A recente operação policial no Rio de Janeiro, que resultou na lamentável perda de quatro valorosos policiais e dezenas de mortes em confronto, expõe de forma crua uma falha sistêmica de nossa Federação: os Estados estão sendo obrigados a suportar um problema de dimensão transnacional quase sozinhos e pagando a conta de uma guerra irregular.
O crime organizado, representado por facções como o Comando Vermelho, não é um problema puramente estadual. Ele se alimenta do tráfico de armas e drogas, cuja logística se inicia nas fronteiras do País. A apreensão de dezenas de fuzis e o uso de drones com explosivos pelos criminosos demonstram que as Polícias Estaduais estão sendo lançadas em um cenário de guerra de alta intensidade, sem o devido amparo da União.
A Constituição Federal atribui à União o dever primário de policiamento de fronteiras. Contudo, a ineficácia e a descontinuidade do controle federal garantem ao crime organizado um fluxo ininterrupto de armamento de alto calibre e drogas.
O combate ao tráfico transnacional de drogas é, legalmente, um crime federal. Na prática, porém, são os Estados que arcam com o custo humano e logístico da repressão e, pior, com a manutenção do sistema prisional para custear o encarceramento desses criminosos de alta periculosidade.
Essa transferência de ônus se materializa em uma injustiça: quando as Polícias Estaduais descapitalizam o crime, apreendendo ativos, veículos e dinheiro, a maior parte desses bens é revertida para fundos federais, como o FUNAD, e não retorna ao sistema estadual que sacrificou vidas e recursos na operação.
Como medida de justiça federativa, é imperiosa a mudança na legislação para que haja a reversão prioritária dos ativos apreendidos pelas Polícias Estaduais diretamente para o Fundo Estadual de Segurança Pública. É o justo retorno para compensar os custos, adquirir tecnologia de inteligência e valorizar o policial.
Além da falta de estrutura suficiente da Polícia Federal e da Receita Federal para fazer frente a esse desafio de dimensão continental, outro problema central está na efetividade da Lei Complementar 97, que regulamenta a atuação das Forças Armadas na faixa de fronteira, tendo em vista que essa atuação deve se tornar uma obrigação permanente das Forças Armadas, independente de discricionariedade ou vontade política do gestor. Se for necessária a alteração da Lei Complementar 97, que assim seja. A subsidiariedade para o emprego das FFAA impede um controle de fronteira contínuo, estratégico e sistemático, que é essencial para coibir o crime organizado, afetando, ao cabo, a própria defesa do território e da soberania em áreas conflagradas pelo narcotráfico.
O resultado é perverso: as polícias estaduais (Civil e Militar) agem na ponta do problema – na contenção, no confronto reativo que resulta em alta letalidade – enquanto a causa (o fluxo logístico e financeiro do crime) não é neutralizada na origem por quem tem a obrigação de fazê-lo. O pedido de empréstimo de blindados, negado pela União, ou a hesitação na transferência de líderes de facções para presídios federais, reforçam a percepção de desengajamento na guerra que deveria ser de todos.
A morte de nossos quatro policiais é o preço máximo de uma falha de estratégia nacional.
A segurança pública é dever de todas as esferas. É imperativo que a União assuma sua responsabilidade, não apenas com apoio logístico pontual, mas com uma política de fronteira contínua e integrada, e com mecanismos de compensação financeira aos Estados. Não é factível que o apoio logístico de um blindado do Exército dependa de decretação de GLO. É bastante cômodo negar com base em teorias jurídicas um apoio para um problema grave e real do estado brasileiro. É preciso dar respaldo legal e logístico para que o policial atue no cenário de guerra que lhe foi imposto.
Por essa e outras é que, no âmbito do Conselho Nacional de Secretários de Segurança Pública, foi assinado recentemente um Acordo de Cooperação Técnica para que os Estados e o Distrito Federal se apoiem mutuamente em ações operacionais, refletindo num verdadeiro pacto federativo (estadual) de cooperação.
Enquanto a União não fechar a torneira que abastece o crime organizado (armas e drogas na fronteira) e não compensar os Estados pelo sacrifício, o ônus da violência e da letalidade continuará recaindo, tragicamente, sobre as forças estaduais, tal como já recai o ônus para financiar a maior parte da segurança pública deste país.
Por Thiago Frederico de Souza Costa. Delegado de Polícia Civil do Distrito Federal e Secretário Executivo do Conselho Nacional de Secretários de Segurança Pública – Consesp.
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