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Retirar o preservativo durante o ato sexual constitui crime?

por Editoria Delegados

Stealthing analisado à luz do Código Penal Brasileiro

 

O “stealthing”, em português “dissimulação”, é uma prática que foi recentemente trazida à luz pela mídia nacional e internacional. A prática consiste no ato de retirar o preservativo durante a relação sexual, sem o conhecimento ou consentimento da(o) parceira(o).

 

Houve, na Suíça, um julgado bastante popular que enquadrou tal prática como estupro. Esse julgado gerou grande discussão interna, portanto realizar uma análise à luz do Código Penal Brasileiro tornou-se relevante para elucidar como o direito brasileiro trata a conduta em diferentes hipóteses.

 

1) Estuprador ou Estelionatário sexual?

Hipótese 1: A relação sexual é consentida, mas um dos parceiros à condiciona ao uso de preservativo. O agente durante a relação retira o preservativo, a(o) parceira(o) percebe e se nega a continuar o ato, todavia o agente continua, se utilizando de violência ou grave ameaça.

 

Essa hipótese é enquadrada no artigo 213 do código penal, crime de estupro, sendo crime hediondo e, portanto, sofre os efeitos da lei 8072/90, dentre os quais destaca-se o considerável aumento de prazo para livramento condicional e progressão de regime e também a vedação da concessão de indulto, graça ou anistia. É preciso explicitar que, para a visualização do estupro, é necessário que os elementos objetivos do tipo estejam presentes.

 

Decreto lei nº 2.848/40, Código Penal:

 

“Estupro Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:

 

Pena – reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos. “

Para a configuração do crime de estupro é preciso que exista a violência ou grave ameaça como meio de obter a conjunção carnal ou ato libidinoso qualquer.

 

Hipótese 2: A relação sexual é consentida, mas um dos parceiros a condiciona ao uso de preservativo. O agente durante a relação retira o preservativo, a(o) parceira(o) só vem a perceber no final da relação.

 

Nessa hipótese, não é possível o enquadramento no artigo 213 do código penal, pois, como foi elucidado, faltam os elementos objetivos do tipo, não existe o emprego de violência nem de grave ameaça. Essa conduta é tipificada pelo artigo 215 do código penal: violação sexual mediante fraude. Neste caso, a punição se aplica quando existe o consentimento, porém esse consentimento possui vício, pois, o agente o obteve por meios fraudulentos, enganosos.

 

Decreto lei nº 2.848/40, Código Penal

 

“Violação sexual mediante fraude art. 215. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos. ”

Há de se ressaltar que diferentemente do estupro, a violação sexual mediante fraude não sofre os efeitos da lei 8072/90, pois não está taxado como hediondo pela mesma.

 

Hipótese 3: A relação sexual é consentida, mas um dos parceiros a condiciona ao uso de preservativo. O agente durante a relação retira o preservativo, a(o) parceira(o) vem a perceber e consente novamente.

 

Não existe fato típico nessa hipótese, pois apesar da conduta inicialmente fraudulenta, o vício no consentimento é sanado posteriormente, não gerando dano à liberdade sexual do(a) parceiro(a).

 

 

2) Consequências penais da transmissão de doenças e gravidez

Ainda há de se fazer considerações a respeito do enorme risco de contaminação com doenças sexuais que a prática do “stealthing” traz consigo. Se o agente, seja estuprador ou estelionatário sexual possuir doença sexualmente transmissível, e ocorrer a transmissão da doença, existem possíveis tipificações penais que merecem ser ponderadas, além disso, também merece atenção o sempre presente risco de gravidez.

 

A eventual gravidez provocada tanto do estuprador quanto pelo estelionatário sexual constitui causa de aumento de pena.

 

Decreto lei nº 2.848/40, Código Penal:

 

“Art. 234-A. Nos crimes previstos neste Título a pena é aumentada

 

III – de metade, se do crime resultar gravidez;”

Cabe comentar que as causas de aumento de pena são consideradas na terceira fase da dosimetria, e podem elevar a pena a cima do limite abstrato legal.

 

Salienta-se que no caso do estupro que resulta em gravidez, existe a possibilidade legal de abortamento.

 

 

Decreto lei nº 2.848/40, Código Penal:

 

Art. 128 – Não se pune o aborto praticado por médico:

 

[…]

 

II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.
A opção da vítima pelo aborto não retira nem diminui a aplicação causa de aumento do resultado gravidez.

 

Tanto no estupro quanto na violação sexual mediante fraude, se a doença transmitida não envolver o vírus HIV, incide a causa de aumento do artigo 234-A, IV, CP.

 

Decreto lei nº 2.848/40, Código Penal:

 

“Art. 234-A. Nos crimes previstos neste Título a pena é aumentada:

 

IV – de um sexto até a metade, se o agente transmite à vítima doença sexualmente transmissível de que sabe ou deveria saber ser portador. ”

 

Como já foi pontuado, pode levar até ao extrapolamento do limite abstrato legal da pena.

 

Sobre especificamente a transmissão do HIV, existe entendimento do STJ de que a transmissão desse vírus constitui lesão corporal de natureza grave. (HC 160.982/DF, Rel. Min. Laurita Vaz, DJe 28/05/2012). Todavia, Nucci (2016, p. 906) atenta para a necessidade de avaliação médica, pois graças aos avanços da medicina e conforme o caso concreto, a enfermidade pode ser letal ou controlada. No entanto, apesar da ressalva, o entendimento permanece.

 

Sendo assim, tanto no estupro quanto no estelionato sexual, caso a transmissão do vírus do HIV seja dolosa, o agente deve responder pelo crime sexual em concurso formal impróprio com lesão corporal de natureza grave. Admite-se a possibilidade de dolo eventual.

 

 

3) Conclusão

O tema abordado, gera grande comoção social e o clamor por punição aliado com a popular decisão Suíça geram um grande estado de desinformação. Esse artigo foi escrito com o intento de informar e gerar debate acadêmico sobre as questões levantadas.

 

A pena adequada é aquela individualizada e alicerçada no tipo penal adequado. Para que os objetivos ideais da pena (reprovação, prevenção e reintegração) sejam alcançados é preciso, dentre outros fatores, que o reeducando tenha consciência da ilicitude e da gravidade de seus atos, tal condição só pode ser alcançada com o encaixe no tipo penal correto.

 

Por  Renan Soares, Estudante de Direito

 

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