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Conheça a primeira mulher a ocupar o mais alto cargo da Polícia Civil da Bahia

por Editoria Delegados

BA: ‘A minha chegada mostra que outras mulheres também podem chegar’, diz a delegada-geral Heloisa Brito

Na mesa, fazendo companhia ao computador e diversas pastas, uma bolsa, ring light, dois vasos de orquídea e uma jarra de água com limão. Parece um consultório ou escritório, mas é o gabinete do mais alto cargo da Polícia Civil da Bahia. Ocupando a cadeira, a figura passa longe da caricatura de delegado com a camisa desabotoada na parte de cima deixando um cordão de ouro à mostra. Ao invés disso, salto alto, acessórios, roupa preta e cabelos loiros. Quem ocupa a sala é a delegada-geral Heloisa Brito, de 49 anos, a primeira mulher a assumir o cargo em 214 anos de instituição.

Na sua rotina como delegada-geral, precisa lidar diretamente até mesmo com assassinos e está sempre rodeada de armas, cadáveres, sangue… Tudo gira em torno da investigação de crimes, um universo que, na verdade, de rotineiro não tem nada e normalmente só conhecemos de perto através das cenas empolgantes exibidas em séries e filmes policiais. “Cada caso é um caso, sempre algo novo, não existe tédio, não existe repetição. Cada dia é uma nova emoção, eu sempre digo isso. Até porque existem as reviravoltas também. Às vezes a gente está numa investigação que aponta para um lado, mas, de repente, acontece alguma coisa que muda completamente a direção”.

Numa dessas reviravoltas, Heloisa esteve ao lado de um assassino disfarçado de bom moço sem sequer desconfiar. “Fui fazer um levantamento cadavérico e aí apareceu um homem querendo ajudar, dizendo que conhecia a vítima. A gente levou ele para a delegacia, fomos ouvi-lo e descobrimos que ele era um ladrão de banco já até em outros estados. Ligamos o alerta, fizemos a investigação e, no final das contas, a gente provou que era ele o autor do crime, ele quem tinha assassinado a moça”, conta.

Até a chegada ao autor do crime, o caminho passa por oitivas, levantamento e análise de provas, requisição de interceptação telefônica, mandado de prisão ou de busca e apreensão e por aí vai. E a coisa não para por aí porque ainda tem a cereja do bolo: as operações. Heloisa é a responsável por coordená-las, ou seja, dividir a equipe em grupos, determinar tarefas, planejar ações, estudar o local e os alvos, arquitetar estratégias para alcançar o objetivo final: a prisão.

E ela também vai à campo, de colete à prova de balas e arma, como manda o figurino, e se sujeita aos imprevistos da profissão que escolheu. Heloisa conta que, numa dessas operações, em Lauro de Freitas, os alvos eram policiais civis, o que torna tudo mais delicado e, de repente, se viu em meio à uma troca de tiros. “A gente teve que abordar os policiais e não sabíamos direito quantos eram, como eles iriam chegar, então era aquela tensão. Teve uma troca de tiros, os policiais fugiram e aí houve uma perseguição até chancelar a prisão”, lembra.

Rotina da delegada-geral começa às 5h10 quando acorda, faz exercícios e começa a atender a lista diária que ela organiza e as demandas que chegam ao celular ainda de manhã cedinho

Para lidar com o dia a dia da profissão, a preparação de Heloisa começou na Academia de Polícia, após passar no concurso que fez no final da faculdade de Direito. Lá, aprendeu técnicas de investigação e também teve aulas de tiro e defesa pessoal. E se surpreendeu porque, mesmo sem nunca ter pego anteriormente numa arma, teve um excelente desempenho.

“Foi lá que eu conheci uma arma, aprendi a manusear, a limpar e a atirar controlando a mira e a respiração. E então descobri que eu atiro muito bem, acho que posso dizer que é um talento meu”, diz Heloisa, rindo.

A arma é sua companheira e está sempre ao seu lado. “Quando a gente está numa viatura de polícia, a ação pode ser a mais simples, como um levantamento ou entrega de laudo, mas tudo pode acontecer e a gente tem que estar sempre atento. E fora do trabalho, ela também é necessária porque aí o lado pessoal e profissional não se desconectam. É a proteção própria, proteção dos colegas e proteção da sociedade”, destaca. Mas Heloisa revela que a arma é uma preocupação, que teve início com a chegada do seu filho, hoje com 15 anos. “As coisas mudaram um pouco, eu passei a ter bem mais cautela. Quando eu vou para casa, guardo a arma num lugar seguro que eu escolhi para ficar mais aliviada”, explica.

‘O medo não é bem vindo’
Heloisa ressalta que, na profissão que escolheu, o medo não é nada bem-vindo.

“Sabemos que é uma profissão de risco, mas, quando a gente opta por ela, aceitamos que isso vai ser parte da nossa vida”, diz.

E esse é um lema que ela segue à risca, mesmo já tendo recebido ameaças. Ela era titular de uma delegacia de Salvador e, após a determinação de mudanças na instituição, passou a receber ligações com ameaças.

“A pessoa ligava para mim e dizia que sabia que eu estava de plantão, que tinha me visto chegar na delegacia, descrevia as roupas que eu usava. Eu e outros colegas fizemos um trabalho para tentar identificar quem era, mas não tivemos êxito logo de cara. Eu continuei fazendo o meu trabalho, ele deve ter percebido que as ameaças não surtiram efeito e acabou desistindo. Fiquei mais cautelosa em relação aos lugares que eu ia e com quem eu falava, mas segui minha vida, faz parte. Desistir ou recuar não é uma possibilidade”, destaca Heloisa.

A responsabilidade

Heloisa começou seu percurso na polícia ainda muito nova, aos 22 já era delegada. “As pessoas chegavam e não falavam comigo, pediam para eu chamar o delegado. Os policiais falavam para mim que tinham mais tempo de carreira do que eu tinha de vida”, conta. Por duvidarem da sua capacidade, ela precisou, então, conquistar o seu espaço.

“Eu aprendi a ir até o final na defesa de uma ideia, busco convencer e não me intimido. Quando eu ia para alguma reunião, eu já ia cheia de argumentos, preparada”.

O convite para ser delegada-geral veio no final de 2020 e o cargo, dessa vez, teve um peso a mais para quem assumiu e exigiu ainda mais coragem. “É uma responsabilidade muito grande, talvez dobrada, mas eu fico feliz por receber o feedback das colegas falando que a minha chegada mostra que outras mulheres também podem chegar. As pessoas sempre associam as polícias, tanto civil quanto militar, com funções masculinas. Se a gente olhar o nosso quantitativo, a gente tem muito mais homens do que mulheres. E a gente sabe que os cargos podem ser exercidos por homens ou mulheres, não importa. O que é preciso é esforço, dedicação, técnica e estudo”, coloca Heloisa.

O fato de uma mulher ocupar o cargo de delegada-geral significa uma PC mais atenta às demandas das mulheres no que diz respeito à segurança. Para Heloisa, a proteção das mulheres é uma pauta cara já há bastante tempo.

“Perceber que, apesar das leis, de todo o trabalho que é feito de conscientização, a violência contra a mulher não diminui mexe comigo. A questão do atendimento à mulher nas delegacias, por exemplo, é algo muito importante. A gente sabe que a maioria dos nossos servidores são homens e que, em determinadas situações, é muito melhor que as mulheres sejam atendidas por mulheres”, destaca.

Heloisa sabe que, para transformar esse cenário, é preciso ter mais mulheres em posições de comando. E ela não caminha sozinha. Com a sua chegada à chefia, no início de 2021, outras também vieram junto. “A gente tinha uma tradição na polícia de mulheres ocuparem cargos de corregedoria, academia, por exemplo. E isso mudou. Quando eu fiz as escolhas de nomeação, fiz pelo perfil do profissional e como ele se encaixaria no departamento. Quando eu terminei de fazer os convites, eu me dei conta de que a maioria era de mulheres. E fiquei muito feliz com isso”, conta.

Vida pessoal e vida profissional

Desde a adolescência, Heloisa tem um olhar atento e crítico ao certo e errado. Como ela mesma diz, carrega consigo a vontade de ver o mundo organizado, com tudo no seu devido lugar. “Uma vez a gente conseguiu impedir o sequestro de uma adolescente; fizemos a investigação e prendemos a pessoa antes que o sequestro acontecesse. Essa conquista, ver a gratidão do pai da moça e de toda a família não tem preço, o coração fica cheio de alegria”, descreve.

A organização não é seletiva e reflete em todos os aspectos de sua vida. A mesa da sala onde trabalha não pode ficar bagunçada. Manter a ordem externa para manter a ordem interna é seu lema. Antes de ir dormir, uma lista mental com todas as demandas do dia seguinte. E se alguma delas não for cumprida, é frustração na certa porque a autocobrança é grande. Conciliar a vida profissional com a pessoal, a Heloisa delegada, mãe, esposa, filha, é a mais difícil delas e é figurinha carimbada nas listas diárias.

“Eu acordo às 5h10. Quando a gente pega o celular já vai tendo contato com os acontecimentos e as demandas. Aí eu vou para a atividade física e depois me arrumo e vou para o gabinete. O trabalho vai até de noite, eu chego em casa às 20h, aí é só jantar e dormir. E sou grata por ter a compreensão e o suporte do meu marido e do meu filho”, conta.

O único momento do dia em que Heloisa se desconecta de tudo é a hora da atividade física matinal. “Meu dia só começa depois da atividade física e, se eu não fizer, todo mundo já nota que tem algo errado, eu fico mais séria”, diz. Nas segundas, quartas e sextas, ela nada e faz musculação. Nas terças e quintas, corrida na rua. No sábado, uma alternância entre pedal e trechos mais longos de corrida.

O hábito de se exercitar é para aliviar o estresse, mas também carrega um toque de vaidade. Heloísa assume que é vaidosa e que gosta de se vestir bem; o guarda-roupa tem até um padrão de cores. Ela diz que, no trabalho, usa roupas que passem credibilidade e sejam confortáveis. Apesar de adorar um salto alto, precisa deixá-los um pouco de lado.

“Uma vez eu estava de salto e fui a campo fazer um levantamento em Ondina que tinha que descer uma ladeira a pé. Fiquei morrendo de medo de sair rolando e acabei me segurando em um dos policiais. Aí depois eu fui logo providenciar um sapato baixo para esse tipo de ocasião”, lembra.

Apesar do salto poder atrapalhar, Heloisa diz que algumas características essencialmente femininas muito contribuem para o trabalho na polícia. “A gente tem uma empatia, uma capacidade de se colocar no lugar do outro. Isso para mim acaba sendo uma característica muito feminina, independente da razão. E isso não é sinônimo de ser condescendente, de não ter pulso, é sinônimo de estar atenta e ser cuidadosa. Além disso, tem a nossa capacidade de lidar com várias coisas ao mesmo tempo, muitas vezes pelo fato de a gente ter mais demandas fora do trabalho, como papel de esposa, mãe, filha”, defende.

Fazendo história juntas

Assim como Heloisa, a delegada Andreia Ribeiro, de 46 anos, também faz história. Ela é a primeira mulher à frente do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) e assumiu o cargo em janeiro do ano passado. Com 20 anos de carreira, tem sua vida profissional dedicada à investigação de homicídios.

Andreia relembra o caso da médica Rita de Cássia, assassinada em 2009 no Shopping da Bahia, em Salvador, e diz ter sido um marco na sua carreira. “Toda vez que a gente consegue elucidar um crime de homicídio, por mais que não apague o crime, a gente consegue passar para a família um certo conforto, justiça. A mesma coisa é em relação às famílias de pessoas desaparecidas. É uma pauta grande aqui no departamento e conseguir trazer a pessoa de volta para aquela família é uma sensação única”, diz.

Para alcançar os objetivos, a rotina é puxada. Reunião, análise de cenário, discussão de feedback, diretrizes da semana, operações. “A pressão é grande. A gente tem hora para chegar, mas não tem hora para sair. Coordenei há pouco a operação Borderline e, nesse dia, saí de casa 2h e cheguei às 22h. E não tem isso de a chefe sai mais cedo, eu fico até o final com a minha equipe e isso faz toda a diferença”, destaca.

Andreia ressalta que, ao comparar o início da carreira com o momento atual, nota a maior presença feminina na polícia, mas faz questão de pontuar que a conquista não é fácil. “A gente acaba tendo uma responsabilidade maior por representar uma parcela da sociedade, a quebra de uma barreira. Para nós, ocupar cargos decisivos é sinônimo de muito mais responsabilidade, uma atenção e cuidado constante porque, da mesma forma que as coisas positivas vão servir de espelho para outras mulheres, os erros podem ser algo maior ainda”, acrescenta.

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