o tema. Inicialmente, de posse das peças de informações, o membro do Ministério Público pode, entre outras possibilidades, instaurar o PIC ou requisitar a instauração de inquérito policial. O tema é regulado pelo art. 2º da Resolução:
Art. 2º Em poder de quaisquer peças de informação, o membro do Ministério Público poderá: I – promover a ação penal cabível; II – instaurar procedimento investigatório criminal; III – encaminhar as peças para o Juizado Especial Criminal, caso a infração seja de menor potencial ofensivo; IV – promover fundamentadamente o respectivo arquivamento; V – requisitar a instauração de inquérito policial.
Nesse contexto, ou o Ministério Público faz uso do seu poder constitucional expresso de requisição ou faz uso do seu poder implícito de investigação. No primeiro caso, as peças de informação serão encaminhadas ao Delegado de Polícia, a fim de que seja instaurado o inquérito policial, podendo recusar o cumprimento da requisição se verificar que ela é ilegal (v.g., requisição fundamentada em denúncia anônima), se verificar a existência de alguma excludente de punibilidade ou se verificar que não se trata de hipótese de crime (fato típico, antijurídico e culpável) (3). No segundo caso, o próprio membro do Ministério Público instaurará o PIC, o qual deverá observar as regras da Resolução nº 13/2006 do CNMP.
Com base em uma simples leitura da Resolução nº 13/2006 do CNMP, verifica-se que a escolha entre instaurar o PIC ou requisitar a instauração de inquérito policial somente pode ser feita neste momento inicial. Não existem, na Resolução nº 13/2006 do CNMP, “saídas laterais” com a finalidade de o Promotor de Justiça simplesmente declinar da sua presidência do PIC. Trata-se, portanto, de uma decisão preclusiva do membro do Ministério Público, de modo que, uma vez instaurado o PIC, somente pode haver um final: a sua conclusão! Seja para propor a ação penal, seja para propor o arquivamento. Sobre o tema, são cristalinas redações dos dispositivos abaixo:
Art. 3º, § 4º, da Resolução nº 13/2006 do CNMP. No caso de instauração de ofício, o membro do Ministério Público poderá prosseguir na presidência do procedimento investigatório criminal até a distribuição da denúncia ou promoção de arquivamento em juízo.
Art. 15 da Resolução nº 13/2006 do CNMP. Se o membro do Ministério Público responsável pelo procedimento investigatório criminal se convencer da inexistência de fundamento para a propositura de ação penal pública, promoverá o arquivamento dos autos ou das peças de informação, fazendo-o fundamentadamente.
Não existe, portanto, conclusão de PIC para fins de instauração de inquérito policial. Tal como o inquérito policial, o PIC é “unidirecional”, sendo a conclusão o seu único desfecho legalmente cabível. O PIC, uma vez instaurado no âmbito do Ministério Público, deve ser concluído (arquivamento ou instauração de ação penal) no âmbito do Ministério Público.
Em outras palavras, eventual requisição para a instauração de inquérito policial pelo Promotor de Justiça, no curso da existência de PIC, sobre os mesmos fatos, mostra-se ilegal, abusiva e, como será analisado abaixo, inconstitucional. De forma mais incisiva: não se verifica como atitude em consonância com o sistema jurídico pátrio a possibilidade de o Ministério Público burlar o arquivamento com base em incabível conversão do PIC em inquérito policial, de modo a transferir para a Polícia Judiciária o seu insucesso na condução desse procedimento, majorando, inclusive, a lesão a direitos fundamentais com base na manutenção de procedimento investigativo sem justa causa. Nada obsta, por óbvio, que o Promotor de Justiça solicite o apoio da Polícia Civil, de modo a desencadear um trabalho conjunto entre as instituições.
Em relação às normas constitucionais sobre o tema… opa! quase esquecemos que não existe norma constitucional sobre o tema, afinal o poder de investigação é “implícito” e decorrente de um “puxadinho hermenêutico”. Mesmo implicitamente, um debate se faz necessário. Uma vez reconhecido o poder investigativo implícito do Ministério Público, o mesmo, de acordo com o STF(4) é amplo. É por isso que seria um contra censo admitir que o Ministério Público use tal poder e, ao mesmo tempo, admitir que o mesmo possa, a qualquer momento, simplesmente abrir mão desse poder. O poder investigativo não pode estar à disposição do membro do Ministério Público, a fim de que ele, a depender da sua vontade, continue (ou não) a investigação. Nesse contexto, seria inconstitucional eventual previsão, na Resolução nº 13/2006 do CNMP, da possibilidade de o Ministério Público requisitar a instauração de inquérito policial no curso do PIC.
Essa conclusão passa, também por uma questão de índole prática-constitucional. Aquele que preside uma investigação criminal tem contato direto com os fatos, com as testemunhas, com as provas produzidas e tem uma linha investigativa previamente estabelecida, compondo uma ligação entre os elementos de informação já produzidos e os elementos de informação que ainda devem ser produzidos. Ora, esse quadro fático é bruscamente interrompido quando, no meio do procedimento investigativo, altera-se o presidente do procedimento. Prejudica-se, portanto, a dilação probatória (provas em sentido amplo) e a linha investigativa traçada. Devemos ter uma postura mais responsável, coerente e íntegra com os pressupostos da investigação, com as normas constitucionais e com as normativas existentes. Nesse sentido, é cirúrgica a colocação de Guilherme de Souza Nucci(5):
Em primeiro lugar, a polícia judiciária não é órgão subalterno do Ministério Público, que possui, constitucionalmente, o seu controle externo, vale dizer, a fiscalização dos atos policiais. Em segundo lugar, a polícia judiciária não foi comunicada da investigação, que se iniciou muito tempo antes, para que pudesse efetivamente colaborar; logo, não é depósito de PICs malsucedidos. Seria desconsiderar a figura do Delegado de Polícia. Em terceiro lugar, como já se disse, assumindo o ônus investigatório, o Ministério Público deve concluí-lo e, não havendo provas, pleitear o seu arquivamento ao Judiciário. Lembremos que, arquivado o inquérito ou o PIC, somente poderá ser desarquivado com provas substancialmente novas. Então, remeter o caso para que a polícia continue a investigação frustrada é contornar o direito consolidado de quem é investigado de fazer cessar tal intromissão em sua vida, a menos que surjam novas provas. Em quarto lugar, basta fazer o raciocínio inverso, vez que não há hierarquia entre as instituições, ou seja, nenhum tipo de subordinação. Imagine-se o delegado findar o inquérito, sem solução, e encaminhá-lo ao Ministério Público sugerindo que prossiga a investigação a partir dali. Seria considerado um rebelde. Ora, utilizar o poder requisitório que lhe foi conferido constitucionalmente para tergiversar, fazendo uma investigação frustrada prosseguir, constitui evidente desvio funcional, gerando constrangimento ilegal.
Por fim, ressalta-se que o PIC tem igual equivalência ao inquérito policial, no sentido de que ambos compõem a chamada “investigação preliminar criminal”, buscam a produção de diligências investigas de modo a se colher todos os possíveis pontos de vista do fato, devidamente respeitados os direitos fundamentais dos afetados pela investigação policial, confirmando (ou não) a autoria e a materialidade. É por isso que a instauração de um procedimento deve levar, necessariamente, a impossibilidade de instauração do outro, a fim de evitar duplicidade de investigação, tema esse que merece abordagem própria em futuro artigo.
Afinal, ou adotamos o entendimento acima exposto ou então deveremos esperar sempre por bons cafés da manhã! A Polícia Judiciária não pode ser transformada em locus adequado ao depósito de PIC’s mal elaborados, mal instruídos ou mal sucedidos, verdadeiro cemitério de PIC’s. O sistema de investigação criminal, agora composto também pelo Ministério Público, graças ao “puxadinho hermenêutico”, merece mais do que isso…
Notas e Referências:
1 RE 593727, Rel. Ministro Cezar Peluso, consoante noticiado no inf. 671 do STF.
2 Trata-se de uma referência a Ronald Dworkin (2007, p. 187), crítico do pragmatismo jurídico, ao qualificar essa proposta hermenêutica como “… uma questão daquilo que os juízes tomaram no café da manhã”, ideia aplicável a qualquer aplicador do Direito, como o Delegado de Polícia ou Promotor de Justiça, quando adota uma postura que ele acredita ser a “melhor” para a sociedade com base no pragmatismo, sem compreender a importância das regras existentes no ordenamento jurídico.
3 SANTOS, Cleopas Isaías; ZANOTTI, Bruno Taufner. Delegado de Polícia em Ação: teoria e prática no Estado Democrático de Direito. 4ª ed. Rev. ampl. atual. Salvador: JusPodivm, 2016.
4 Esse parece que são os termos do RE 593727, Relator(a): Min. CEZAR PELUSO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 14/05/2015. Dizemos “parece”, pois, em relação ao mencionado RE, com base nos diversos votos díspares, foram opostos embargos de declaração, ainda em trâmite, o que pode dar novos contornos para a decisão final.
5 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 173.
DWORKIN, Ronald. O império do direito. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2007. 513 p.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. Rio de Janeiro: Forense, 2016.
SANTOS, Cleopas Isaías; ZANOTTI, Bruno Taufner. Delegado de Polícia em Ação: teoria e prática no Estado Democrático de Direito. 4ª ed. Rev. ampl. atual. Salvador: JusPodivm, 2016.
Sobre os autores:
Bruno Taufner Zanotti é Doutorando e Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Pós-graduado em Direito Público pela FDV. Professor do curso de pós-graduação Lato Sensu em Direito Público da Associação Espírito-Santense do Ministério Público. Professor do MBA em Direito Público da FGV-RJ. Professor do CEI, Curso Preparatório para Delegado de Polícia Civil. Professor de cursos preparatórios para concurso público nas áreas de direito constitucional, penal e processo penal. Delegado da Polícia Civil do Estado do Espírito Santo. Fundador, em parceria com o juiz André Guasti Motta, do site Penso Direito (www.pensodireito.com.br) e colunista do site www.delegados.com.br.
Cleopas Isaías Santos é Mestre e Doutorando em Ciências Criminais pela PUCRS. Professor de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco – UNDB. Professor de Pós-Graduação latu sensu em diversas instituições. Pesquisador da Fundação de Amparo à Pesquisa e Desenvolvimento Científico do Maranhão – FAPEMA. Delegado de Polícia.
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