Depoimentos especiais a serviço da punição geram revitimização

Confira artigo do Delegado de Polícia Leonardo Machado A prova testemunhal, por si, é controvertida. O chamado “testemunho frágil” ou “vulnerável” com maior razão, o que deveria ensejar, inclusive, a necessidade de uma proteção invertida: da tutela do processo à

Por Editoria Delegados

Confira artigo do Delegado de Polícia Leonardo Machado

 

A prova testemunhal, por si, é controvertida. O chamado “testemunho frágil” ou “vulnerável” com maior razão, o que deveria ensejar, inclusive, a necessidade de uma proteção invertida: da tutela do processo à tutela das pessoas envolvidas no processo[1]. Dentre inúmeros temas nessa seara, ganha destaque a problemática dos depoimentos infantis e as iniciativas da Justiça penal em torno do, ora intitulado, “depoimento especial” (já chamado de “depoimento sem dano”).

 

O Conselho Nacional de Justiça não só aprova como incentiva, ou melhor, recomenda o “depoimento especial” — formalmente batizado de “escuta de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência nos processos judiciais”. A Recomendação 33, de 23 de novembro de 2010, disciplina essa prática forense, também aplicável (por analogia) à fase de investigação preliminar. Estimula, dentre outras medidas, “a implantação de sistema de depoimento videogravado para as crianças e os adolescentes, o qual deverá ser realizado em ambiente separado da sala de audiências, com a participação de profissional especializado para atuar nessa prática”[2]. O cumprimento dessa normativa tem sido acompanhado de perto pelo CNJ, inclusive redundando em premiações aos tribunais que se destacam nessa área.

 

O depoimento especial, desde a sua origem no sistema brasileiro, ainda sob o título de “depoimento sem dano”, apresenta algumas características fundamentais: 1) normalmente realizado em espaço distinto da sala de audiência e por meio de sistema de transmissão e gravação audiovisual; 2) a criança ou adolescente, em geral, não tem contato direto com o juiz e as partes (acusação e defesa); 3) a fala da testemunha menor é, nesses casos, intermediada por um “profissional especializado”, na maioria das vezes psicólogo ou assistente social; 4) tem como objetivo declarado evitar a revitimização e os consequentes danos à criança e ao adolescente, principalmente em virtude da repetição de testemunhos ao longo da persecução penal[3].

 

Sublinhe-se, no entanto, que os próprios conselhos federais de Psicologia[4] e de Serviço Social[5] manifestaram expressa desconfiança em relação a esse tipo de depoimento, considerando falta ético-profissional a conduta meramente instrumentalizada daqueles que assumissem o papel de inquiridores criminais, em juízo, de crianças e adolescentes. É bem verdade que essas resoluções profissionais tiveram eficácia suspensa por decisões do Poder Judiciário país afora, porém isso em nada altera a posição demarcada por essas categorias especializadas.

 

Deveras, ao que parece, o programa de depoimento especial está mais preocupado em assegurar a responsabilização criminal de alguém, tido a priori como autor de uma violência, do que viabilizar algum procedimento de escuta terapêutica para as vítimas. Fica claro, mais uma vez, que o ponto central não é a criança ou o adolescente (vítimas), e sim o castigo. O objetivo é sempre a punição, ainda que muitos sejam os discursos “de bem”.

 

A denúncia de Morais da Rosa[6] merece transcrição integral:

 

“A torcida do ‘Bem’ defende sem maiores discussões a prática do dito ‘Depoimento Sem Dano’, mecanismo importante criado para colher o depoimento de crianças, em tese, ‘vítimas de violência’ (sexual, simbólica, moral, etc.). Talvez a própria definição que antecede ao modelo – atendimento de crianças a priori vítimas – deixe antever que o ‘quadro mental paranoico’ de que fala Cordero tenha se instalado nesta prática. Dito de outra forma, de regra, a posição é a de que a criança ‘foi’ vítima da violência e que o meio de ‘sugar’ os significantes necessários à condenação precisam ser extraídos, de maneira ‘branda’’, ou mais propriamente, na função de um ‘micro poder’ subliminar e sedutor de que nos fala Foucault. A postura infla-se de um inquisitorialismo cego pelo qual se busca, em nome do ‘Bem’, as provas do que se crê como existentes, dado que os lugares, desde antes, estão ocupados: ‘vítima e agressor’. O resultado é um jogo de cartas marcadas em que o processo como procedimento em contraditório se perde em relações performáticas de profissionais que se arvoram em ‘intérpretes/tradutores’ do discurso infantil”.

 

Além de toda a burla do due process of law e do risco ao induzimento ou ao reforço de falsas memórias que se estabelece com um depoimento especialmente conduzido (e intermediado) em busca de condenações, embora sob o (poderoso) nome da proteção integral de crianças e adolescentes, o seu potencial de sobrevitimização é enorme, uma vez que faz de tudo para inquirir, nada para escutar.

 

Bárbara Souza Conte[7], com primorosa didática, esclarece que:

 

“A demanda de validade na fala da criança, quando exposta a um depoimento, evidencia um paradoxo, pois precisa revelar e esconder. Revelar o solicitado quanto ao inquérito (a verdade objetiva) e esconder o acontecido (a vivência subjetiva de dor, vergonha e passivização). O discurso aparece como um sintoma, pois revela e esconde. Nem tudo está disponível no nível simbólico da palavra. Por isso, em um inquérito, há um hiato necessário entre o dito e o não dito. Quando não está respeitado o tempo do que não pode ser revelado — o não dito —, por não haver possibilidade de elaboração psíquica, o que ocorre é chamado de revitimização”.

 

É preciso compreender (e reconhecer) “que o testemunho tem os seus limites, e que, portanto, a integralidade do evento pode não ser recuperável tal como o aparato judicial pressuporia necessário”[8]. Volta-se ao problema de sempre: nem todos se deram conta do giro linguístico e, portanto, insistem na persecução penal enquanto método de busca pela verdade. Ainda no predomínio da filosofia da consciência, pretendem uma “verdade Toda (e única)”. Não se deram conta, entretanto, de que operamos “tão-só em uma parte dela. A parte (daí a parcialidade que move dita relação, sempre), todavia, não é o Todo e, portanto, é de outra coisa que se trata”[9].

 

Ocorre que a verdade por aqui não se encontra disponível como em um passe de mágica; trata-se, pelo contrário, de aspecto complexo da realidade e que só pode ser apreendida segundo o limitado contexto das investigações jurídicas[10].

 

Nesse caso, a busca inquisitória pela verdade, tendo como objetos de exploração crianças e adolescentes, inquiridos a forceps, no exíguo tempo estabelecido para a conclusão do inquérito ou do processo, e não da necessária escuta conforme a singularidade do sujeito, resulta inevitavelmente em mais violência e dor. A revitimização é certa!

 

Por Leonardo Machado, Delegado de Polícia.

 

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