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Metodologia investigatória na perspectiva de gênero, desenvolvida no Estado do Piauí

por Editoria Delegados

Por Anamelka Albuquerque Cadena

 

RESUMO:

 

Os crimes fundamentados na intolerância têm vitimado milhares de mulheres em todo o mundo, e no Piauí não tem sido diferente. Identifica-se que essa violência é nutrida pela disparidade que habita as relações de gênero, socialmente impostas, nas quais o modelo masculino se sobrepõe como uma performance dominadora em face do feminino, gerando um cenário fértil para o nascedouro da violência de gênero. Em razão desse fato, surgiu a necessidade de nominar os assassinatos em razão do gênero de feminicídio, e, para desnudar a face dessa violência de dolo específico, mostrou-se inescusável desenvolver uma metodologia investigatória própria, que fosse capaz de revelar as nuances dessa modulação constante no centro motivacional desses crimes. Para tanto, foram consultadas, além da legislação vigente – tanto nacional quanto internacional – protocolos, literatura e as práticas policiais específicas, adequando-as às particularidades das nossas realidades locais. O objetivo desse estudo foi fazer emergir as questões de gênero, as quais, além de outorgarem a adequação do fato típico na circunstância qualificadora do feminicídio, assegurarão a visibilidade desse contexto violento, permitindo-se propor formas eficazes de enfrentamento a este tipo de delito.

 

Palavras-chave: Violência de gênero. Feminicídio. Metodologia investigatória. Piauí. Políticas públicas.

 

ABSTRACT

Crimes based on intolerance have killed thousands of women all over the world; at Piauí, it has not been different. It has been identified that this violence is nourished by the disparity that inhabits socially imposed gender relations, in which the masculine model overlaps in a dominating performance in the face of the feminine – fertile scenario for the birth of gender violence. Due to this fact, the need to name these murders based on gender violence of feminicide, and, in order to bare the face of this violence of specific malice, it was inexcusable to develop its own investigative methodology that could reveal the nuances of this constant modulation in the motivational center of these crimes. In addition to the current legislation – both national and international – protocols, literature and specific police practices were consulted, adapting them to the particularities of our local reality. The purpose of this study was to emerge the gender ratios, which besides granting the adequacy of the typical fact in the qualifyingcircumstance of feminicide, will ensure the visibility of this violent context, allowing to propose effective ways of fighting this type of crime.

Keywords: gender violence, feminicide, investigative methodology, Piauí, public policy.

 

INTRODUÇÃO

A violência contra a mulher reflete um triste cenário de violação aos direitos humanos, desvelando que as construções sociais de gênero foram significativas para firmar a dominação masculina, havendo mulheres atingidas diuturnamente pela violência patriarcal no ambiente doméstico e público. Note-se, que segundo os dados do Mapa da Violência 2015: Homicídio de Mulheres no Brasil, treze mulheres foram assassinadas por dia neste país, quase 5 (cinco) mil no ano citado.

Portanto, devido aos assassinatos de mulheres por razões de gênero terem sido considerados um problema social, no Piauí, sentiu-se a necessidade de promover o desenvolvimento de políticas públicas com o escopo de fazer o enfrentamento a essa violência, e uma delas foi o desenvolvimento de uma metodologia específica para investigações dos assassinatos de mulheres, pela condição do sexo feminino.

Esse artigo contempla a necessidade da aplicação de um protocolo de investigação específico para o assassinato de mulheres na perspectiva de gênero, cujo objetivo é a sistematização de uma investigação pautada, metodologicamente, a partir das análises das Diretrizes Nacionais do Feminicídio, Pacto Nacional de Redução de Homicídios, Protocolo de Bogotá, Estatísticas Criminais produzidas pela Gerência de Estatísticas e Análise Criminal da SSP/PI, Carta de Serviços do Departamento de Polícia Técnico-Científica e análise dos Inquéritos Policiais, que apuraram feminicídio no período de 09.03.15 (data de vigência da Lei nº 13.104/15) até 30.08.16, além de referenciais teóricos que discutem a dinâmica da violência de gênero e a investigação de homicídios, associando as realidades locais.

Tais análises permitiram que a face invisível da morte de mulheres pela condição do sexo feminino fosse desnudada de modo a outorgar o enquadramento legal na circunstância qualificadora do feminicídio, uma vez que essa modulagem alcançará a identificação das razões de gênero no epicentro do fator motivacional da prática delitiva, com base na perspectiva hora estudada.

A propositura deste modelo metodológico tem o intuito de modernizar e qualificar o trabalho policial, o que resvalará em uma potencial responsabilização do autor do fato típico, afastando a impunidade e subsidiando a visibilidade do substrato desse crime de ódio. Além disso, permitirá, também, o desenvolvimento de políticas públicas direcionadas ao enfrentamento dessa espécie de crime tão abjeto, o qual perpetua as desigualdades de gênero e naturaliza a violência contra a mulher.

Nesse diapasão, faremos uma abordagem quanto ao estudo de gênero e de como este pode acentuar o cenário da violência contra mulher que será também objeto de análise neste artigo sob o ângulo da Lei Maria da Penha, sendo avaliado em ato contínuo o fenômeno do feminicídio e a legislação pertinente. Em seguida, traçamos a estrutura da metodologia investigatória na perspectiva de gênero, composta pelos elementos fático, jurídico e probatório, possibilitando alcançar a compreensão de que a qualificação no processo de investigação permite o enquadramento legal adequado e, além disso, permite também auferir políticas públicas capazes de promover o enfrentamento a essa violência, inclusive no âmbito preventivo, ou seja, não focando apenas no viés repressivo.

 

1 ESTUDO DE GÊNERO

 

Desde muito jovens, somos condicionados a compreender que determinadas atividades e performances sociais ficam adstritas a meninos e outras a meninas. Nessa bipartição de papéis preestabelecidos culturalmente, emerge, cristalina, a distinção entre homens e mulheres, sendo que a estas, em regra, são designadas as atividades mais frágeis, enquanto aos homens restaria uma atuação mais robusta e fortificada, ou seja, uma posição de maior poder, de dominação.

Foi nesse viés que a sociedade se desenvolveu e é esse cenário que se busca desconstruir com o escopo de enfrentar a violência abrigada nessa cognição ultrapassada de sociedade machista e excludente.

Campos (2015) acentuou que os estudos de gênero, assim como estudos feministas iniciados na década de 1980 romperam com a noção e identificação biológica do feminino e do masculino. Na década de 1950, Simone de Beauvoir afirmava que “não se nasce mulher, torna-se”.

Os estudos contemporâneos de gênero desnaturalizaram o sistema sexo/gênero revelando que tanto o sexo quanto o gênero são construções sociais e “não há nada que garanta que o ‘ser’ que se torna mulher seja necessariamente uma fêmea”. (BUTLER, 2010, p.26).

Butler destaca que o gênero não deve ser construído como uma identidade estável ou um locus de ação do qual decorrem vários atos; em vez disso, o gênero é uma identidade tenuemente constituída no tempo, instituído num espaço externo por meio de uma repetição estilizada de atos. (BUTLER, 2015, p.26).

A definição de gênero normalmente se apresenta na literatura como a maneira de um indivíduo se identificar em uma sociedade, pautando-se nos papéis construídos e naturalizados socialmente, ao passo que essas construções dos gêneros se orientam por aprendizagens e práticas em um processo contínuo, norteadas por instâncias sociais e culturais, tais como família, escola, igreja e outras instituições, as quais perfazem campos fundamentais nesse processo constitutivo.

Nesse diapasão, Pierre Bourdieu, em A Dominação Masculina (2016, p. 119, p.120 e p. 121), afirma que o trabalho de reprodução esteve garantido, até época recente, por três instâncias principais, a Família, a Igreja e a Escola, que, objetivamente orquestradas, tinham em comum o fato de agirem sobre as estruturas inconscientes. E, sem dúvida, à família cabe o papel principal da reprodução da dominação e da visão masculinas; é na família que se impõe a experiência precoce da divisão sexual do trabalho e da representação legítima dessa divisão, garantida pelo direito e inscrita na linguagem.

Quanto à Igreja, marcada pelo antifeminismo profundo de um clero pronto a condenar e relacionar todas as faltas femininas à decência, sobretudo em matéria de trajes, e a reproduzir, do alto de sua sabedoria, uma visão pessimista das mulheres e da feminilidade, ela inculca (ou inculcava) explicitamente uma moral familista, completamente dominada pelos valores patriarcais e principalmente pelo dogma da inata inferioridade das mulheres. (2016).

Por fim, a Escola, mesmo quando já liberta da tutela da Igreja, continua a transmitir os pressupostos de representação patriarcal (baseada na homologia entre a relação homem/mulher e a relação adulto/criança) e principalmente, talvez, os que estão inscritos em suas próprias estruturas hierárquicas, todas sexualmente conotadas, entre as diferentes escolas ou as diferentes faculdades, entre as disciplinas (“moles” ou “duras” – ou, mais próximas da inquietação mítica original, “ressecantes”), entre as especialidades. Isto é, entre as maneiras de ser e as maneiras de ver, de se ver, de representar as próprias aptidões e inclinações, em suma tudo aquilo que contribui para traçar não só os destinos sociais como também a intimidade das imagens de si mesmo.

A partir desta compreensão, torna-se perceptível que essa desigualdade, oriunda da construção social que se consolidou ao longo dos séculos, com a delimitação dos campos de atuações femininos e masculinos, reforçados pelo patriarcado, apresenta-se como fator que implica socialmente na hierarquia dos gêneros, a partir da qual o masculino sempre se posicionou de forma dominante, em um cenário fadado à violência.

Segundo Damásio de Jesus, em A Violência contra a Mulher (2015, p. 7):

nas sociedades nas quais a definição de gênero feminino tradicional é referida à esfera familiar e à maternidade, a referência fundamental da construção social do gênero masculino é a sua atividade na esfera pública, concentrador dos valores materiais, o que faz dele o provedor e protetor da família.

Por outro lado, nessas mesmas sociedades, as mulheres estão maciçamente presentes na força de trabalho e no mundo público. A distribuição social da violência reflete a tradicional divisão dos espaços: o homem é vítima da violência na esfera pública, e a violência contra a mulher é perpetuada no âmbito doméstico, no qual o agressor é, mais frequentemente, o próprio parceiro.

Todavia, é salutar destacar que essa discussão não foi contemplada na letra da Lei 13.104/2015, que se resumiu ao determinismo biológico quando se referiu à condição do sexo feminino, descredenciando, positivamente a violência de gênero no seu aspecto mais amplo. Esse aspecto será naturalmente alcançado através da literatura e das construções jurisprudenciais.

 

2 VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER

 

A violência contra a mulher deve ser conceituada a partir do enfoque dado pela Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, “Convenção de Belém do Pará” (Adotada em Belém do Pará, Brasil, em 9 de junho de 1994, no vigésimo quarto período ordinário de sessões da Assembleia Geral), como qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada.

Destarte, essa violência caracteriza-se, pela prática de atos violentos contra as mulheres, por razões de gênero, lembrando que esse fenômeno da violência contra a mulher está fincado em uma discriminação histórica em face do feminino, em total desrespeito ao preceito básico e constitucional da igualdade.

Tais violações tornam a mulher suscetível à violência e, em especial, à violência no âmbito doméstico e nas relações intrafamiliares, o que culmina em danos e agravos, que transgridem seus direitos humanos mais básicos, no local aonde deveria estar bem protegida.

O movimento feminista teve papel significativo na mudança de paradigma neste cenário de violência contra a mulher, obtendo paulatinos sucessos quanto aos reclames, provocando soluções e adoções de políticas públicas pertinentes ao enfrentamento da violência contra a mulher e, ainda, promovendo o reconhecimento de direitos e conquistas femininas ao longo dos séculos.

Coadunando com a cronologia dos alcances legislativos que contemplaram as mulheres ao longo dos anos, disposta por Valeria Diez Scarance Fernandes, em sua obra aqui referendada, observa-se que estas foram inauguradas, em termos contemporâneos, em 1988, com a Constituição Federal. A Carta Magna previu a igualdade de homens e mulheres no que tange aos direitos e obrigações (art. 5, inciso I), no momento em que se rompe com o sistema patriarcal adotado na legislação, que muitas vezes condicionava a conduta da mulher casada à aprovação do homem.

Seguido pela Lei nº 10.886, de 17 de junho de 2004, que acrescentou os §§ 9º e 10º ao art. 129 do Código Penal, por ocasião em que surgiu a violência doméstica, um ano mais tarde surge a Lei 11.106, de 28 de março de 2015, a qual conferiu nova redação aos arts. 148, 215, 216, 226, 227 e 231 do Código Penal, quando foram retiradas da legislação expressões que remetiam à honra da mulher e elevando a pena em razão de vínculo familiar ou afetivo com o agente, bem como a revogação da causa extintiva da punibilidade referente ao casamento da vítima nos crimes sexuais.

Deve ser feito um adendo quanto à legislação de 1995, ocasião em que entrou em vigor a Lei 9.099, como analisou Eliane de Souza Cordeiro, em sua obra Violência Contra a Mulher é Crime! (2014), momento legislativo em que a violência contra a mulher era julgada como crime de menor potencial ofensivo, oportunidade em que cita Pasinato (2007). Este autor destaca que esse tipo de penalização reforçava o entendimento de diminuição da gravidade da violência cometida, resultando em um processo de revitimização da mulher, visto que suas expectativas pareciam ter sido ignoradas e excluídas da decisão judicial.

Então, em 2006, emerge a Lei 11.340, a qual, segundo Porto (2014), mais do que para regulamentar relações econômicas ou sociais, a referida lei tem o escopo de contribuir para modificar uma realidade social, forjada ao longo da história, a qual discrimina a mulher nas relações familiares ou domésticas, aviltando-a à condição de cidadã de segunda categoria, rebaixando sua autoestima e afetando sua dignidade humana.

A Lei Maria da Penha, como fora apelidada a Lei nº. 11.340/06, trouxe consigo inúmeras inovações ao ordenamento, bem como o recrudescimento da forma de tratamento aos crimes de violência doméstica, a começar pela determinação de que todo caso de violência trazido pela Lei deve ser apurado através de Inquérito Policial, afastando a incidência da Lei 9.099/95 e remetido ao Ministério Público.

Além disso, tais crimes saem da jurisdição comum para serem julgados nos Juizados Especializados de Violência Doméstica contra a Mulher, com competência cível e criminal para abranger as questões de família.

A Lei ainda cuidou de tipificar as situações de violência doméstica, além de vedar a aplicação de penas pecuniárias aos agressores, demonstrando a preocupação do legislador em desestimular tais práticas delituosas.

Ademais, a dita codificação alterou o Código de Processo Penal para possibilitar ao juiz a decretação da prisão preventiva, quando houver riscos à integridade física ou psicológica da mulher, além de ter alterado também a lei de execuções penais para permitir ao juiz que determine o comparecimento obrigatório do agressor a programas de recuperação e reeducação, em decorrência do uso de violência contra a mulher. Além do mais, determina o encaminhamento das mulheres em situação de violência, assim como de seus dependentes a programas e serviços de proteção e assistência social.

Finalmente, a Lei Maria da Penha prevê um capítulo específico para o atendimento pela autoridade policial para os casos de violência doméstica contra a mulher, estabelecendo a forma como deve agir a autoridade policial e todos os envolvidos no atendimento às mulheres vítimas desse tipo de violência.

Apesar de todas as benesses, a referida lei apresentou um grande déficit, em razão de não ter tratado com a devida atenção o fenômeno das mortes de mulheres em razão de gênero, fato esse ao qual só foi dada a devida atenção muito recentemente, com a aclamada Lei do Feminicídio.

Nesses termos, surge finalmente a lei 13.104, de 09/03/2015, que define como o Feminicídio – a morte da mulher por razões da condição do sexo feminino, e estabelece que existem as chamadas razões de condição de sexo feminino quando o crime envolver violência doméstica e familiar, menosprezo ou discriminação à condição de mulher.

Tal lei criou, ainda, o aumento de pena específica (um terço até a metade) para os casos em que o feminicídio tenha sido praticado: a) durante a gestação ou nos três meses posteriores ao parto; b) contra pessoa menor de quatorze anos ou contra pessoa maior de sessenta anos ou contra pessoa deficiência; c) na presença de descendente ou ascendente da vítima, além de incluir essa prática no rol dos crimes hediondos, trazidos pela Lei 8.072/90.

 

3 FEMINICÍDIO

 

A expressão máxima da violência contra a mulher é reconhecida no assassinato feminino por razões de gênero, quer dizer, na morte violenta da mulher pelo simples fato de ser mulher, na expressão extrema da misoginia e da desigualdade de gênero tão perpetuada por práticas rotineiras e convalidadas por discursos os mais variados, de instituições constituídas, como anteriormente exposto.

A lei que previu o Feminicídio no Brasil surge a partir de um clamor do movimento de mulheres reverberando os anseios sociais que assistiam a naturalização do fenômeno do assassinato de mulheres por razões de gênero.

Em contraponto a este fato, era ensurdecedora a omissão do Estado por permanecer mantendo o viés androcêntrico do Direito Penal, permitindo a invisibilidade da morte de mulheres por serem mulheres, maculando seus direitos humanos, uma vez que não possibilitavam um asilo pertinente.

Na obra Gênero e Colonialidade: em busca de chaves de leitura e de um vocabulário estratégico descolonial, Rita Laura Segato (2012) afirma que apesar de todo o aparato jurídico que se conhece, desde a Conferência Mundial sobre Direitos Humanos de 1993, com a expressão direitos das mulheres, podemos, sem dúvida, falar da barbárie crescente de gênero moderno, ou do que já é chamado genocídio de gênero.

Adriana Ramos de Melo, em Feminicídio (2016, p.128), lembra que a falta de dados oficiais sobre a morte de mulheres no Brasil, a curva ascendente de feminicídios, e as denúncias de omissão por parte do Poder Público, com relação à aplicação de instrumentos instituídos em lei para proteger as mulheres em situação de risco, fez com que o Senado Federal criasse a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre Violência contra a Mulher (CPMI-VCM).

A primeira constatação da CPMI foi justamente a ausência de dados estatísticos confiáveis e comparáveis sobre o assunto em todos os Poderes constituídos e em todas as esferas de governo, a qual foi essencial para a evolução do debate sobre a violência contra a mulher em geral e, em específico, sobre a necessidade de criminalização do Feminicídio no Brasil.

No relatório da CPMI, foi constatado que, no Brasil, as mortes violentas de mulheres eram praticadas por seus parceiros e que “não são incidentes isolados que surgem repentina e inesperadamente, mas sim o ato último da violência contra mulheres, vivenciada como um contínuo de violência”. Finalizou, concluindo, pela evidente importância de tipificar o feminicídio, promovendo o reconhecimento, na forma da lei, de que mulheres estão sendo mortas por serem mulheres, demonstrando, cabalmente, a desigualdade de gênero existente em nossa sociedade MELLO (2016, p. 130).

Além disso, conforme Melo (ano e página), essas comprovações e evoluções legislativas buscam evitar que feminicidas sejam beneficiados por interpretações jurídicas anacrônicas e moralmente inaceitáveis, como a de terem cometido “crime passional”.

Através disso, envia mensagem positiva à sociedade de que o direito à vida é universal e de que não haverá impunidade. Protege, ainda, a dignidade da vítima, ao obstar, de antemão, estratégias que envolvem a desqualificação midiática das mulheres brutalmente assassinadas, atribuindo a elas a responsabilidade pelo crime de que foram vítimas. MELLO (2016, p. 130)

Portanto, a lei 13.104/2015, alterou o Código Penal em seu art. 121, incluindo o Feminicídio como uma circunstância qualificadora do crime de homicídio, além de ter previsto uma causa de aumento de pena no patamar de 1/3, se o crime tiver sido cometido durante a gestação ou nos três meses posteriores ao parto; contra menor de 14 anos ou maior de 60 anos de idade; de mulher com deficiência, ou ainda na presença de ascendente ou descendente da vítima, conforme anteriormente mencionado.

Além do mais, essa prática foi incluída no rol dos crimes hediondos, crimes repudiados socialmente e que possuem um recrudescimento ainda maior da pena, a qual só foi possível em razão de uma recomendação da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre Violência contra a Mulher (CPMI-VCM), acima reportado.

Pela redação do Código Penal Brasileiro, Feminicídio é “o assassinato de uma mulher cometido por razões do sexo feminino”, isto é, quando o crime envolve “violência doméstica ou familiar e/ou menosprezo ou discriminação a condição de mulher”.

Em que pese a definição legal do feminicídio afirmar ser o assassinato de mulheres pela condição do sexo feminino, é necessário lembrar, que na recomendação da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre Violência contra a Mulher (CPMI-VCM), que investigou violência contra as mulheres nos Estados brasileiros entre março de 2012 e julho de 2013, a proposta precípua da lei supramencionada definia Feminicídio como a forma extrema de violência de gênero, que resulta na morte da mulher.

Tal relatório aponta ainda como circunstancias possíveis do crime: a existência de relação íntima de afeto ou parentesco entre o autor e a vítima; a prática de qualquer tipo de violência sexual contra a vítima; mutilação ou desfiguração da mulher, antes ou após a morte. Note-se que a terminologia “gênero” não se manteve preservada, decorrente de alterações durante a tramitação do projeto de lei.

Embora tenha havido a retirada da terminologia gênero do texto da Lei aprovada no Brasil, os operadores do Direito entrevistados no Dossiê Feminicídio (Instituto Patrícia Galvão, 2016) são unânimes em apontar que essa perspectiva é fundamental para a compreensão das duas circunstâncias incluídas no Código Penal para qualificar o Feminicídio. (Instituto Patrícia Galvão, 2017).

No Estado do Piauí, no âmbito da Polícia Civil, observou-se que as Delegacias Especializadas de Defesa da Mulher do Estado não investigavam o assassinato de mulheres, nem mesmo quando este guardava no âmago do fato motivacional as razões de gênero, sendo todos os assassinatos investigados pela Delegacia de Homicídios ou Distrito Policial, quando a autoria era conhecida e em correspondência à área circunscricional de cada distrito, acentuando um cenário de invisibilidade das mortes de mulheres, na perspectiva de gênero.

Com o intuito de mudar essa realidade, foi instituído o Núcleo Policial Investigativo de Feminicídio do Estado do Piauí, através da Portaria nº. 064/GS/2015, de 02.03.15, DOE nº. 41 (de 04.03.15, p. 3), portanto, antes mesmo da existência da Lei 13.104/2015, com atribuição para apuração da violência intitulada Feminicídio.

Tal Núcleo possui a atribuição de investigar o assassinato de meninas, mulheres, travestis e mulheres transexuais baseado em relação de gênero. Nesse sentido, vale ressaltar que o teor da portaria seguiu as orientações do projeto de lei, estendendo a compreensão, no que tange ao ato investigativo, a toda e qualquer violência de gênero, que abrangeria o fato de como a pessoa se considera no seio social e não o aspecto natural.

Deve ser pontuado, também, que se pautando na premissa de destituir essa violência da faceta da invisibilidade, a partir da vigência da Lei nº. 13.104/15, a SSP/PI, através do Núcleo de Estatísticas Criminais e Análise Criminal da SSP/PI – NUCEAC/PI, foi incluído o verbete feminicídio dentre as modulações jurídicas constantes do Sistema de Boletim de Ocorrências da Polícia Civil – SISBO/PI.

Essa mudança teve como propósito nominar essa violência e dar autonomia à mesma, tendo como finalidade uniformizar o tratamento dos dados estatísticos produzidos pela Polícia Civil, desnudando, dessa forma, o feminicídio no Estado do Piauí, como uma espécie emancipada dos demais assassinatos, desvestindo o recorte de gênero no âmbito da análise criminal, com a produção de dados específicos do feminicídio no Estado.

 

4 METODOLOGIA

 

4.1 NECESSIDADE DA CRIAÇÃO DE UM PROTOCOLO PARA INVESTIGAR O FEMINICÍDIO NO PIAUÍ.

 

Após o recorte específico e a promoção de investigações especializadas, em conformidade com a Portaria nº 064/GS/2015 de 02/03/2015, foi possível o desenvolvimento vanguardista da metodologia investigatória de Feminicídio, no Piauí, política criminal enfatizada neste artigo.

Essa metodologia surgiu de um estudo baseado em referências teóricas, dentre elas as Diretrizes Nacionais para investigar, processar e julgar, com perspectiva de gênero, as mortes violentas de mulheres, estratégia elaborada pela ONU Mulheres; a Secretaria de Política para Mulheres – SPM/PR; e a Secretaria Nacional de Segurança Pública- SENASP/MJ. O Piauí foi convido a participar da implementação, ocasião em que foi instituída uma Comissão destinada à elaboração de Plano de Trabalho tendente à aplicação das referidas Diretrizes – Portaria nº. 12.000-372, de 10.09.15, publicada no DOE nº. 173, de 14.09.15.

Vale dizer, esse protocolo só nasceu após a análise de inquéritos policiais no âmbito do Núcleo de Estudo e Pesquisa em Violência de Gênero da Polícia Civil do Piauí – (NUEPEVIGE – PC/PI – Portaria nº. 064/GS/2015, de 02.03.15 – DOE nº. 41, de 04.03.15, p. 3), sediado na Academia de Polícia Civil do Estado do Piauí – ACADEPOL, o qual é formado por Delegados, professores universitários e da ACADEPOL, alunos de graduação (Direito e Ciência Política) e de pós-graduação (Ciências Criminais).

Na mesma data, foi criado o Núcleo Policial Investigativo do Feminicídio – NUPIF, órgão diretamente subordinado ao Secretário de Segurança Pública, provido do mesmo status hierárquico da Corregedoria da Polícia Civil, Academia de Polícia Civil e do Núcleo de Subsistema de Inteligência. (Portaria nº. 064/GS/2015, de 02.03.15 – DOE nº 41, de 04.03.15, p. 35 – DOE nº 41, de 04.03.15, p. 3), na qual ficam concentradas as investigações e/ou monitoramentos dos Feminicídio ocorridos no Estado do Piauí.

Com a criação do Núcleo, a Secretaria de Segurança Pública determinou, a todas as delegacias do Estado, a notificação compulsória dos casos de Feminicídio consumados ou tentados, no estado do Piauí, ao Núcleo Policial Investigativo do Feminicídio (NUPIF – Portaria nº 12.000-265/GS/2015, de 12.06.15 – DOE nº 114, de 22.06.15, p.5).

A criação do Núcleo se deu em razão de o modelo genérico de investigações de homicídios não permitir a detecção de minúcias que apontassem para a motivação, que despia as razões de gênero necessárias para o enquadramento da prática do fato, na circunstância qualificadora pertinente.

Foi então, que surgiu a necessidade de se desenvolver um protocolo específico de investigação acerca da morte de mulheres por razão de gênero, a qual indicaria um roteiro de observações a partir do local de crime até as nuances que, aos olhos de um leigo, seriam insignificantes, para a devida satisfação do viés da qualificadora ora estudada.

Em que pese a preocupação nacional com o referido fenômeno social de assassinato de mulheres na concepção de gênero, os núcleos supramencionados, bem como o protocolo de investigação do Feminicídio desenvolvido no Estado do Piauí são demarcados pelo pioneirismo quanto à criação e implementação, acentuando que os Núcleos de Estudo de Pesquisa e Violência de Gênero – NUEPEVIGE – PC/PI, bem como o Núcleo Policial Investigativo de Feminicídio – NUPIF – PC/PI funcionam como observatórios pertinentes à elaboração de políticas públicas que atuam de forma perene no enfrentamento à violência de gênero, o que igualmente ocorre com o referido protocolo.

Esse trabalho precursor da Secretaria de Segurança Pública do Piauí foi reconhecido e premiado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, dentre as práticas inovadoras de enfrentamento à violência contra as mulheres, de 2017, além de ter sido contemplado com o selo do FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública). O Núcleo Policial Investigativo de Feminicídio e Núcleo de Estudo e Pesquisa de Violência de Gênero figuraram na Casoteca FBSP 2017, cuja edição foi distribuída durante o 11º Encontro Anual do FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública), realizado entre os dias 17, 18 e 19 de julho de 2017, em São Paulo (SP), com o tema Reforma e Modernização das Instituições Policiais.

Neste fórum, foram reunidos pesquisadores, representantes da sociedade civil organizada e do setor privado, policiais e membros do sistema de justiça criminal, todos envolvidos em debates emergenciais e necessários para a modernização da segurança pública e aproximação entre polícia e sociedade. Nessa oportunidade, o Piauí participou ativamente no painel 5, o qual abordou as Experiências de enfrentamento à violência contra a mulher: o que as polícias brasileiras têm feito?, cuja palestrante foi a Diretora de Gestão Interna da SSP/PI, Delegada Eugênia Nogueira do Rêgo Monteiro Villa.

Em sua palestra, a referida delegada apresentou as políticas públicas voltadas ao enfrentamento à violência contra a mulher, implementada no Estado do Piauí, destacando a apresentação da metodologia investigativa de Feminicídio, desenvolvida de forma prenunciadora no estado Piauí.

A análise dos dados tratados no Núcleo de Estudo e Pesquisa em Violência de Gênero da Polícia Civil do Piauí – (NUEPEVIGE – PC/PI – Portaria nº. 064/GS/2015, de 02.03.15 – DOE nº. 41, de 04.03.15, p. 3), informados aos técnicos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública que visitaram o Piauí e que foram contemplados na Casoteca FBSP/2017, indicou que 60% dos crimes violentos letais intencionais contra a mulher, ocorridos no período de março de 2015 a agosto de 2016, foram Feminicídio, dos quais 20% ocorreram na capital e 80% no interior do Estado.

O estudo mostrou, ainda, que o principal meio empregado para as práticas dos crimes foi arma branca (50%), seguido por arma de fogo (26%) e outros meios (24%). Ademais, tais crimes se distribuem no período da noite (30%), madrugada (24%), manhã (18%) e tarde (28%), com incidência maior nos dias de domingo (18%) e segunda-feira (22%).

O estudo revelou ainda que as vítimas são mulheres adultas (50%); jovens (24%); adolescentes (14%) e idosas (8%), em grande parte solteiras (40%), seguidas pelas casadas ou em união estável (32%) e viúvas e divorciadas (6%).

Por fim, a pesquisa trouxe ainda os dados referentes ao vínculo entre o autor e a vítima, sendo que em 58% dos casos o autor é conhecido da vítima, não constando informação para 31%; 42% são companheiros ou ex-companheiros e em 16% dos casos têm relação de parentesco ou amizade (padrasto, tio, filho, amigo). (Casoteca FBSP, 2017).

Quadro I: Crimes violentos letais intencionais contra a mulher ocorridos no período de 09 de março de 2015 a 30 de agosto de 2016

 

Fonte: Sistema de Monitoramento de SIMCVLI, Sistema de Procedimento Policial – SISPROCEP e Acervo das segundas vias do Inquéritos Policias do Núcleo de Estudo e Pesquisa em Violência de Gênero SSP/PI e consulta aos Delegados que presidiram os inquéritos Policiais.

Através dessa análise, pode-se inferir que a existência do Núcleo do Feminicídio, com atuação voltada para a identificação das razões de gênero, através da presunção dos traços motivacionais, permitiu uma qualificação dos casos de homicídios de mulheres, demonstrando que no Piauí há uma tendência muito forte de as mulheres serem mortas pela condição do sexo feminino.

Note-se, que durante o processo investigatório dos casos analisados, os quais permitiram o tracejo desse modelo metodológico, percebeu-se discursos de familiares, vizinhos e pessoas próximas às partes envolvidas salientarem, durante a coleta de depoimentos, que a situação de violência entre os referidos era constante. Alguns arriscaram dizer que já tinham falado para a ofendida buscar apoio policial, todavia, em face da inércia da mesma e de todos aqueles que a cercavam o resultado era a evolução natural da violência que culminava com o feminicidio, confirmado a cada levantamento feito, durante a produção do procedimento administrativo, que não apontava qualquer registro anterior.

É importante considerar que, como a maioria dos assassinatos de mulheres, por razões de gênero, ocorriam dentro de casa, prioritariamente nas madrugadas, com uso de instrumentos domésticos e praticados pelos parceiros das vítimas, tratava-se de feminicídios íntimos. Isso ficou evidente durante a análise dos inquéritos policias entre os intervalos de 09 de março de 2015 a 30 de agosto de 2016, no Núcleo de Estudo e Pesquisa em Violência de Gênero, o qual apontou a necessidade de desenvolvimento de um mecanismo que rompesse com a barreira do silêncio, todavia que fosse sutil e otimizasse o alcance da denúncia, a fim de que os que têm a obrigação de conter a violência fossem prontamente acionados.

Nessa ocasião, surge a ferramenta Salve Maria, um aplicativo desenvolvido pela Secretaria de Segurança Pública do Estado do Piauí em parceria com a ATI – Agência de Tecnologia da Informação do Estado do Piauí, o qual possibilita a informação sigilosa, por parte de qualquer cidadão que adquira gratuitamente o aplicativo, através do sistema Android, com o intuito de coibir a violência contra a mulher.

Caso esteja em estado de flagrante, aciona-se o botão Pânico, o qual permite o georeferenciamento do local da prática do ato, de onde o mesmo foi acionado, sendo essa localização recebida pela central de monitoramento local da Polícia Militar, que encaminha a viatura mais próxima para atender a ocorrência.

Através do mesmo aplicativo, pode ser acionado o botão Denúncia, no qual devem ser informados fatos que ocorreram em momentos passados e perderam o viés flagrancial, tratando-se de espaço virtual que depende de uma maior quantidade de informações a serem inseridas pelo usuário, uma vez que, ao ser encaminhado, será direcionado à central de monitoramento da polícia judiciária. Esta, de posse do formulário gerado pelo acionamento do botão e o preenchimento das lacunas pertinentes a este, expedirá uma ordem de missão para verificação da procedência preliminar da informação e, a partir do relatório alusivo à demanda serão tomadas as providências pertinentes ao caso concreto.

 

5 RESULTADOS

 

5.1 METODOLOGIA INVESTIGATÓRIA DE FEMINICÍDIO

Partindo da premissa de que o assassinato consumado ou tentado de ser praticado em face de uma mulher, objeto de uma investigação, pode ter sido motivado por razões de gênero, é necessário incutir na praxe policial a adoção de uma perspectiva de gênero, que deverá ser implementada desde os levantamentos preliminares executados após a notícia do fato.

Vislumbrando a exigência de tamanha sensibilidade que deva aflorar das atividades desenvolvidas em uma investigação desta natureza, inclusive, partindo da premissa de que nem todo assassinato de mulher caracteriza a circunstância qualificadora do Feminicídio, foi que se pensou sobre a necessidade de desenvolver uma metodologia eficaz e pertinente quanto à observância das nuances expositoras desse fenômeno.

Vale mencionar, essa conjuntura nos parece ser um requisito para o desenvolvimento das demais políticas públicas, frente à necessidade de se compilarem dados qualificados e estes, por sua vez, só seriam possíveis a partir de uma investigação consistente e eficaz que apresentasse cabalmente as razões de gênero no âmbito do cenário motivacional, contrapondo as faces da invisibilidade ainda persistentes.

Imagem I: Dados sobre homicídio em razão de gênero

Fonte: Diretrizes Nacionais Feminicídio (2015)

 

Ademais, quando falamos no assassinato de mulheres em razão de gênero, falamos em um grupo de risco, conforme já foi observado, inclusive no Resumo Executivo do Mapeamento de Programas de Prevenção de Homicídios na América Latina e Caribe, produzido por Ignacio Cano e Emiliano Rojido (2016), no qual foram elencadas 11 tipologias dos programas de prevenção de homicídios.

Dentre as tipologias anteriormente listadas, o tipo 5 trata da Proteção a Grupos de Risco de Sofrer Homicídio, especificando na letra c as amplas categorias sociais que sofrem riscos específicos, ao passo em que foi externado que o exemplo mais claro é o da mulher que sofre risco de maltrato e, em último caso, de morte, por parte do companheiro ou ex-companheiro. Nesse sentido, vários países desenvolveram leis e programas para a prevenção do Femicídio ou Feminicídio.

Segundo as Diretrizes para investigar, processar e julgar com perspectiva de gênero as mortes violentas de mulheres, (2016, p. 43), as razões de gênero que dão causa às mortes de mulheres resultam da desigualdade estrutural que caracteriza as relações entre homens e mulheres.

Neste mesmo documento, conclui-se que, nas mortes violentas de mulheres, as razões de gênero se evidenciarão particularmente nas partes do corpo que forem afetadas, como: rosto, seios, órgãos genitais e ventre, ou seja, partes que são associadas à feminilidade e ao desejo sexual sobre o corpo feminino.

Com a perspectiva de gênero, a busca de evidências sobre o crime deve considerar como e quais marcas de violência ficam registradas no corpo da vítima, assim como no ambiente em que o ato foi praticado, e como estas marcas contribuem para evidenciar o desprezo, a raiva ou o desejo de punir a vítima por seu comportamento. (BRASIL, 2015)

Estas razões residem nas circunstâncias motivacionais, por isso, busca-se avaliar, na amplitude do cenário criminoso, os fatores que levaram àquela conduta, na qual é possível identificar traços misogênicos, nuances que denotem posse, controle, objetificação, desprezo e discriminação à condição de mulher. Contudo, muitas vezes, essas minúcias são constatadas durante o discurso do agressor quando se prontifica a responder as perguntas do auto de interrogatório, e tenta legitimar sua conduta através de suas referências culturais, robustecendo os conceitos de naturalização da violência.

As razões de gênero são visíveis, como um reflexo do poder imaginário e da objetificação que o homem reflete sobre a mulher e suas feminilidades. Fica evidente essa compreensão também no que tange à misoginia, quando nos deparamos com a leitura de Carmen Hein de Campos, ao citar Segato (2011), ao dispor que a violência sexual, a mutilação e a desfiguração podem ser abarcadas pela ideia de menosprezo à mulher, particularmente, ao corpo feminino.

A prática da violência sexual não apenas caracteriza o crime de estupro, como também revela o menosprezo ao corpo da mulher, e a mutilação de parte do corpo das mulheres como seios, vagina e rosto, por exemplo, presente em diversos casos de Feminicídio, demonstra um profundo menosprezo aos seus corpos, os quais passam a ser o território da dominação masculina.

Conforme apontam as Diretrizes para investigar, processar e julgar com perspectiva de gênero as mortes violentas de mulheres (2016, p. 42), é recomendável, para a adequada investigação de morte violenta de uma mulher com perspectiva de gênero, que seja realizada uma abordagem integral que considere o contexto e as circunstancias nas quais o crime ocorreu, os meios e os modos empregados em sua execução, as características da pessoa responsável pela ação (sujeito ativo) e de quem sofreu a ação (sujeito passivo) (MODELO DE PROTOCOLO, 2014).

Imagem II: Elementos e componentes relacionados a mortes de mulheres por razões de gênero

Levando em consideração os elementos supramencionados, foi iniciado o desenho da metodologia investigatória do Feminicídio pautado nos demais elementos e componentes apontados nas Diretrizes Nacionais do Feminicídio, desenvolvida pela ONU Mulheres, Secretaria de Políticas para Mulheres e Secretaria Nacional e Segurança Pública – SENASP, no protocolo de investigação dos crimes de homicídio, desenvolvido pelo Núcleo de Inteligência da SSP/PI e o Protocolo de Bogotá, bem como na literatura no âmbito da Antropologia, Sociologia e Filosofia.

É importante frisar, que o Protocolo de Bogotá estabelece uma série de critérios técnicos, cujo cumprimento reflete que esses dados apresentam um elevado grau de validade, confiabilidade e transparência. As fontes oficiais de homicídio são: as que se iniciam com as certidões de óbito e as que se baseiam em registros criminais.

Em tal protocolo, os critérios são agrupados em oito áreas temáticas de acordo com o seu conteúdo e são aplicadas simultaneamente aos dois tipos de fonte, exceto que se especifique o contrário, portanto são as áreas: unidade de registro; definição de homicídio; informações mínimas que devem ser registradas; dados perdidos e casos indeterminados; convergências entre as fontes; mecanismos de verificação e validação dos dados; divulgação e transparência e prioridade e oportunidade.(PROTOCOLO DE BOGOTÁ, 2015).

Com base nesses dados, foi confeccionado, pelo Núcleo de Estudo e Pesquisa em Violência de Gênero, uma apostila para apresentar a metodologia investigatória da perspectiva de gênero, ressaltando que a metodologia aplicada foi desenvolvida a partir da metodologia investigatória do homicídio, por sua vez desenvolvida pelo Núcleo de Inteligência da Secretaria de Segurança Pública – SSP/PI, Diretrizes Nacionais Feminicídio, Pacto Nacional de Redução de Homicídios, Protocolo de Bogotá, Estatísticas Criminais produzidas pela Gerência de Estatísticas e Análise Criminal da SSP/PI, Carta de Serviços do Departamento de Polícia Técnico-Científica e Análise dos Inquéritos Policiais que Apuraram Feminicídio, no período de 09.03.15 (data de vigência da Lei nº 13.104/15) até 30.08.16. Além disso, foram utilizadas inferências teóricas de Judith Butler (Problemas de Gênero), Michel Foucault (A vontade de saber Vol. 1.) e Rita Laura Segato e Pasinato.

Seguindo as premissas apontadas pela apostila, a qual carreou as informações sobre a metodologia investigatória na perspectiva de gênero, 2017, observamos que o protocolo desenvolvido para investigar o Feminicídio se pautou nos referenciais teóricos supramencionados, associando as realidades locais, com a intenção de criar uma modelagem capaz de ser aplicada e expandida para todos os territórios do Estado do Piauí.

Com essa expansão, espera-se que as investigações em toda extensão estadual sigam a o protocolo na perspectiva de gênero nas rotinas e práticas cognitivas policiais com o escopo de promover a produção de inquéritos policiais mais eficientes e qualificados, desde as peças exordiais do mesmo, as assessórias e a final buscando o alcance mais fiel do cenário delitivo.

Contudo, é necessário acentuar que o protocolo sugerido não tem o condão de suprimir as demais técnicas de investigação já existentes, na verdade ele apenas propõe um aperfeiçoamento ao olhar técnico dos policiais que deverão atuar desprovidos de conceitos reducionistas e estereotipados, o que irá gerar respostas mais eficientes e em conformidade com os conceitos constitucionais.

A metodologia se alicerça em três componentes: fático, jurídico e probatório, os quais originaram os protocolos de recognição visuográfica, da dogmática jurídica e de atos investigatórios, conforme se apresenta no cronograma primário disposto abaixo.

 

Imagem III: Metodologia investigatória do feminicídio

 

Fonte: Núcleo de Estudo e Pesquisa em Violência de Gênero, 2017.

 

5.2 COMPONENTE JURÍDICO – DOGMÁTICA JURÍDICA

 

Conforme preceituou Luís Greco, em sua obra Introdução à dogmática funcionalista do delito, se há, na dogmática penal, algum conhecimento que se manteve quase inalterado desde os alvores do século, é o conceito de crime como ação típica, antijurídica e culpável.

Portanto, pode-se afirmar que crime é uma ação típica, antijurídica e culpável, isto é, o crime não existe sem que haja uma ação ou omissão, que corresponda ao que uma lei determine como ilícito, colocando-se em oposição ao direito e com a consequente possibilidade de impor uma penalidade.

Coadunando da compreensão externada na apostila que carreou as informações sobre a metodologia investigatória na perspectiva de gênero, 2017, o componente jurídico, terá a finalidade de permitir o enquadramento do fato concreto, objeto da investigação, ao dispositivo legal qualificado. Portanto, ele se baseia na avaliação jurídica do cenário com o objetivo de demonstrar a estrutura do crime, ou seja: a conduta, a tipicidade, a antijuridicidade e a culpabilidade.

É significante marcar, que mesmo os casos de assassinatos de mulheres que a partir do levantamento preliminar não forem instantaneamente enquadrados no feminicídio podem ainda ser objeto de apreciação norteados pelos elementos diretivos deste protocolo.

A percepção deste componente poderá desnudar outras práticas delitivas que tenham ocorrido em concurso de crimes como Feminicídio, tais como porte ilegal de arma de fogo, tortura, violência sexual, associação criminosa e outras figuras típicas.

Deve ser reforçado que a execução deste substrato está atrelada ao levantamento dos elementos indiciários durante a realização do procedimento administrativo, ocasião em que, preliminarmente, inicia-se a definição do tipo penal incriminador daquela conduta, possibilitando o direcionamento adequado das investigações do inquérito policial.

Conforme foi apontado na apostila supramencionada, que contempla o protocolo, os principais marcos normativos utilizados na Metodologia Investigatória do Feminicídio são:

1) Los derechos humanos hoy. Departamento de Información Pública de Las Naciones Unidas, 1998. p. 44;

2) Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher de 1979, internalizada pelo Decreto nº 89.460, de 20 de março de 1984, posteriormente revogado pelo Decreto Legislativo nº 26, de 22 de junho de 2002 – CEDAW;

3) Decreto nº. 4.377, de 13.09.02: Promulga a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, (1979), e revoga o Decreto nº 89.460, de 20 de março de 1984;

4) Declaração e Programa de Viena – 14 -24 de junho de 1993 – CEDIN;


5) Declaração sobre a Eliminação da Violência contra as Mulheres – 20.12.93;

6) Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, “Convenção de Belém do Pará” (Adotada em Belém do Pará, Brasil, em 9 de junho de 1994, no vigésimo quarto período ordinário de sessões da Assembleia Geral);

7) Lei nº 9.455, de 07.04.97 – Crimes de Tortura;


8) Código Penal Brasileiro;


9)  Lei nº 10.778, de 24.11.03:constitui objeto de notificação compulsória, em todo o território nacional, a violência contra a mulher atendida em serviços de saúde públicos e privados;

10) Lei nº 11.340/2006 – Lei Maria da Penha;

11) Norma Técnica Atenção Humanizada às Pessoas em Situação de Violência Sexual com Registro de Informações e Coleta de Vestígios;

12) Decreto nº 7.958, de 13 de março de 2013.

 

Imagem IV: Protocolo I – Dogmática Jurídica

Fonte: Núcleo de estudos e pesquisa em violência de gênero, 2017.

 

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