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Investigação e acusação não são regidas pelo in dubio pro societate

por Editoria Delegados

Por Henrique Hoffmann

 

Por Henrique Hoffmann

Como se sabe, o princípio da presunção de inocência é consagrado não apenas no ordenamento constitucional (artigo 5º, LVII da CF), mas também convencional (artigo 8.2 da Convenção Americana de Direitos Humanos) e legal (artigo 386, VI do CPP). Enquanto a Lei Maior estabelece que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, o Pacto de São José da Costa Rica afirma que toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Daí a existência de diferentes terminologias para se referir ao mesmo postulado, havendo quem prefira o termo princípio da presunção de não culpabilidade.

Do estado de inocência decorrem duas regras básicas:[1] (a) a regra probatória segundo a qual a dúvida na persecução criminal milita em favor do réu (in dubio pro reo), e (b) a regra de tratamento de acordo com a qual a prisão cautelar configura exceção.

Quanto à regra probatória, grande parte dos estudiosos limita sua incidência após a deflagração do processo penal (depois do recebimento da acusação), a fim de que o magistrado faça, no momento da sentença, a valoração da prova.

Contudo, a valoração da prova ocorre também nos momentos anteriores à sentença, a saber, instauração ou não do inquérito policial, indiciamento ou não indiciamento, oferecimento da denúncia ou requerimento de arquivamento, e recebimento ou não da denúncia. E nessas fases costuma-se falar em princípio do in dubio pro societate como suposta variação da regra probatória penal.

De acordo com o in dubio pro societate, em caso de dúvida sobre a materialidade e autoria, estaria autorizada a investigação, o indiciamento e a acusação, pois a incerteza favoreceria a sociedade em detrimento do imputado. Significa dizer que se a autoridade policial tiver incerteza, deve instaurar o inquérito e indiciar; se o promotor estiver indeciso, deve acusar; se o juiz estiver confuso, deve receber a denúncia. Segundo essa corrente de pensamento, não deveria o in dubio pro reo obstar o prosseguimento da persecução.

Todavia, parece indevido esse afastamento do princípio da presunção de inocência durante a persecução criminal, por contrariar a lógica que rege o desenrolar da investigação e processo judicial e os stantards probatórios exigidos.

O desenvolvimento da persecução penal (desde sua primeira fase policial até sua segunda etapa judicial) tem início com a instauração do inquérito policial e indiciamento, passando pelo oferecimento e recebimento acusação, e chegando por fim à sentença. O avanço na persecução é diretamente proporcional ao aumento do grau de convicção sobre materialidade e autoria delitivas. Quanto mais constrangedora a ação estatal contra o imputado (indiciamento, acusação ou condenação), maior o patamar de convencimento.

Nesse sentido, o standard probatório aumenta de um juízo de possibilidade na instauração da investigação, para um juízo de probabilidade no indiciamento e acusação, chegando por fim a um juízo de certeza (além de dúvida razoável) [2] na condenação.

Em outros termos, o inquérito policial somente pode ser iniciado mediante indícios mínimos (princípio de justa causa); o indiciamento e a acusação só são autorizadas com indícios suficientes (justa causa); e a condenação apenas se justifica com provas robustas.

Embora não se tenha alcançado um consenso quanto ao significado preciso dos standards probatórios,[3] podemos falar em prova crível, prova preponderante e prova para além de dúvida razoável, para exprimir respectivamente o juízo de possibilidade, juízo de probabilidade e juízo de certeza necessários nas diferentes fases da persecução criminal.

A probabilidade percebe os motivos convergentes e divergentes e os julga dignos de serem levados em conta se bem que mais os primeiros e menos os segundos. A certeza acha, ao contrário, que os motivos divergentes da afirmação não merecem racionalmente consideração, e por isso, afirma.[4]

O que precisa ficar claro é que, havendo dúvidas sobre a existência de indícios mínimos de materialidade e autoria, não se deve instaurar o inquérito policial. E se for incerta a presença de indícios veementes do crime e de seu autor, o indiciamento e a acusação não devem ser feitas. A dúvida, portanto, continua beneficiando o imputado, por aplicação do in dubio pro reo.

Por isso mesmo já há vozes na doutrina e nos Tribunais Superiores se insurgindo contra o in dubio pro societate:

Percebe-se a lógica confusa e equivocada ocasionada pelo suposto “princípio in dubio pro societate”, que, além de não encontrar qualquer amparo constitucional ou legal, acarreta o completo desvirtuamento das premissas racionais de valoração da prova.[5]

Por mais que se queira propalar a máxima de que, no átrio da ação penal, teria força a máxima in dubio pro societate, em verdade, tal aforisma não possui amparo legal, nem decorre da lógica do nosso sistema processual penal, constitucionalmente orientado. A tão só sujeição ao juízo penal já representa, per se, um gravame, cuja magnitude Carnelutti já dimensionava como verdadeira sanção. Desta forma, é imperioso que haja razoável grau de convicção para a submissão do indivíduo aos rigores persecutórios. Trata-se de uma das fases do escalonamento da cognição, que se inicia pelo indiciamento, passa pelo recebimento da acusação e se ultima com a sentença, recebendo a pá de cal com o trânsito em julgado. [6]

Afirmar, simplesmente, que a pronúncia é mera admissibilidade da acusação e que estando o Juiz em dúvida aplicar-se-á o princípio do in dubio pro societate é desconhecer que num País cuja Constituição adota o princípio da presunção de inocência torna-se heresia sem nome falar em in dubio pro societate.[7]

Isso não se confunde, obviamente, com o in dubio pro societate. Não se trata de uma regra de solução para o caso de dúvida, mas sim de estabelecer requisitos que, do ponto de vista do convencimento.[8]

Que fique bem claro que a inexistência do princípio do in dubio pro societate não traduz a exigência de certeza para investigar, indiciar ou acusar, mas apenas a não admissibilidade da utilização da máxima como artimanha para camuflar o não atingimento do standard probatório. A ausência de dúvidas ou a incerteza em baixo patamar (com inverossimilhança da versão defensiva) persiste sendo reclamada somente para a condenação.

Também convém salientar que negar a existência do in dubio pro societate não significa deixar a sociedade desprotegida. Pelo contrário, quando se impede a deflagração e o desenvolvimento de persecuções penais temerárias, os direitos fundamentais dos indivíduos são protegidos e a coletividade ganha com um sistema mais racional e justo. No Estado de Direito, o estado de inocência deve reger qualquer etapa da persecução penal, servindo de norte na atuação dos agentes públicos e de proteção para os cidadãos contra o arbítrio estatal.

Nessa vereda, é preciso que as deliberações do delegado de polícia (ao iniciar o inquérito ou indiciar), do promotor (ao acusar) e do juiz (ao receber a denúncia ou pronunciar) estejam fundamentadas na existência do lastro probatório exigido, não podendo a dúvida autorizar o avanço da atividade persecutória estatal.

Outrossim, o Ministério Público deve cessar a comum prática de acusar sem provas suficientes, sob o argumento de que durante a ação penal serão colhidos os elementos necessários. Até porque o processo penal costuma seguir a sorte da investigação, apenas chancelando as provas cautelares e irrepetíveis (com a formalização do contraditório diferido) e repetindo as oitivas sob o crivo do contraditório (com sua transformação de elementos informativos em probatórios).

A discussão sobre a valoração da prova certamente é importante,[9] porém a criação de princípio sem amparo legal em nada contribui para o avanço do debate.

1 TORRES, Jaime Vegas. Presunción de inocência y prueba em el processo penal. Madrid: La Ley, 1993, p. 35.

2 artigo 386, VI do CPP; STF, AP 470, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJ 22/04/2013; STF, AP 676, Rel. Min. Rosa Weber, DJ 17/10/2017; STF, HC 83.947, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 07/08/2007.

3 GARDNER, Thomas J; ANDERSON, Terry M. Criminal evidence: principles and cases. 2010.

4 MALATESTA, Nicola. A lógica das provas em matéria criminal. São Paulo: Conan, 1995, p. 61.

5 STF, ARE 1.067.392, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 26/03/2019.

6 STJ, HC 175.639, Rel. Min Maria Thereza de Assis Moura, DJ 20/03/2012.

7 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Código de processo penal comentado. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 79.

8 BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahi. Ônus da prova no processo penal. São Paulo, RT, 2004, p. 390-391.

9 KNIJNIK, Danilo. A prova nos juízos cível, penal e tributário. Rio de Janeiro> Forense, 2007. p. 6.

Sobre o autor

Henrique Hoffmann é delegado de Polícia Civil do Paraná. Professor do Cers (onde também coordena a pós-graduação), da Escola da Magistratura do Paraná, da Escola da Magistratura de Mato Grosso, da Escola Superior de Polícia Civil do Paraná e do Senasp. Mestre em Direito pela Uenp. Coordenador do Iberojur no Brasil. Colunista da Rádio Justiça do STF e autor e coordenador do Juspodivm. www.henriquehoffmann.com

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