“A polícia enxuga gelo”

Por Raquel Gallinati

por Editoria Delegados

Essa frase, repetida como um mantra cínico por quem observa de longe, reflete uma visão simplista, quase cruel, de um trabalho que exige coragem, sacrifício e fé. Para quem veste uma farda, carrega um distintivo no peito ou se posiciona na linha de frente, o trabalho nunca é apenas “enxugar gelo”. É muito mais: é prevenir, proteger, manter a ordem e, muitas vezes, salvar vidas em meio a um sistema que frequentemente emperra.

O gelo da metáfora não é estático; ele derrete e se espalha, podendo transformar-se em um problema ainda maior: uma enchente descontrolada. A cada abordagem, a cada prisão, a cada criminoso retirado das ruas, a mensagem é clara: existe quem se importe, quem lute, quem acredite que é possível melhorar, mesmo enfrentando as adversidades de leis frágeis, prisões que não se sustentam e uma estrutura que muitas vezes não acompanha a complexidade do crime.

Desistir não é uma opção. E, sem resistência, não haverá quem impeça o caos. É justamente isso que distingue quem atua na linha de frente: a convicção de que cada gesto importa. Não por vaidade, ou reconhecimento, mas pela certeza de que a segurança é construída dia após dia, mesmo que em pequenos atos, muitas vezes invisíveis e sem aplausos.

Quem repete o jargão “a polícia só enxuga gelo” desconhece o impacto de cada intervenção. Uma vida salva, um crime evitado, uma rua que volta a ser transitável – são vitórias silenciosas, mas poderosas. Pequenos marcos que, juntos, sustentam o frágil equilíbrio que mantém a sociedade de pé.

Ser polícia é resistir. É enfrentar, diariamente, a desilusão que ameaça consumir quem luta por um sistema mais justo. É enxergar falhas e, mesmo assim, escolher continuar, porque não existe alternativa para quem acredita que a segurança pública vai além de uma obrigação do Estado: é uma promessa de futuro.

No fim, talvez o trabalho da polícia não seja “enxugar gelo”. Talvez seja, na verdade, impedir que ele derreta e afogue a todos nós.

Sobre a autora

Raquel Gallinati é Secretária de Segurança Pública de Santos, Diretora da Associação dos Delegados de Polícia do Brasil e Mestre em Filosofia

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