Spillover regulamentar: Decreto 11.615/2023 não pode ultrapassar os limites da Lei

Spillover regulamentar Na ciência, spillover representa um transbordamento das consequências naturais e esperadas de um determinado fenômeno. Nesse sentido, ousamos dizer que, no que tange ao Decreto n. 11.615/2023, ele extrapolou o que dele se esperava como disciplina acessória do Estatuto do Desarmamento (Lei n. 10.826/2003). Por isso, falamos em spillover regulamentar. O Decreto surge […]

Por Editoria Delegados

Spillover regulamentar

Na ciência, spillover representa um transbordamento das consequências naturais e esperadas de um determinado fenômeno.

Nesse sentido, ousamos dizer que, no que tange ao Decreto n. 11.615/2023, ele extrapolou o que dele se esperava como disciplina acessória do Estatuto do Desarmamento (Lei n. 10.826/2003). Por isso, falamos em spillover regulamentar.

O Decreto surge com o aparente objetivo de ajustar as medidas armamentistas mais permissivas tomadas pelo governo anterior. Contudo, esse decreto acabou resultando efeitos exorbitantes e, surpreendentemente, abrangendo questões que ultrapassam bastante o escopo da Lei n. 10.826/2003.

Essa situação contraria a essência do Poder Regulamentar, na medida em que a atividade é vinculada e limitada pela lei de regência, não sendo lícito extrapolar a lei que lhe dá sustentação.

Extrapolamento processual: medida cautelar diversa da prisão automática

O Decreto 11.615/2023 estabeleceu mecanismo cautelar que vai além dos parâmetros do Estatuto do Desarmamento. Criou-se a medida cautelar automática que proíbe a obtenção ou renovação do passaporte como consequência da não-renovação do CRAF, nos termos do mencionado decreto.

Art. 26. Na hipótese de o CRAF não ser renovado antes da expiração do prazo estabelecido no caput do art. 24, o proprietário da arma de fogo será notificado, por meio eletrônico, para, no prazo de sessenta dias: § 2º Na hipótese prevista no § 1º, o proprietário de arma de fogo não poderá: II – obter a emissão ou a renovação de passaporte.

O decreto, extrapolando seu restrito raio de incidência, reproduziu mecanismo simétrico à cautelar diversa da prisão prevista no artigo 320 do CPP, proibindo alguém, sem justificativa específica, de renovar ou obter passaporte, em virtude de pendências do documento vinculado à sua arma de fogo.

O dilema crucial é que essa cautelar vem desprovida de qualquer necessidade de justificar a medida, bem como será decretada como consequência automática de tal irregularidade administrativa. Mas o pior é que se dá sem necessidade de autorização judicial ou de uma decisão fundamentada da Autoridade Policial responsável pela renovação do CRAF.

Sob tal ótica, a legalidade dessa medida pode ser questionada, já que não apresenta conexão lógica com a omissão do possuidor da arma em preencher os requisitos para a renovação do registro de sua arma. Afinal, é consequência natural da referida desconformidade administrativa a sua fuga do país?

Embora possa ser atribuída à conveniência administrativa funcional, dado que a Polícia Federal é responsável tanto pela emissão de passaportes quanto pelo controle de armas, não há coerência na presente previsão normativa. Bastava a permissão de busca e apreensão administrativa da arma, conforme foi previsto nos parágrafos primeiros dos arts. 26 e 28 do decreto.

Complementando a Lei de contravenções penais

O artigo 19 da Lei das Contravenções Penais (LCP) incrimina a conduta de portar arma fora de casa, sem licença da autoridade competente.

Em relação às armas de fogo, o referido artigo foi tacitamente revogado pelo artigo 10 da Lei 9.437/1997, que, por sua vez, foi revogado pela Lei 10.826/2003. Entretanto, em relação às demais armas, o artigo 19 continua em vigor, não havendo que se falar em violação ao princípio da intervenção mínima ou da legalidade[1].

Art. 19. Trazer consigo arma fora de casa ou de dependência desta, sem licença da autoridade: Pena – prisão simples, de quinze dias a seis meses, ou multa, de duzentos mil réis a três contos de réis, ou ambas cumulativamente.

O dispositivo acima não esclarece o que seriam armas brancas e quais delas estariam nele contempladas. A doutrina se esforça nesse sentido, ainda que saibamos que caberá ao operador do Direito decidir sobre o que é arma branca própria ou imprópria[2]. A referida elementar, portanto, é um elemento normativo do tipo.

Antes desse decreto, pairavam dúvidas quanto à classificação de armas de brinquedos, réplicas e simulacros de armas de fogo. Entretanto, o Decreto n. 11.615/2023, ultrapassando seu espectro de abrangência, coloca fogo na discussão e define que são tais objetos considerados armas, ainda que não sejam de fogo.

Não se pode dizer que houve a ampliação do conceito de arma branca. O decreto só esclareceu que os referidos objetos materiais são consideradas armas brancas, sem excluir qualquer outro objeto semelhante que, pela valoração do operador do Direito, possa assim ser considerado.

Portanto, em nossa análise, a expressão ‘arma’, constante em diversos tipos penais, adquire uma natureza mista. Ela mantém sua essência como elemento axiológico do tipo penal, requerendo valoração por parte do operador do direito e, no contexto de armas de brinquedo, réplicas e simulacros, constitui exemplo de norma penal em branco, pois a definição vem estabelecida no Decreto 11.615/2023, que os considera armas branca.

Esse raciocínio é fruto de uma interpretação sistemática do Decreto e da própria topologia da norma, que está inserida no título “Armas e munições de uso proibido”, denotando que brinquedo, réplicas e simulacros integram um grupo de armas vedadas pelo legislador.

Armas e munições de uso proibido

Art. 14. São de uso proibido: II – os brinquedos, as réplicas e os simulacros de armas de fogo que com estas possam se confundir, exceto as classificadas como armas de pressão e as réplicas e os simulacros destinados à instrução, ao adestramento ou à coleção de usuário autorizado, nas condições estabelecidas pela Polícia Federal;

O artigo 14 também se revela importante ao esclarecer a dúvida histórica sobre quem seria a autoridade competente por conceder licenças para o porte de armas brancas. O Decreto destaca que, no que se refere a brinquedos, réplicas e simulacros de armas de fogo, a responsabilidade de autorização fica a cargo da Polícia Federal, nas restritas situações de instrução, adestramento ou coleção de usuários. Fora desses contextos, as condutas de possuir e transportar esses itens são terminantemente proibidas, conforme artigo 19 da Lei de Contravenções Penais.

Repercussão conceitual nas majorantes do Código Penal

Ainda que os brinquedos, as réplicas e os simulacros de armas de fogo não se encaixem no conceito de armas de fogo, são considerados, por força do presente decreto, espécies do gênero arma.

E isso traz reflexos importantes em diversas figuras típicas, a exemplo do crime de roubo, pois se a violência ou grave ameaça for exercida com emprego de arma branca, incide a majorante de 1/3 até a ½ (art. 157, inciso VII, do Código Penal).

Até mesmo a pretérita discussão travada no âmbito da cancelada Súmula 174 do STJ, ressuscitou, ainda que com uma nova roupagem. A referida súmula previa: no crime de roubo, a intimidação feita com arma de brinquedo autoriza o aumento da pena. Veremos isso mais adiante.

A discussão sobre o tema, anteriormente abordado na cancelada Súmula 174 do STJ, ressurge com uma nova abordagem. A súmula em questão abria margem para que, no crime de roubo, o uso de uma arma de brinquedo – pelo caráter intimidatório – justificaria o aumento da pena. Dava-se a entender que tais objeto podiam mesmo ser considerados arma. No entanto, essa questão foi alvo de tantas reformas legislativas sucessivas, especialmente no que diz respeito às diferentes gradações de majorantes do roubo, que esses instrumentos foram sendo paulatinamente alijados dessa discussão.

Mas a recente menção explícita de que esses objetos se enquadram no conceito amplo de arma reabre a possibilidade de discutir a aplicação das majorantes de arma branca quando tais objetos forem utilizados em atividades criminosas. Para ilustrar essa situação, vamos analisar o exemplo do roubo:

Art. 157. § 2º A pena aumenta-se de 1/3 (um terço) até metade:VII – se a violência ou grave ameaça é exercida com emprego de arma branca (Código Penal).

No crime de extorsão a situação é ainda mais curiosa, pois não há uma gradação da majorante quando o crime é cometido com o emprego de arma branca ou arma de fogo, resultando em uma equiparação desproporcional entre um simulacro de arma de fogo e outra de verdade. É fundamental que o Poder Legislativo corrija essa discrepância, adotando a mesma regra que já foi aplicada ao crime de roubo.

Art. 158 – Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, e com o intuito de obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica, a fazer, tolerar que se faça ou deixar de fazer alguma coisa: Pena – reclusão, de quatro a dez anos, e multa. § 1º – Se o crime é cometido por duas ou mais pessoas, ou com emprego de arma, aumenta-se a pena de um terço até metade

O novo conceito de arma terá impacto em diversos outros dispositivos do Código Penal. Por exemplo, o artigo 146 (Constrangimento ilegal), o artigo 147-A (Stalking) e o artigo 150 (violação de domicílio) são alguns tipos penais que utilizam a expressão genérica “arma”, não se restringindo ao conceito de arma de fogo.

Repaginação da Súmula 174 do STJ, as armas de pressão e outras controvérsias

Causa um certo espanto algumas guinadas terminológicas no referido Decreto. Algumas delas até são compreensíveis, enquanto outras parecem claros equívocos técnicos.

Em nossa perspectiva, incluir armas de brinquedo e simulacros no rol de armas não parece ser um raciocínio descabido, especialmente considerando as discussões decorrentes da Súmula 174 do STJ e a engenharia da revogada Lei n. 9.437/97.

Lembre-se de que a Lei n. 9.437, de 20.02.1997, em seu art. 10, § 1o, inciso II, criminalizava a utilização de arma de brinquedo para o fim de cometer crimes, inclusive no mesmo dispositivo que tratava sobre condutas ilícitas afetas às armas de fogo, o que indica que tais objetos também eram reconhecidos como insertos no gênero arma.

Art. 10. Possuir, deter, portar, fabricar, adquirir, vender, alugar, expor à venda ou fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda e ocultar arma de fogo, de uso permitido, sem a autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar. Pena – detenção de um a dois anos e multa. § 1° Nas mesmas penas incorre quem: II – utilizar arma de brinquedo, simulacro de arma capaz de atemorizar outrem, para o fim de cometer crimes (Lei n. 9.437/97).

Além disso, é importante reconhecer que esses objetos possuem engenharia típica dos materiais bélicos e, inclusive por isso, aptidão até maior de ferir vítimas, quando comparados a um taco de beisebol ou uma garrafa de cerveja. É só se lembrar das famigeradas coronhadas.

Ao revés desses acertos, percebemos uma incongruência involuntária no artigo 12 do Decreto ao classificar armas de pressão como armas de fogo. É essencial recordar o conceito delineado no inciso XIII do art. 3º do Decreto nº 3.665, de 20 de novembro de 2000, corroborado por diplomas regulamentares subsequentes, como o Decreto n. 10.030/2019:

arma de fogo: arma que arremessa projéteis empregando a força expansiva dos gases gerados pela combustão de um propelente confinado em uma câmara que, normalmente, está solidária a um cano que tem a função de propiciar continuidade à combustão do propelente, além de direção e estabilidade ao projétil;

Portanto, é inviável classificar como arma de fogo de uso restrito, nos termos do artigo 12 do Decreto, as armas de pressão por ar comprimido ou por ação de mola, uma vez que não são movidas pela combustão de propelente, atributo necessário para essa classificação.

Art. 12. São de uso restrito as armas de fogo e munições especificadas em ato conjunto do Comando do Exército e da Polícia Federal, incluídas: II – armas de pressão por gás comprimido ou por ação de mola, com calibre superior a seis milímetros, que disparem projéteis de qualquer natureza, exceto as que lancem esferas de plástico com tinta, como os lançadores de paintball;

O posicionamento indevido do órgão de perícia oficial

Note-se que o decreto ultrapassa significativamente os limites estabelecidos pela Lei n. 10.826/2003 e até mesmo o próprio arranjo constitucional descrito no artigo 144 da Constituição Federal. Esse foi um erro grave, portanto.

O artigo 6º da Lei n. 10.826/2003 prevê vários órgãos de segurança pública com legitimidade de porte de arma funcional, mas, em nenhum inciso, fez-se menção a órgãos de perícia (quando desvinculados da Polícia Judiciária). O decreto extrapola o desenho corporativo constitucional e legal, especialmente ao incluir os órgãos de perícia criminal como beneficiários do porte de arma funcional. Essa discrepância pode ser observada nos artigos 7º, § 1º, inciso III, alínea f, bem como no artigo 82 do Decreto, que estabelece uma modificação semelhante no artigo 34 do Decreto nº 9.847, de 25 de junho de 2019.

[1] STJ. 5ª Turma. RHC 56128-MG, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 10/03/2020 (Info 668).

[2] Luiz Regis Prado ensina que o sentido do vocábulo arma “deve ser compreendido não só o aspecto técnico (arma própria), em que quer significar o instrumento destinado ao ataque ou defesa, mas também em sentido vulgar (arma imprópria), ou seja, qualquer outro instrumento que se torne vulnerante, bastando que seja utilizado de modo diverso daquele para o qual fora produzido (v.g., uma faca, um machado, uma foice, uma tesoura etc.)” (Comentários ao Código Penal, 10ª ed, São Paulo: RT, p. 675).

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