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Conduzir preso na viatura sem o cinto de segurança pode até relaxar a prisão em flagrante

por Editoria Delegados

Por João Paulo Orsini Martinelli

 

O título e o conteúdo deste artigo podem até ser exagerados e sem amparo na doutrina e jurisprudência majoritária, mas merece leitura e atenção para ficar cônscio do que pode acontecer futuramente. A Coordenaria Jurídica do Portal não concorda com essa tese. Editora do Portal Nacional dos Delegados.

 

 

Título original:  A condução do preso na viatura sem o cinto de segurança: ilegalidade além da infração de trânsito

 

Cena comum no cotidiano das forças de segurança pública é a prisão de um suspeito (geralmente pobre e negro) e a colocação do mesmo na caçamba de uma viatura. Primeiro, algema-se o preso, em seguida há a exposição indevida ao público e, por fim, este é colocado no fundo da viatura, sem qualquer tipo de proteção. A pessoa algemada, sem o cinto de segurança, é conduzida à autoridade policial ou judicial, sem a garantia de que sua integridade física será preservada. Esse tipo de condução, além de desrespeitar a pessoa conduzida, representa violação às normas de trânsito. E aí surge a dúvida: quem multa o agente público que viola as leis de trânsito e não cumpre seu dever legal?

 

Há quem diga que exigir a segurança do preso em sua condução na viatura é bobagem, é coisa dos “defensores de bandidos”. Não restam dúvidas de que a integridade física, a saúde e a vida de uma pessoa – quem quer que seja – é direito fundamental que deve ser garantido pelo ordenamento jurídico. No entanto, mesmo que deixemos de lado os direitos fundamentais do conduzido, podemos analisar a questão pelo lado de quem conduz, ou seja, dos agentes públicos que realizam a prisão. Se a cultura jurídica brasileira ainda é fortemente conduzida pela pura legalidade, em desprezo aos preceitos constitucionais, então é por esse instrumento que defenderemos a ilegalidade da conduta.

 

O Código de Trânsito Brasileiro (Lei 9.503/97) aponta diversas infrações administrativas de trânsito e vários quesitos de segurança que devem ser obedecidos. O art. 105, I, da referida lei determina que o cinto de segurança é equipamento obrigatório de segurança[1]. Não restam dúvidas sobre a eficácia do cinto para a redução de danos causados por acidentes de trânsito: segundo dados da Associação Brasileira de Medicina de Tráfego, o risco de morte é reduzido em 45% pelo uso do cinto nos bancos dianteiros; em relação ao banco traseiro, o risco cai em 75%.

 

Poucas são as exceções legais para a dispensa do cinto de segurança. A Resolução 518 do CONTRAN, que institui os requisitos mínimos para o equipamento, deixa de fora as viaturas militares previstas na Resolução 797 de 1995. Tal resolução, em seu art. 1.o, define que os veículos militares “para efeito do Código Nacional de Trânsito e do seu Regulamento são as Viaturas Militares Operacionais das Forças Militares”. Complementa a definição o parágrafo único: “Viatura Militar Operacional das Forças Armadas é aquela fabricada com características específicas para ser utilizada em operação de natureza militar, tática ou logística, de propriedade do Governo, para atendimento de suas Organizações Militares”. Portanto, de acordo com a resolução, as viaturas das polícias militares estariam fora da obrigatoriedade do uso do cinto de segurança.

 

Acontece que a Resolução 797 foi expressamente revogada pela Resolução 570 de 2015 (art. 4.o). A novel resolução fica restrita à definição do veículo militar de “uso bélico”, definido como a “Viatura Militar Operacional, de propriedade da União, fabricada ou implementada com características especiais, destinada ao preparo e emprego em operações de natureza militar das Forças Armadas, no cumprimento das suas missões constitucionais e infraconstitucionais” (art. 1.o). Ficam de fora, assim, as viaturas das polícias militares destinadas à segurança pública. Com a revogação da resolução anterior, apenas os veículos bélicos ficam fora da obrigatoriedade do uso do cinto de segurança. Dessa maneira, podemos concluir que todas as viaturas dos órgãos de segurança pública, das polícias militares e das polícias judiciárias, estão obrigadas a transportar seus passageiros com o uso do cinto de segurança. Até as guardas municipais, que extrapolam seu papel constitucional de zelar pelo patrimônio do município, estão obrigadas a fazer uso do equipamento de segurança.

 

A condução de pessoas na caçamba de viaturas é ilegal. Se formos além, pode-se discutir, inclusive, a ilegalidade da prisão em flagrante pela violação às normas de segurança de trânsito. O uso obrigatório do cinto de segurança tem como principal finalidade reduzir as chances de danos à saúde, à integridade física e à vida do passageiro. A ausência do equipamento na condução da pessoa presa representa violação ao direito à segurança no trânsito, especialmente porque a mesma está sob responsabilidade do Estado. Eventual omissão em proporcionar segurança na condução pode gerar responsabilidade penal pelo resultado lesivo, em caso de acidente, pois o agente público envolvido no caso concreto assume a posição de garante.

 

Segundo consta na Lei 4.898/65, constitui abuso de autoridade “qualquer atentado à incolumidade física do sujeito”. A condução sem o uso do cinto de segurança, especificamente na caçamba, expõe o conduzido ao risco de danos à sua integridade física. Configura-se o abuso de autoridade porque basta o atentado, não há necessidade de lesão efetiva. Cabe acrescentar que o abuso de autoridade é praticado por meio de outros tipos penais, como a periclitação à vida ou à saúde de outrem, lesão corporal – em todas as suas modalidades – e até o homicídio. Não restam dúvidas de que o atentado à incolumidade física durante a condução do preso gera a ilegalidade do flagrante, que pode ser ampliada pelo uso indevido de algemas, contrariando a Súmula Vinculante 11.

 

Resta lembrar que há lei específica para regulamentar o transporte de presos (Lei 8.653/93). É uma lei pequena, concisa, que não dá a devida importância ao tema. Seu texto se reduz a quatro artigos, entre os quais um foi vetado e apenas o primeiro dispõe sobre regras de transporte: “é proibido o transporte de presos em compartimento de proporções reduzidas, com ventilação deficiente ou ausência de luminosidade”. A norma é bastante vaga e pouco acrescenta às regras de segurança. Entretanto, não se pode negar que se estipula um mínimo de segurança e proteção para a condução do preso. Da leitura desta lei, conjugada com os regulamentos citados, extrai-se que é proibido o transporte em caçambas, pois ali não há cinto de segurança e o compartimento é apertado e insalubre, fora dos padrões mínimos de segurança.

 

Em conclusão, conduzir o preso sem o uso do cinto de segurança, especialmente na caçamba, é ato ilícito que deve ser reprimido pelas forças de segurança pública e, em última instância, pelo Poder Judiciário. Além de constituir infração administrativa prevista no Código de Trânsito Brasileiro, também é crime de abuso de autoridade. O mero atentado à integridade física já é suficiente para configurar o crime, porém, se houver o resultado lesivo, o mesmo será imputado a quem lhe deu causa, ou seja, o agente público, representante do Estado, a quem incumbe sua custódia. No caso da prisão em flagrante com a condução sem o cinto, deve-se conceder o respectivo relaxamento, pois, em caso negativo, o juiz referendará conduta ilegal. O respeito à dignidade humana começa muito antes da prisão, retroagindo ao primeiro contato da autoridade pública com o acusado, independentemente do crime praticado.

 

Notas e Referências:

 

[1] Sobre o tema, fizemos abordagem a respeito dos direitos do preso, entre os quais a manutenção de sua integridade do transporte de viaturas (Martinelli, João Paulo Orsini; Bem, Leonardo Schmitt de. Lições Fundamentais de Direito Penal, parte geral. São Paulo: Saraiva. 2016).

 

Sobre o autor:

João Paulo Orsini Martinelli é Professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), Mestre e Doutor em Direito Penal (Universidade de São Paulo), Pós-Doutor em Direitos Humanos (Universidade de Coimbra), Advogado Criminalista, Coordenador-adjunto no IBCCRIM no Rio de Janeiro.

 

Do Empório do Direito

 

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