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Pacote ‘anticrime’ não tira prerrogativa do delegado na colaboração premiada

por Editoria Delegados

Por Márcio Adriano Anselmo e Francisco Sannini Neto

Inicialmente, a colaboração premiada era tratada na Lei de Crime Organizado (Lei n° 12850/2013) nos artigos 4° a 7°. Com as alterações introduzidas pela Lei n° 13.964/2019, foram introduzidos outros três artigos (3-A, B e C), bem como incluídos diversos parágrafos ou mesmo alterado a redação de outros. Assim, o quadro existente até 2019 foi consideravelmente alterado pelo novo diploma legal, em parte incorporando alguns posicionamentos jurisprudenciais recentes e em parte inovando consideravelmente no modelo do instituto.

A colaboração premiada foi certamente um dos principais alvos do legislador no denominado pacote “anticrime”. Entre as diversas alterações ocorridas na Lei 12.850/13, diploma em que encontra-se hospedado o regramento geral do instituto, chamou atenção o novo artigo 3º-A, foco deste estudo, que estabelece o seguinte:

“Artigo 3º-A — O acordo de colaboração premiada é negócio jurídico processual e meio de obtenção de prova, que pressupõe utilidade e interesse públicos”.

Note-se que por meio desse dispositivo o legislador encampa posicionamento já consolidado na doutrina e jurisprudência sobre a natureza jurídica da colaboração premiada. Nesse sentido, aliás, já nos posicionávamos antes da Lei 13.964/19 ao conceituar o instituto: “Trata-se, nos termos da lei, de um meio de obtenção de provas, ou, como preferimos, uma técnica especial de investigação criminal, verdadeiro negócio jurídico processual personalíssimo” [1].

Várias são as discussões quanto à natureza jurídica da colaboração premiada. Inicialmente, a colaboração não se trata de meio de prova, mas deve ser classificada como um meio de obtenção de elementos de prova, como bem coloca Gilson Langaro Dipp, em que pese o propósito da mesma apontado pelo autor não corresponda à realidade, apontado como “promover a rápida apuração dos ilícitos e de modo célere a aplicação das punições correspondentes em face de condutas de difícil comprovação” [2]. Não se trata de promover a rápida apuração e/ou punição, mas sim de alcançar toda a estrutura da organização criminosa investigada, sobretudo com a apresentação ou indicação da localização de provas materiais dos fatos investigados.

Tal questão diz respeito direto à natureza jurídica do instituto. Nos parece não restar dúvida quanto à natureza primária de meio de obtenção de prova. Essa foi a posição de diversos julgados no Supremo Tribunal Federal, como por exemplo no HC 90.688-PR (relator Lewandowski), em que se depreende que:

“Nessa ocasião a Corte fixou entendimento de não constituir esse documento meio de prova, mas meio de obtenção dela assim não se submetendo necessariamente ao contraditório ou ampla defesa, podendo manter-se sobre ele o sigilo às demais partes (não envolvidas no acordo) ou interessados, enquanto não conveniente para a instrução ou até que a lei o dispense”.

Outrossim, com a alteração legislativa em comento, o legislador passou a prever expressamente a condição de negócio jurídico processual.

Atualmente, portanto, a colaboração premiada é legalmente conceituada como meio de obtenção de prova e negócio jurídico processual, exigindo-se, ademais, dois pressupostos para a sua adoção: utilidade pública e interesse público.

Em que pese o diploma legal não tenha o condão de alterar a natureza jurídica do instituto, entendemos que a colaboração premiada é preponderantemente um meio de obtenção de prova. Outrossim, o fato de considera-la como negócio jurídico processual não gera maiores conflitos, tendo em vista que parte da doutrina já reconhecia tal característica no instituto.

Feitas essas considerações, passamos analisar se essa nova roupagem legalmente conferida à colaboração premiada, destacando-a como “negócio jurídico processual”, inviabilizaria a sua formalização pelo delegado de polícia, uma vez que, argumenta-se, esse tipo de ato só poderia ser realizado pelo Ministério Público, que é parte do processo.

Antes, contudo, de avançarmos nessa inovação legislativa é preciso contextualizar a discussão da matéria. No artigo 4º, §6º, da Lei 12.850/13, inalterado pelo pacote “anticrime”, o legislador indica as autoridades públicas com legitimidade para a realização do acordo de colaboração premiada em nome do Estado, senão vajamos:

“Artigo 4º, §6 — O juiz não participará das negociações realizadas entre as partes para a formalização do acordo de colaboração, que ocorrerá entre o delegado de polícia, o investigado e o defensor, com a manifestação do Ministério Público, ou, conforme o caso, entre o Ministério Público e o investigado ou acusado e seu defensor”.

Sem embargo, para parcela da doutrina, a partir de fundamentos de ordem corporativista, buscam defender que o dispositivo em questão seria inconstitucional por ferir o sistema acusatório [3]. Argumentam, em síntese, que nenhuma providência probatória poderia ser efetivada sem a provocação das partes, em especial quando o titular da ação penal ainda não tiver manifestado a sua opinio delicti.

Tal situação fora enfrentada e pacificada no julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, da ADI 5508, em que restou clara a legitimidade da polícia judiciária para manusear os meios de obtenção de prova.

Ocorre que, conforme exposto acima, com o acréscimo do artigo 3º-A à Lei 12.850/13, a polêmica, já pacificada pelo STF no âmbito de ADI, em torno do tema foi reavivada sob o argumento de que por se tratar de um “negócio jurídico processual” a colaboração só poderia ser levada a termo pelo Ministério Público, que é parte em eventual processo posterior.

Parece-nos, uma vez mais, que os defensores dessa tese insistem em se pautar por interesses corporativos que visam a concentrar poderes nas mãos do Ministério Público em detrimento das polícias judiciárias, instituições constitucionalmente vocacionadas à apuração de infrações penais.

Em linhas gerais, “negócio jurídico” é um ato que tem por finalidade promover a aquisição, transformação ou extinção de um direito, podendo ser unilateral (mera declaração de vontade, como, por exemplo, no testamento), bilateral ou plurilateral. Nos termos do artigo 104 do Código Civil, a validade do negócio jurídico requer: a) agente capaz; b) objeto lícito, possível, determinado ou determinável; e c) forma escrita e não defesa em lei.

Analisemos, pois, esses requisitos à luz do acordo de colaboração premiada. Primeiramente, não se pode questionar a capacidade do delegado de polícia para formalizar o pacto de cooperação. Vislumbra-se, é verdade, a eventual incapacidade do colaborador nas hipóteses em que sua voluntariedade estiver comprometida, o que, evidentemente, torna nulo o acordo celebrado (artigo 4º, §7º, inciso IV, da Lei 12.850/13, acrescentado pela Lei 13.964/19).

O objeto do acordo de colaboração, por sua vez, deverá seguir as premissas do artigo 4º, caput, da lei, sendo nulas as cláusulas que estabeleçam prêmios não previstos no ordenamento jurídico ou que resultem em renúncia de direitos fundamentais (artigo 4º, §7º, inciso II e §7º-B). Por fim, todas as formalidades do acordo estão elencadas no artigo 3º-A e seguintes, cabendo ao juiz zelar pela sua regularidade e legalidade.

É inegável, portanto, que a colaboração premiada realizada na fase de investigação constitui “negócio jurídico extraprocessual”, seja se formalizada pelo MP ou pelo delegado de polícia. Entretanto, não se pode olvidar que as partes interessadas, vale dizer, MP, delegado de polícia e investigado, apenas indicam um benefício legal em contrapartida pela colaboração prestada, mas quem decide é o magistrado, que, para tanto, deve se valer de um juízo de proporcionalidade entre os meios e os fins, observando em sua decisão de homologação a personalidade do colaborador, a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a repercussão social do fato criminoso, bem como a regularidade e legalidade da colaboração, a adequação dos benefícios e resultados pactuados e a sua voluntariedade (artigo 4º, §1º e §7º, LOC) [4].

Ao homologar o acordo, portanto, o juiz jurisdicionaliza o compromisso firmado pelas partes, conferindo-lhe a eficácia dos que ele próprio teria realizado [5], fazendo nascer um direito para o colaborador, qual seja, o direito de ser contemplado com determinado prêmio legal.

Por obviedade, esse “negócio jurídico extraprocessual” aperfeiçoado com a homologação do acordo não confere ao colaborador o direito líquido e certo ao recebimento do benefício, porquanto a apreciação da colaboração premiada submete-se à regra da corroboração [6], vedando-se a corroboração recíproca ou cruzada [7]. Em outras palavras, todas as informações trazidas pelo colaborador durante a investigação precisam ser ratificadas na fase processual, cabendo ao juiz ou tribunal competente a avaliação sobre a eficácia da colaboração prestada antes de conceder os benefícios pactuados.

Destarte, pode-se afirmar que se a colaboração foi efetiva, ou seja, se o colaborador cumpriu todas as cláusulas que o vinculavam, viabilizando, consequentemente, a obtenção dos resultados pretendidos pelo Estado, ele terá direito aos benefícios pactuados no seu grau máximo. Conforme preconizam Canotilho e Brandão:

“(…) Homologando o acordo, o juiz não se limita a declarar a sua validade legal, mas também, de certo modo, assume um compromisso em nome do Estado: ocorrendo a colaboração nos termos pactuados e sendo ela eficaz, em princípio devem ser outorgadas ao réu colaborador as vantagens que lhe foram prometidas” [8].

No mesmo diapasão é a jurisprudência do STF:

“(…) Caso se configure, pelo integral cumprimento de sua obrigação, o direito subjetivo do colaborador à sanção premial, tem ele o direito de exigi-la judicialmente, inclusive recorrendo da sentença que deixar de reconhecê-la ou vier a aplicá-la em desconformidade com o acordo judicialmente homologado, sob pena de ofensa aos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança” [9].

Percebe-se, assim, que é nesse momento da sentença que a colaboração premiada ganha status de “negócio jurídico processual”, uma vez que o juiz fica vinculado aos seus termos. Dizendo de outro modo, o acordo acaba direcionando o próprio processo e suas consequências jurídicas. Daí porque entendemos que o instituto tem, em princípio, caráter de negócio jurídico extraprocessual. Entretanto, considerando que com a homologação o pacto produz efeitos no processo, vinculando o juízo competente nos casos em que suas cláusulas forem devidamente cumpridas, também se trata de negócio jurídico processual.

Assim, não nos convence o argumento de que o acordo de colaboração premiada só pode ser realizado pelo MP, pois, insistimos, no momento da sua homologação, ao menos em regra, nem sequer existe processo, estando MP e delegado de polícia na mesma condição, vale dizer, como representantes do Estado-investigação. Demais disso, é perfeitamente possível que o acordo celebrado e homologado nem sequer repercuta no processo, se, por exemplo, houver rescisão por descumprimento de alguma cláusula pelo colaborador.

Ao que nos parece, a tese de que o delegado de polícia não poderia realizar acordos de colaboração premiada se equivoca por tentar trazer para o processo penal algumas premissas adotadas no processo civil, em que, vale lembrar, estão em jogo bens jurídicos disponíveis. Numa interpretação literal, “negócios jurídicos processuais” facultam às partes a criação de regras especiais de “procedimento”, como prevê o artigo 190 do Código de Processo Civil, mas, ainda assim, apenas quando se tratar de processo sobre direitos que admitam autocomposição.

Ora, é evidente que no processo penal forma é garantia, razão pela qual não se admite qualquer alteração no procedimento legalmente previsto. Isso significa que não se pode estabelecer em um acordo de colaboração o rito procedimental a ser seguido. Assim, ao conceituar a colaboração como “negócio jurídico processual” o legislador quis dizer que o pacto devidamente homologado e cumprido deve vincular o processo, servindo, na verdade, como vetor para toda a persecução penal.

Por tudo isso, concluímos que as inovações promovidas pelo pacote “anticrime” não alteram em absolutamente nada o panorama jurídico acerca da legitimidade para a realização do acordo de colaboração premiada, que permanece nas mãos do delegado de polícia e do Ministério Público como meio de obtenção de prova e ferramenta essencial na apuração de infrações penais e desarticulação de organizações criminosas.

[1] CABETTE, Eduardo. SANNINI, Francisco. Tratado de Legislação Especial Criminal. Juspodivm: Salvador, 2018.

[2] DIPP, Gilson Langaro. A Delação ou Colaboração Premiada: uma análise do instituto pela interpretação da lei. Brasília: IDP, 2015, p. 9.

[3] DE GRANDIS, Rodrigo. A inconstitucional participação de delegados de polícia nos acordos de colaboração premiada. In: Jota, mai. 2015. Disponível em: < https://jota.info/artigos/rodrigo-de-grandis-a-inconstitucional-participacao-de-delegados-de-policia-nos-acordos-de-delacao-premiada-05052015>. Acesso em 01 mar. 2016.

[4] Destaque-se que a eficácia da colaboração só poderá ser avaliada pelo juiz no momento da sentença, sendo inviável tal avaliação quando da homologação do acordo. Nesse sentido, STF, HC 144.652/DF, Rel. Min. Celso de Mello, 12.06.2017.

[5] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. vol. III. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 272-274.

[6] Artigo 4º, §16 da Lei 12.850/13; STF, HC 75.226, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 19/09/1997.

[7] BADARÓ, Gustavo. O valor probatório da delação premiada. In: Consulex, v. 19, n. 433, p. 26-29, fev. 2015; STF, Pet 5.700, Rel. Min. Celso de Mello, DP 24/09/2015.

[8] CANOTILHO, J.J. Gomes; BRANDÃO, Nuno. Colaboração premiada: reflexões críticas sobre os acordos fundantes da Operação Lava Jato. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, vol. 133, ano 25, p. 133-171, jul. 2017. p. 150.

[9] STF, HC 127.483/PR, Pleno, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 27.08.205.

 

Sobre os autores

Márcio Adriano Anselmo é delegado da Polícia Federal, doutor pela Faculdade de Direito da USP, mestre em Direito pela UCB e especialista em investigação criminal pela ESP/ANP e em Direito do Estado pela UEL.

Francisco Sannini Neto é delegado de polícia do Estado de São Paulo, professor da pós-graduação da Unisal-Lorena, da Acadepol-SP e do Damásio Educacional, mestre em Direitos Difusos e Coletivos e pós-graduado com especialização em Direito Público, colunista do Canal Ciências Criminais e autor de livros jurídicos.

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