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A instauração do incidente de insanidade mental na fase inquisitorial

por Editoria Delegados

Por Francisco Célio Campos Gonçalves Benício e Yan Rêgo Brayner

Na rotina das Delegacias de Polícia Civil é comum que a Autoridade Policial se depare com investigados cuja integridade mental é duvidosa, sendo incerto também, se este, no momento do fato criminoso, era capaz de determinar-se frente ao ato cometido.

Antes de explanar as providências a serem adotadas pelo Delegado de Polícia em situações como esta, vale relembrar que a imputabilidade é um dos elementos da culpabilidade. Contudo, o Código Penal, em consonância com outras legislações modernas (v.g: Portugal e Espanha), optou por não conceituá-la, mas sim indicar quais são as causas que a excluem, ou seja, as causas de inimputabilidade.

Assim, uma interpretação às avessas do conteúdo das causas de inimputabilidade permite concluir que imputabilidade penal é a capacidade mental inerente ao ser humano de, ao tempo da ação ou da omissão criminosa, entender o caráter ilícito do fato e determinar-se de acordo com esta percepção.

Nesse sentido, leciona Damásio de Jesus (Damásio, 1998, p. 465):

Imputabilidade é a capacidade para apreciar o caráter ilícito do fato ou determinar-se de acordo com essa apreciação. Se a imputabilidade consiste na capacidade de entender e de querer, pode estar ausente porque o indivíduo, por questão de idade, não alcançou determinado grau desenvolvimento físico ou psíquico, ou porque existe em concreto uma circunstância que a exclui. Fala-se, então, em inimputabilidade.

O Código Penal adotou, em regra, o critério biopsicológico para aferição da inimputabilidade, segundo o qual é inimputável quem ao tempo da conduta, apresenta um problema mental e, em razão disso, não possui capacidade para entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com o este entendimento. Este é o teor do artigo 26 do nosso Diploma Penal:

Art. 26 – É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.

Este sistema prestigia as atuações do magistrado e do perito. Ao passo que este cuida da questão biológica (perito), aquele da psicológica (juiz).

Comoobter dictum, cumpre registrar que o Código Penal adota o critério biológico quando trata da inimputabilidade etária (art. 27 do CP c/c art. 288 da CF) e o sistema estritamente psicológico, em relação à embriaguez completa proveniente de caso fortuito ou força maior (art. 28, §1º, do CP).

Antes de se adentrar ao procedimento e, mais precisamente, em suas nuances em sede policial, faz-se mister ressaltar a impropriedade da nomenclatura utilizada pelo legislador – “instauração de incidente de insanidade mental”. Ora, não é somente a possível ausência de sanidade que será exposto a exame. Qualquer distúrbio mental poderá ser estudado e indicado pelo médico perito, mas claro, desde que tenha potencial para interferir na capacidade do autor do fato, tanto na modalidade dolosa, como na culposa. Com isso, resta prudente, por parte da autoridade policial, levar isso a conhecimento do expert que procederá a exame, caso deferido pelo juízo, quando da formulação de seus quesitos, que veremos mais a frente, ser possível fazê-lo.

Assim, quando houver dúvida acerca da sanidade mental do investigado por prática de crime, o Delegado de Polícia representar ao Juiz Criminal pela instauração de incidente de insanidade mental, conforme prescreve o art. 149, §1º, do Código de Processo Penal:
 

Art. 149.  Quando houver dúvida sobre a integridade mental do acusado, o juiz ordenará, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, do defensor, do curador, do ascendente, descendente, irmão ou cônjuge do acusado, seja este submetido a exame médico-legal.

§ 1º O exame poderá ser ordenado ainda na fase do inquérito, mediante representação da autoridade policial ao juiz competente.

Cumpre ressaltar que a dúvida que justifica a instauração refere-se à condição mental do indivíduo tanto ao tempo do fato quanto ao momento atual, ou seja, enquanto tramita o Inquérito.

Aqui, vale pontuar que a legislação fala em dúvida e a doutrina e jurisprudência dão um norte quanto a essa aferição, que deve ser levada a cabo, pelo Delegado de Polícia, antes de decidir pela elaboração, ou não, da representação junto ao Poder Judiciário.

Por muitas vezes, esses indícios são apresentados por prova testemunhal ou mesmo documental (laudos particulares, receitas médicas, etc). Outras vezes, em entrevistas com parentes ou conhecidos do investigado, a autoridade policial é informada dessa ausência de higidez mental, muitas vezes com relatos de fatos do passado que seriam, em teses, incompatíveis com as atitudes de pessoas “normais”.

Tudo isso, cremos, são informações aptas a gerar a dúvida trazida na dicção do dispositivo legal. Outra alternativa disposta à autoridade policial capaz de demonstrar essa citada dúvida, são registros de atendimento nos centros de atenção psicossocial, presentes em todos os municípios do Brasil.

Guilherme de Souza Nucci, a respeito disso, leciona:

 “É preciso que a dúvida a respeito da sanidade mental do acusado ou indiciado seja razoável, demonstrativa de efetivo comprometimento da capacidade de entender o ilícito ou determinar-se conforme esse entendimento. Crimes graves, réus reincidentes ou com antecedentes, ausência de motivo para o cometimento da infração, narrativas genéricas de testemunhas sobre a insanidade do réu, entre outras situações correlatas, não são motivos suficientes para a instauração do incidente” (Código de Processo Penal Comentado, p. 331).

No mesmo sentido, o STF:

A instauração do incidente de insanidade mental requer estado de dúvida sobre a própria imputabilidade criminal do acusado, por motivo de doença ou deficiência mental. Dúvida que há de ser razoável, não bastando a mera alegação da defesa. (HC 101515, Rel. Min. Ayres Brito, DJ 27.08.2010)

O STJ possui precedente na mesma direção, enfrentando, inclusive, alegada ausência de sanidade e dependência toxicológica:

 

  1. A realização  do exame de insanidade mental não é automática ou obrigatória,  devendo  existir dúvida  razoável  acerca da higidez mental do acusado para o seu deferimento. Precedentes. 2. A alegação de dependência química de substâncias entorpecentes do paciente   não  implica  obrigatoriedade  de realização  do  exame toxicológico,  ficando a análise de sua necessidade dentro do âmbito de  discricionariedade  motivada do  Magistrado.  3. No  caso,  as instâncias ordinárias  foram categóricas em afirmar que não existia nos  autos  dúvida quanto à higidez mental do recorrente e que este tinha  consciência, entendia  o  caráter ilícito  de  suas ações e dirigiu  o seu comportamento de acordo com esse entendimento, sendo, pois,  inviável  a modificação de tais conclusões na via do recurso ordinário,    por   demandar    o    revolvimento    do   material fático-probatório. (RHC 88626/DF, Rel Min Reynaldo Fonseca, DJe 14/11/2017)

No caso de incidente suscitado no curso da ação penal, após sua regular instauração, o magistrado, em regra, determina sua autuação em apartado e determina a suspensão do andamento do processo, podendo serem realizadas excepcionalmente diligências urgentes que possam ser prejudicadas pelo adiamento.

É bem verdade que a condução exitosa do procedimento policial, pelo Delegado de Polícia, imprescinde da realização de diversas análises técnico- jurídicas, inclusive, da percepção de todos os elementos do crime, aí contida, então, a culpabilidade (Lei nº 12.830/2013).

Contudo, na contramão de alguns entendimentos, tratando-se de fase inquisitorial, e ressaltando, nesse momento, sobretudo sua nuance policial, onde a colheita de provas com o passar do tempo, é deveras dificultada, excepciona-se a regra geral no que toca à paralisação do andamento e as investigações seguem seu curso normal, sem qualquer tipo de suspensão.

Reitera-se que apenas a ação penal é suspensa pela instauração do incidente de insanidade.

Assim, o STJ também já se manifestou:

INSTAURAÇÃO. INCIDENTE. INSANIDADE MENTAL. SUSPENSÃO. PROCESSO. INEXISTENCIA CONSTRANGIMENTO ILEGAL. RECEBIMENTO. DENUNCIA. ART. 149, PAR. 2. DO CPP.

I – INSTAURADO O INCIDENTE DE INSANIDADE MENTAL, DETERMINA O PAR. 2. DO ART. 149 DO CODIGO DE PROCESSO PENAL A SUSPENSÃO DO PROCESSO E NÃO DO INQUERITO POLICIAL.

II – INEXISTENCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL CONFIGURADO NO RECEBIMENTO DA DENUNCIA.

(RHC 5.091/SP, Rel. Ministro FERNANDO GONÇALVES, SEXTA TURMA, julgado em 26/08/1996, DJ 23/09/1996, p. 35154)

 

O art. 149, §2º, do Código de Processo Penal determina que seja nomeado curador para acompanhar o incidente, tal ato compete ao juiz, que, geralmente, nomeia o defensor do acusado durante a ação penal. Entretanto, caso instaurado em fase policial, deve o juiz nomear advogado para exercer este mister.

O art 159, §3º, do Código de Processo Penal, que se refere ao exame de corpo de delito e outras perícias, não prevê a formulação de quesitos por parte do Delegado de Polícia. Contudo, a despeito da omissão legislativa, é imprescindível que, na condição de representante, a autoridade policial já formule no bojo da representação os quesitos que devem ser respondidos pelos peritos oficiais. Tal conclusão é furto de uma interpretação extensiva da lei processual penal e decorrência lógica do poder de representação, pois quem pode o mais (representar), pode o menos (formular quesitos).

Nesse ponto, para melhor análise por parte do perito, a legislação processual penal determinou, inclusive, no §2º do art. 150, que se não houver prejuízo para a marcha do processo, o juiz poderá autorizar sejam os autos entregues aos peritos, para facilitar o exame. Cremos que, na fase policial, devido ao caminhar de seu curso natural, o Delegado de Polícia seja notificado da data da realização do exame, para envio do caderno investigativo, em cópia, para consulta do expert, para elaboração de seu laudo.

Caso o investigado esteja preso no momento da instauração do incidente, deve, mediante decisão judicial, ser transferido para manicômio judiciário. Na ausência deste estabelecimento, deverá ficar em cela especial, separado dos demais presos. Noutro turno, tratando-se de investigado em liberdade, via de regra, assim continuará, devendo o sujeito comparecer às perícias quando convocado.

Porém insta consignar que o indivíduo solto pode ser internado no curso do incidente caso ocorra as seguintes situações: a) requerimento fundamentado dos peritos (art. 155, caput, última parte, do Código de Processo Penal); b) quando presentes os pressupostos de aplicação da prisão preventiva.

Cumpre ressaltar que a medida cautelar de internação provisória em crimes cometidos com violência ou grave ameaça (art. 319, VII, do Código de Processo Penal) é inaplicável na fase policial, pois ao contrária de outras medidas cautelares (ex. art. 319, II e III do CPP) é restrita unicamente ao acusado, o que pressupões a instauração da ação penal.

A mencionada medida cautelar é passível de diversas críticas, primeiro porque limita sua aplicação aos crimes cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa, segundo por condicionar a imposição da medida ao risco de reiteração na prática das aludidas infrações e, por fim, por não ser aplicável ao investigado ou indiciado.

Ora, imagine-se que um investigado (não é acusado) por prática do crime de furto qualificado (sem violência ou grave ameaça a pessoa) esteja ameaçando o curso linear da instrução criminal (conveniência da instrução criminal) e o juiz entenda não ser cabível a aplicação de outras medidas cautelares, deverá decretar sua prisão preventiva e, em seguida, substituí-la pela internação (analogia ao art. 150, caput, e 152, §1º, do Código de Processo Penal), alcançando-se, por via transversa, o mesmo resultado da medida cautelar prevista no art. 319,VII, do CPP.

Instaurado o incidente, o exame psiquiátrico deve ser concluído em 45 (quarenta e cinco) dias, salvo se os peritos entenderem pela necessidade de dilação temporal para averiguar as condições mentais do periciando (art. 150, §1º, do Código de Processo Penal. Na prática, este exíguo prazo não é cumprido, em virtude da escassa estrutura dos órgãos oficiais.

Como já mencionado o laudo pericial deve informar a condição do indivíduo em dois momentos, por ocasião da prática criminal e seu momento atual. Por este motivo, o resultado de um incidente não poderá ser utilizado em outro processo como prova emprestado, pois, a despeito de prática criminosas cometidas sequencialmente ou em um curto lapso temporal, pode o expertconcluir que o agente era penalmente imputável em uma dessas e, por ocasião da outra, inimputável.

Por não sobrestar o Inquérito Policial, invariavelmente este ou o incidente de insanidade mental chegará primeiro ao fim. Se o Delegado de Polícia concluir as investigações antes do término do incidente de insanidade mental, deve remeter os autos ao juízo competente, que após eventual denúncia do Ministério Público deverá no ato do seu recebimento determinar a suspensão da ação penal até a conclusão do incidente.

Caso a perícia seja concluída aténs de ultimadas as investigações policiais, deve o incidente ficar em juízo aguardando o ajuizamento da ação penal. Caberá ao Magistrado no despacho de recebimento as providências correspondentes ao que tiver concluído o exame pericial, vejamos: a) laudo conclui pela plena capacidade do acusado no momento do fato e da realização do exame: o processo terá seu prosseguimento ordinário; b) laudo atesta a imputabilidade a época do fato criminoso e a sua incapacidade quando do exame: juiz receberá a denúncia e ordenará a suspensão do processo até que se restabeleça a saúde mental do acusado ou, por qualquer modo, ocorra a extinção de punibilidade; c) laudo conclui pela plena incapacidade do acusado na época do fato: o juiz receberá a denúncia e determinará o prosseguimento do processo, nomeando curador especial.

Por fim, vale gizar que a imposição de produção de prova pericial cujo descumprimento poderia ensejar a manifestação compulsória do Paciente ou a condução coercitiva ao exame, são repudiadas pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.

Assim, este incidente de insanidade mental é medida em favor da defesa e não é possível, assim, determina-la quando esta a ela se opõe.

        

MODELO DE REPRESENTAÇÃO DE INSTAURAÇÃO DE INCIDENTE DE INSANIDADE MENTAL (FASE INQUISOTORIAL)

 

EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DE DIREITO DA VARA CRIMINAL DA COMARCA DE ________________________

 

Referência: Inquérito Policial nº

 

A POLICIA CIVIL DO ESTADO DO _________________, por intermédio do Delegado de Polícia que a presente subscreve, no uso de suas atribuições legais, com fulcro nos artigos 149 e seguintes do Código de Processo Penal, vem à digna presença de Vossa Excelência requerer a INSTAURAÇÃO DO INCIDENTE DE INSANIDADE MENTALdo INVESTIGADO _____________________, haja vista que as informações constantes no IP – indicar quais informações – em epígrafe que dão conta de razoável dúvida sobre a sua higidez mental.

Sobre o assunto, dispõe o artigo 149, caput, do Código de Processo Penal:

Art. 149. Quando houver dúvida sobre a integridade mental do acusado, o juiz ordenará, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, do defensor, do curador, do ascendente, descendente, irmão ou cônjuge do acusado, seja este submetido a exame médico-legal.

O §1º do mesmo dispositivo estabelece que o exame poderá ser ordenado na fase de inquérito policial, mediante representação do delegado de polícia:

§ 1o  O exame poderá ser ordenado ainda na fase do inquérito, mediante representação da autoridade policial ao juiz competente.

E ensina, ainda, a jurisprudência Pátria:

“O artigo 149 do Código de Processo Penal expressa que, em havendo qualquer dúvida sobre a integridade mental do acusado, será este submetido a exame pericial. Trata-se de meio legal de prova, que não pode ser substituído nem mesmo pela inspeção pessoal do juiz, que, sobre a saúde psíquica do réu, só poderá foram juízo em laudo psiquiátrico produzido por médicos especialistas” (RTJ 63/70).

Oportunamente, requeremos ordem judicial para hospitais que tenham prestado ou venham a atender o investigado, forneçam cópias de prontuários, fichas médicas e tudo mais relativo ao atendimento realizado.

Com vista a garantir a celeridade do pedido, a Polícia Judiciária apresenta, desde já, os quesitosa serem respondidos pelos peritos:

1) O paciente é portador de distúrbio mental ou anomalia psíquica? Em caso positivo, qual?

2) O paciente, ao tempo da ação, era, por motivo de doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, inteiramente incapaz de entender o caráter criminoso do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento?

3) O paciente, ao tempo da ação, por motivo de perturbação de saúde mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, estava privado da plena capacidade de entender o caráter criminoso do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento?

4) Tal distúrbio mental o impossibilita de viver em sociedade ou coloca em risco a comunidade em que vive?

 

Termos em que

Pede deferimento.

 

LOCAL E DATA

 

DELEGADO DE POLÍCIA CIVIL

 

Sobre os autores

Francisco Célio Campos Gonçalves Benício – Delegado de Polícia do Estado do Piauí e Especialista em Direito Público
Yan Rêgo Brayner – Delegado de Polícia Civil do Estado do Piauí e Especialista em Ciências Criminais.

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