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Ensaio sobre as reformas processuais (Parte I)

por MARCELO FERNANDES DOS SANTOS

A retórica de que o processo penal se presta, ao estabelecimento do suporte fático em submissão a lei e a conseqüente aplicação da sanção cabível, é de todo incompleta e refutável. “Além do mais, é uma concepção do paradigma clássico e repressivo do processo penal, que não encontra mais legitimidade constitucional numa sociedade civilizada”.[i]

 

É preciso que o processo penal seja visto “não mais como uma obrigatória necessidade de implementar a ’luta contra o crime’ para assegurar a ‘ordem social’, mas como um legítimo instrumento a serviço de um Direito Penal democrático e, acima de tudo, a serviço dos direitos fundamentais do cidadão”.[ii] Na mesma direção, “destacamos que o processo penal constitui uma instância formal de controle do crime, e, para a Criminologia, é uma reação formal ao delito e também pode ser considerado como um instrumento de seleção, principalmente nos sistemas jurídicos que adotam princípios como o da oportunidade, plea bargaining e outros mecanismos de consenso. Ademais, da mesma forma que o Direito Penal é excludente (tanto quanto a sociedade), o processo e seu conteúdo aflitivo só agravam a exclusão, eis que se trata de inegável cerimônia degradante que possui seus ‘clientes preferenciais’.”[iii]

 

Não obstante se releve a necessária subordinação da lei penal material à lei fundamental, onde se pode verificar a eficiência do processo penal ao se instrumentalizar a tutela dos direitos fundamentais. A postura do direito padronizado, erigindo a partir de uma “cultura estandartizada, no interior da qual a dogmática jurídica trabalha com prêt-à-porters significativos[iv], reproduzido em moldes ultrapassados, deve ser abandonada, “mais adequada será a adoção de critérios reveladores de princípios que deverão desenvolver-se em contato com a realidade, moldando-se a esta”.[v]

 

Sendo assim, refuta-se “a idéia da ciência jurídica como um sistema fechado, para passar a compreendê-lo como um sistema aberto.” O conhecimento científico jurídico, apresenta caracteres de mutabilidade dos axiomas em relação aos seus valores fundamentais, em decorrência “de ser o direito um fenômeno situado no processo da história e, por isso, mutável.[vi]

 

O vértice do processo de construção do direito é (ou deveria ser) sempre o fato social. Isto porque, a norma deve estar condicionada aos fatos sociais – a norma é que existe para o homem, e não o contrário. “Não se admitem, portanto, princípios cartesianos no processo de reconstrução das ciências jurídicas, que devem estar atentas ao dinamismo da sociedade para melhor atualização da lei.” Não podemos ser tolerantes com a inércia do existir humano, a exemplo dos dados cartesianos. “A vida social não é composta de uma sucessão de fatos predeterminados.”[vii]

 

Para Selma de Santana, o ideal da realização do sistema jurídico-penal, seria quando este pudesse alcançar níveis em que fossem possíveis as percepções de subsistemas que tratariam de cuidar individualmente “do delito e da sanção, da sua previsão legal, como da sua persecução”, englobando assim, direito penal e processo penal, em esferas delineadas, mas dentro de um mesmo organismo, aberto à reciprocidade de concepções, ou seja, entre cada elo deve haver uma mão dupla de percepções.[viii]

 

Em que pese o objetivo dos operadores da dogmática penal, seja implantar “um modelo ideal, possível apenas por aproximação, em que se assegurem mecanismos de proteção da liberdade humana frente ao eventual exercício arbitrário do poder pelo Estado” – baseado no ministério de Ferrajoli – vivemos em modelo de política criminal, que sustenta o autoritarismo, convalescido pela visão do sistema voltado à punição do agente a todo custo, chamado, modernamente, de antigarantista. “Em uma visão garantista, ao reverso, busca-se uma verdade processual onde a reconstrução histórica dos fatos objeto do juízo sujeita-se a regras precisas, que assegurem às partes um maior controle sobre a atividade jurisdicional.[ix]

 

O processo penal tido como meio de realização da política criminal, aliado ao direito penal, compondo uma homogeneidade prática incide em que “quaisquer princípios diretores da política criminal possuem, também, uma dimensão processual. Diante disso, tem-se mostrado, como alternativa idônea, uma reconstrução do processo penal em termos de política criminal, com vistas a preservar sua natureza garantística, sem obstaculizar a viabilidade do sistema penal, com vista a uma maior eficiência ou funcionalidade[x]. A partir destas linhas, cada ajuste no direito penal instrumental, deve levar em consideração os princípios que norteiam a política criminal como um todo, inserido num sistema jurídico.

 

 

Notas:

 

[i] GIACOMOLLI, Nereu José. Ob. Cit, p. 5.

[ii] PINHO, Ana Cláudia Bastos de. in Dubio pro Societate X Processo Penal Garantista. Disponível na internet: www.direitocriminal.com.br, 09.01.2001.

[iii] LOPES JR. Aury. Introdução crítica ao processo penal. Ob. Cit, p. 5 e 6.

[iv] STRECK, Lenio Luiz. A dupla face do princípio da proporcionalidade e o cabimento de mandado de segurança em matéria criminal: superando o ideário liberal-individualista-clássico. Disponível na Internet: www.leniostreck.com.br. Acesso em 12.02.2005. Sobre a visão funcional da fusão cátedra/vida-real, Copetti bem examina o ensino jurídico brasileiro. Refere ele que: “E é por este caminho conservador e irreal, para não denominá-lo surreal, que tem caminhado uma grande fatia da ciência jurídico-penal, cujo ‘pensamento’ tem fundamentado não só a produção legislativa, mas, também, a maior parte de todo o sistema de ensino jurídico formador dos futuros juristas de nosso País.” A respeito ver: COPPETI, André. Direito Penal e Estado Democrático de Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000.

[v] SANTANA, Selma Pereira de. A tensão dialética entre os ideais de “garantia” “eficiência” e “funcionalidade”. Revista Brasileira de Ciências Criminais, número 52, ano 2005, p. 256.

[vi] SANTANA, Selma Pereira de. Ob. Cit, p. 257.

[vii] COSTA, José Americo Abreu. As bases filosóficas da reforma penal. Boletim IBCCRIM. São Paulo, v.7, n.77, p. 14, abril 1999.

[viii] SANTANA, Selma Pereira de. Ob. Cit, p. 257.

[ix] CRUZ, Rogerio Schietti Machado. A verdade processual em Ferrajoli. Boletim IBCCRIM. São Paulo, v.9, n.106, p. 9-10, set. 2001.

[x] SANTANA, Selma Pereira de. Ob. Cit, p. 268.

 

Sobre o autor


José Carrazzoni Jr.

Advogado

Pós-graduado em Direito e Processo Penal (Ulbra)

Egresso da Escola Superior do Ministério Público (RS)

Colunista do Portal Nacional dos Delegados

 

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