Necessidade de padronização pelo CNJ da cadeia de custódia da prova digital

Por Placidina Pires (juíza de Direito) e Adriano Sousa Costa (delegado de Polícia Civil)

Por Editoria Delegados

A cadeia de custódia sobre provas digitais talvez seja um dos temas mais debatidos atualmente no mundo jurídico, principalmente pela alegação corriqueira de nulidades derivadas de procedimentos burocráticos na coleta e processamento de evidências virtuais.

Esse é um terreno fértil para decisões judiciais divergentes e conflitantes, causadoras, inclusive, de grande insegurança jurídica. Uma das principais causas parece ser a velada (mas não tão assim) mutação do sistema brasileiro para um estranho common law à brasileira. Nesse processo kafkaniano, o direito legislado até vale, mas só ganha vigor taxativo quando recebe a exegese dos tribunais superiores.

Fato é que, antes da entrada em vigor da Lei 13.965/2019 e da expressa previsão da cadeia de custódia no artigo 158-A e seguintes do Código de Processo Penal, não havia muitas exigências para observância da cadeia de custódia [1], o que empurrava para a aplicação judicial racionalizada do princípio do pas de nullité sans grief.

Até havia a Portaria 82/2014 da Senasp, que estabelecia diretrizes para a padronização da cadeia de custódia em âmbito nacional, mas referida normativa era de uso obrigatório apenas pela Força Nacional de Segurança Pública [2].

Mesmo agora, com a edição do artigo 158-A e seguintes do CPP, constata-se que o Digesto Processual Penal cuidou apenas da cadeia de custódia dos vestígios físicos (provas comuns) e não digitais.

Por isso que, enquanto não materializados adequadamente os entendimentos sobre a matéria, as diferentes linhas adotadas pelos nossos tribunais seguirão proporcionando confusão e incerteza aos operadores da persecução penal. Assim, projeta-se que a disciplina do Conselho Nacional de Justiça sobre o tema possa alcançar uma padronização mínima em todo o país.

Até porque a insegurança procedimental não impacta só o Poder Judiciário e o Ministério Público. Na verdade, enquanto os tribunais do país não seguirem um protocolo único de preservação da cadeia de custódia, as próprias polícias judiciárias e investigativas brasileiras terão dificuldade em nortear a sua atividade finalística.

Porém, conquanto existam outros ramos do direito que também possam desejar abraçar as regulamentações sobre a cadeia de custódia, pensamos que tal regulamentação deve atingir unicamente a Justiça Criminal, muito pela gravosidade que sua atuação concreta impõe. Daí sugerimos que a referida normativa não vincule outros ramos da Justiça que também lidam com evidências digitais, como é o caso da Justiça do Trabalho, da Justiça Cível e outros ramos, nos quais a ausência de impugnação específica permite a admissão do elemento probatório.

Da irretroatividade da lei processual penal

Por se tratar de regra de processo penal, o aludido regramento não retroage (princípio do tempus regit actum) para exigir nos casos antigos uma rigorosa observância de todas as etapas do processo de preservação da cadeia de custódia. Há entendimentos na nossa Corte Cidadã nesse sentido (AgRg no HC n. 912.905/TO, julgado em 07/05/2025).

Contudo, também há decisões do STJ defendendo que, mesmo nos casos anteriores a 2019, será preciso garantir a idoneidade e a rastreabilidade dos vestígios em função de a necessidade de preservação da cadeia de custódia estar indissociavelmente ligada ao conceito de corpo de delito, constante no CPP desde sua redação original (AgRg no RHC 143.169/RJ, julgado em 07/02/2023).

E mais, há decisões do próprio Superior Tribunal de Justiça exigindo em casos anteriores a 2019 a observância de regras específicas da cadeia de custódia que somente se tornaram cogentes a partir da vigência do artigo 158-A e seguintes do CPP (RHC 205441-GO, julgado em 09/05/2025).

Sugerimos então que as novas regras da cadeia de custódia não retroajam, especialmente aquelas em que a eventual inobservância não tenha comprometido a confiabilidade da prova.

Da exclusividade na coleta dos vestígios

O Código de Processo Penal prevê que a coleta dos vestígios deverá ser preferencialmente (e não obrigatoriamente) realizada por perito oficial.

Sobre o tema, o Supremo Tribunal Federal decidiu, por mais de uma vez, que o reconhecimento e a coleta do material apreendido são atos que antecedem a perícia técnica oficial prevista no artigo 159 do CPP e, portanto, prescindem da participação de perito oficial (AgRg no HC 242.158, Rel. Cristiano Zanin, 01/07/2024, e HC 243703, Rel(a). Min. Carmén Lúcia, 30/07/2024).

Em igual sentido, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que a falta de peritos oficiais na coleta e extração de dados não enseja nulidade automática, sendo admissível a atuação de agentes capacitados, conforme previsão do artigo 159 do Código de Processo Penal (AgRg no HC. 968.365/RS, Rel. Min. Daniela Teixeira, 26/02/2025).

Na mesma esteira, o ministro Ribeiro Dantas do STJ frisou que “o relatório de investigação produzido por policiais civis é válido”, pois se trata de documento descritivo que não requer expertise técnica específica” (AgRg no HC 924.130/SE, julgado em 12/02/2025).

No entanto, existem julgados sugerindo que a coleta de vestígios só possui validade se realizada por perito oficial (TJ-GO. Apelação Criminal 0109347.38.2019.8.09.0175).

O debate desse tema é de extrema importância, pois acaba arrastando suas causas e consequências para outras temáticas ainda mais profundas; por exemplo, a tentativa de exclusividade de realização das perícias criminais pelos integrantes da Polícia Técnico-Científica, a exemplo do que está sendo proposto na PEC 76/2019, que tramita no Senado.

Da insuficiência da estrutura pericial brasileira

E, de fato, qualquer decisão política que confira exclusividade pericial prejudicará ainda mais as decisões judiciais, principalmente na senda das provas digitais. Se decidido que a coleta só poderá ser realizada por perito criminal, pela inegável falta de estrutura desses órgãos auxiliares da segurança pública, haverá um conjunto enorme de nulidades a serem enfrentadas.

Nesse ponto, gize-se que nem toda evidência digital resulta da apreensão de equipamentos eletrônicos ou de componentes computacionais. É o caso dos dados obtidos a partir de cautelares probatórias, tais como a interceptação do fluxo das comunicações e a quebra de sigilo de dados telefônicos, telemáticos e de informática, e outras cautelares. E, nesses casos, não há como destacar peritos para realizar o reconhecimento e a coleta da evidência digital.

E isso se agrava pelo fato de as unidades federativas não disporem de peritos oficiais em número suficiente para atender a todas as operações investigativas que são deflagradas diariamente. Aliás, a maioria das cidades do país nem sequer possui peritos oficiais. Esta é a realidade de todos os estados do Brasil.

Diante disso, exigir que os vestígios digitais sejam coletados obrigatoriamente por perito oficial seria contraproducente e inviabilizaria a grande maioria dos trabalhos investigativos do país.

Sugere-se, então, que o CNJ edite norma vinculativa de âmbito nacional autorizando que o reconhecimento e a coleta do vestígio digital, na ausência de perito oficial, sejam realizados pelos próprios agentes de polícia, pelos auxiliares do Ministério Público ou pela própria autoridade responsável pela investigação, caso em que deverão ser realizados relatórios pormenorizados sobre as potenciais evidências digitais localizadas.

Esta sugestão, além de estar alinhada com a orientação dos nossos tribunais, serviria para reduzir os questionamentos realizados com base nessa temática, bem como traria mais segurança para todos os integrantes do sistema de justiça que atuam com evidências digitais.

Das consequências da não observância da cadeia de custódia

Segundo observado, os tribunais majoritariamente têm entendido que as irregularidades constantes na cadeia de custódia, por se referir à idoneidade do caminho que deve ser percorrido pela prova, não é causa automática de nulidade. A consequência do descumprimento das etapas da cadeia de custódia seria a imprestabilidade da prova. Essa parece ser uma poderosa, transversal e adequada interpretação do prisco adágio pas de nullité sans grief.

Nesse rumo, decidiu o STJ que a matéria relacionada à quebra de cadeia de custódia não se insere no campo das nulidades, mas de eficácia da prova (HC 924130, 26/02/2025), e que cabe ao julgador sopesar o valor do elemento de prova por ocasião da prolação da sentença (AgRg no HC 916294/SC, 16/8/2024).

Ocorre que, em alguns casos, o Superior Tribunal de Justiça tem anulado as provas por inobservância da cadeia de custódia da prova digital, talvez por entendê-la como uma excepcionalidade probatória em face da sua aparência imaterial.

Cita-se, por exemplo, o AgRg no RHC 143.169/RJ (Operação Open Doors) em que as provas foram anuladas porque o STJ entendeu que a polícia não documentou as cautelas adotadas na arrecadação, armazenamento e análise dos computadores apreendidos com o acusado e, antes da perícia oficial, acessou e extraiu uma cópia dos arquivos que foi disponibilizada para a vítima (uma instituição financeira).

Em outro caso, o juiz sentenciante informou ao STJ que a extração de dados foi realizada diretamente sobre o celular, sem o uso de programas extratores, tais como o Cellebrite. Informou também que o equipamento foi encaminhado para a extração via kit cellebrite, mas que o pacote da máquina disponível na PC/RN não teve atualização/capacidade para a leitura dos arquivos. Como não foi possível extrair os dados do equipamento, utilizou-se print screen, segundo informado (AgRg no HC 828.054/RN, relator ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 23/4/2024, DJe de 29/4/2024).

Com isso, foram declaradas nulas todas as provas decorrentes da extração de dados do celular do réu e todas aquelas que delas decorreram.

Sem dúvida que a evolução do crime para contextos virtualizados impôs maior cautela ao Poder Judiciário, até mesmo para evitar a manipulação de informações que podem prejudicar o réu. Mas essas fórmulas não são isentas de limitações e lacunas. Ainda assim, como forma de melhorar a integridade da evidência digital, observou-se que os tribunais têm sugerido a adoção de técnicas e ferramentas não exigidas pela legislação, a exemplo do código hash.

Da utilização de código hash

Nesse ponto, o Superior Tribunal de Justiça tem decidido que é ônus do Estado comprovar a integridade e confiabilidade das fontes de prova e que uma forma de garantir a mesmidade dos elementos digitais é a utilização da técnica de algoritmo hash (código de verificação conhecido como hash).

Dessa forma, tem sugerido seguir as regras da ABNT (que não são disponíveis gratuitamente) e que se utilize software confiável, auditável e amplamente certificado para a extração dos arquivos digitais.

Todavia, é sabido que as regras da ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas) ISO/IEC 27037:2013 (2013) não se destinam a disciplinar os procedimentos judiciais, servem apenas como diretrizes para investigações que envolvem potenciais evidências digitais.

Além disso, o código hash só assegura que os dados extraídos no momento do espelhamento não foram alterados. Ou seja, assegura apenas que há identidade entre a cópia e o arquivo do qual a cópia foi extraída [3]. Se o arquivo foi adulterado antes do espelhamento (ou da extração) o código hash não terá condições de identificar.

Ou seja, o código hash não se mostra capaz de garantir que não houve manipulação dos dados em momento anterior à extração, além de que não pode ser aplicado em casos de aparelhos com memória volátil [4], conforme reconhecido pela própria ABNT.

Somente mediante o acesso à respectiva fonte da prova (aparelho/equipamento) ou mediante a realização de perícia será possível saber a última data de alteração dos dados e se houve adulteração, razão pela qual não é correto atribuir tamanho crédito ao código hash.

E anular uma evidência digital, ou deixar de valorá-la como prova somente porque não foi extraído o código hash, não se mostra a opção adequada, especialmente quando não for verificado nenhum indício de adulteração, manipulação ou corrupção do material.

Até mesmo porque as ferramentas extratoras que calculam o hash são de altíssimo custo, como é o caso do UFED da Cellebrite, e nem todas as polícias e órgãos de investigação possuem recursos financeiros para a aquisição dos referidos programas.

Nesse sentido, reputa-se louvável considerar o cálculo hash como uma cautela a mais a ser adotada pelo investigador, mas impor a obrigação de a extração de evidências digitais informar o hash ultrapassa os delineamentos exigidos pelo legislador.

Desse modo, sugere-se que o CNJ, ao regulamentar a questão, não imponha como obrigação que a coleta/extração seja realizada por meio de ferramentas extratoras predefinidas, porque alguns softwares são de alto custo e as polícias podem não dispor dos programas porventura indicados.

Isso sem falar que tal medida poderá impor aos estados a obrigação de adquirirem programas extratores de valor elevado, com impacto financeiro negativo para a administração pública, e ainda poderá causar a nulidade de investigações que, ao tempo que foram realizadas, não utilizaram a técnica de algoritmo hash.

Em resumo, sugere-se a implementação do código hash como uma forma de dar maior segurança à prova, que deve ser analisada em conjunto com outros elementos existentes no processo. E, se for o caso, que se torne obrigatório a partir de data futura, para dar tempo de os órgãos estatais se adequarem à exigência.

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Referências

[1] Lima, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal – Voluma único. 13.ed., rev., atual. e ampl. – São Paulo: Editora Juspodivm, 2024.

[2] Portaria Senasp n. 82, de 16 de julho de 2014.

[3] Aqui

[4] Mensagens de Aplicativos de Mensageria como Provas no Processo Penal: Uma Análise de Decisões do STJ, Fabrício Lamas Borges da Silva e Emerson Wendt.

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Sobre os autores

Placidina Pires
é juíza de Direito do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, titular da 1ª Vara dos Feitos Relativos a Delitos Praticados por Organização Criminosa e Lavagem ou Ocultação de Bens, Direitos e Valores de Goiânia/GO.

Adriano Sousa Costa
é delegado de Polícia Civil de Goiás, professor de pós-graduação, membro da Academia Goiana de Direito, mestre (UFG) e doutor em Ciência Polícia pela UnB e pós-doutorando em Ciência Polícia pela UnB.

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