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Exceção de Romeu e Julieta versus Súmula 595 do STJ

por Editoria Delegados

Por Yan Rêgo Brayner

 

TÍTULO ORIGINAL: EXCEÇÃO DE ROMEU E JULIETA X SÚMULA 593 DO STJ, UMA DISCUSSÂO ACERCA DA VULNERABILIDADE DO MENOR DE 14 ANOS NOS CRIMES CONTRA A DIGNIDADE SEXUAL

Por Yan Rêgo Brayner – Delegado de Polícia Civil do Estado do Piauí e Especialista em Ciências Criminais.

 

Mesmo antes do advento da Lei nº 12.015/2009, já se discutia o caráter absoluto (iures et de iure) ou relativo (iuris tantum) da presunção de violência na relação sexual envolvendo menores de 14 (quatorze) anos, sobretudo se poderia haver flexibilização e o consequente afastamento do caráter criminoso da conduta, a depender de algumas circunstâncias (e.g relacionamento amoroso preexistente entre a vítima e o autor e experiência sexual da vítima).

Por oportuno, cabe ressaltar que a razão da vulnerabilidade etária se baseia na imaturidade da vítima, que ainda não possui discernimento suficiente para entender a extensão do ato sexual que está praticando. No caso dos menores de 14 (quatorze) anos, o legislador optou por não emprestar validade a eventual consentimento da vítima, sendo irrelevante sua aquiescência para o aperfeiçoamento do crime. Este é o teor do art. 217-A do Código Penal, no qual não se inseriu no preceito primário da norma penal qualquer elementar referente ao consentimento da vítima, verbis:

Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos: (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)

Pena – reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)

Assim, a concordância do menor com a prática do ato sexual não acarreta em atipicidade da conduta, ainda não haja violência ou grave ameaça na ação. Entretanto, parcela da doutrina entende que é cabível a flexibilização da norma, admitindo a atipicidade da conduta, haja vista a ausência de violação ao bem jurídico tutelado, a dignidade sexual. Neste sentido, Guilherme de Souza Nucci[1] ensina:

“A lei não poderá, jamais, modificar a realidade e muito menos afastar a aplicação do princípio da intervenção mínima e seu correlato princípio da ofensividade. Se durante anos debateu-se, no Brasil, o caráter da presunção de violência – se relativo ou absoluto -, sem consenso, a bem da verdade, não será a criação de novo tipo penal o elemento extraordinário a fechar as portas para a vida real.”

Adotando este mesmo posicionamento doutrinário, André Estefam[2] preleciona:

“(…) entendemos que o conceito de vulnerabilidade não pode ser absoluto (apesar da nítida intenção do legislador em assim considera-lo), admitindo prova em contrário, notadamente quando se trata de adolescentes (indivíduos com 12 anos completados). Isto porque, se a suposta vítima possui 13 anos de idade e vida sexual ativa e voluntariamente pratica ato libidinoso com outrem, não há violação ao bem jurídico protegido no Título VI (isto é, sua ‘dignidade sexual’)”

Arremata o autor:

“(…) a exegese das normas penais não pode se dar, jamais, alijada de uma visão constitucional e, notadamente, da correta delimitação do valor protegido (objetividade jurídica) pela disposição. É por essa razão que entendemos, a despeito da peremptoriedade do Texto Legal, que nem todo o contato sexual com menor de 14 anos ingressará na tipicidade (material) da norma. É a men legis que se sobrepões à mens legislatoris”.

Um dos fundamentos utilizados pelos juristas que se filiam a esta corrente para criticar a inflexibilidade da presunção de violência é o fato do legislador ter adotado a idade de 14 (quatorze) anos como faixa etária para caracterização de vulnerabilidade, ao invés de eleger o critério adotado no art. 2º do Estatuto da Criança e do Adolescente como parâmetro.

O ECA considera adolescente a pessoa com mais de 12 (doze) anos de idade, podendo, desde então, sujeita a ser apreendida pelo cometimento de um ato infracional análogo a crime. Neste diapasão, os defensores deste posicionamento questionam por qual motivo o maior de 12 (doze) anos pode ser sujeito passivo de medidas socioeducativas decorrentes da prática de ato infracional, podem viajar pelo território nacional desacompanhados, possuem capacidade para consentir sobre a colocação em família substituta e não podem consentir quanto a prática do ato sexual.

Na sociedade moderna, é comum o despertar precoce da sexualidade, valorar tal comportamento como imoral ou atribuir a pecha de imoral ou corrompido ao menor é desprezar a liberdade de autodeterminação sexual do indivíduo e o seu direito de buscar prazer. Sobre o tema ensina Adelina de Cássia Carvalho[3]:

“Embora possa não ser recomendável a prática sexual com pessoa maior de 12 e menor de 14 anos de idade, o despertar precoce de desejos sexuais dos mais jovens é fato que existe e deve ser respeitado, assim como as opções diferentes decorrentes da evolução, boa ou má, dos costumes”.

Em sentido diametralmente oposto, parcela da doutrina defende que o critério adotado pela lei é objetivo, não sendo possível excluir determinadas pessoas menores de 14 (quatorze) anos da definição de vulneráveis, mesmo que sejam sexualmente ativos ou de corrupção notória. Para estes o Poder Legislativo, de modo claro e absoluto, considerou os menores de 14 (quatorze) anos não dotados de autodiscernimento suficiente para decidir sobre seus atos sexuais, não cabendo nenhuma exceção.

Em sede jurisprudencial, tanto o Superior Tribunal de Justiça como o Supremo Tribunal Federal firmaram o entendimento afastando a possibilidade de relativização da vulnerabilidade etária. Dada sua relevância e clareza, faz-se oportuno colacionar a tese fixada pelo Superior Tribunal de Justiça em sede de recurso repetitivo, cuja origem é a Comarca de Buriti dos Lopes, Estado do Piauí[4]:

“Para a caracterização do crime de estupro de vulnerável, previsto no art. 217-A do Código Penal, basta que o agente tenha conjunção carnal ou pratique qualquer ato libidinoso com pessoa menor de 14 anos. O consentimento da vítima, sua eventual experiência sexual anterior ou a existência de relacionamento amoroso entre o agente e a vítima não afastam a ocorrência do crime.”

Por ser extremamente didática e deixar bem claro todos os argumentos utilizados pelo Superior Tribunal de Justiça ao enfrentar o tema, cabe a transcrição integral da ementa do mencionado julgado:

RECURSO ESPECIAL. PROCESSAMENTO SOB O RITO DO ART. 543-C DO CPC. RECURSO REPRESENTATIVO DA CONTROVÉRSIA. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. VÍTIMA MENOR DE 14 ANOS. FATO POSTERIOR À VIGÊNCIA DA LEI 12.015/09. CONSENTIMENTO DA VÍTIMA. IRRELEVÂNCIA. ADEQUAÇÃO SOCIAL. REJEIÇÃO. PROTEÇÃO LEGAL E CONSTITUCIONAL DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça assentou o entendimento de que, sob a normativa anterior à Lei nº 12.015/09, era absoluta a presunção de violência no estupro e no atentado violento ao pudor (referida na antiga redação do art. 224, “a”, do CPB), quando a vítima não fosse maior de 14 anos de idade, ainda que esta anuísse voluntariamente ao ato sexual (EREsp 762.044/SP, Rel. Min. Nilson Naves, Rel. para o acórdão Ministro Felix Fischer, 3ª Seção, DJe 14/4/2010).

No caso sob exame, já sob a vigência da mencionada lei, o recorrido manteve inúmeras relações sexuais com a ofendida, quando esta ainda era uma criança com 11 anos de idade, sendo certo, ainda, que mantinham um namoro, com troca de beijos e abraços, desde quando a ofendida contava 8 anos.

Os fundamentos empregados no acórdão impugnado para absolver o recorrido seguiram um padrão de comportamento tipicamente patriarcal e sexista, amiúde observado em processos por crimes dessa natureza, nos quais o julgamento recai inicialmente sobre a vítima da ação delitiva, para, somente a partir daí, julgar-se o réu.

A vítima foi etiquetada pelo “seu grau de discernimento”, como segura e informada sobre os assuntos da sexualidade, que “nunca manteve relação sexual com o acusado sem a sua vontade”. Justificou-se, enfim, a conduta do réu pelo “discernimento da vítima acerca dos fatos e o seu consentimento”, não se atribuindo qualquer relevo, no acórdão vergastado, sobre o comportamento do réu, um homem de idade, então, superior a 25 anos e que iniciou o namoro – “beijos e abraços” – com a ofendida quando esta ainda era uma criança de 8 anos.

O exame da história das ideias penais – e, em particular, das opções de política criminal que deram ensejo às sucessivas normatizações do Direito Penal brasileiro – demonstra que não mais se tolera a provocada e precoce iniciação sexual de crianças e adolescentes por adultos que se valem da imaturidade da pessoa ainda em formação física e psíquica para satisfazer seus desejos sexuais.

De um Estado ausente e de um Direito Penal indiferente à proteção da dignidade sexual de crianças e adolescentes, evoluímos, paulatinamente, para uma Política Social e Criminal de redobrada preocupação com o saudável crescimento, físico, mental e emocional do componente infanto-juvenil de nossa população, preocupação que passou a ser, por comando do constituinte (art. 226 da C.R.), compartilhada entre o Estado, a sociedade e a família, com inúmeros reflexos na dogmática penal.

A modernidade, a evolução moral dos costumes sociais e o acesso à informação não podem ser vistos como fatores que se contrapõem à natural tendência civilizatória de proteger certos segmentos da população física, biológica, social ou psiquicamente fragilizados. No caso de crianças e adolescentes com idade inferior a 14 anos, o reconhecimento de que são pessoas ainda imaturas – em menor ou maior grau – legitima a proteção penal contra todo e qualquer tipo de iniciação sexual precoce a que sejam submetidas por um adulto, dados os riscos imprevisíveis sobre o desenvolvimento futuro de sua personalidade e a impossibilidade de dimensionar as cicatrizes físicas e psíquicas decorrentes de uma decisão que um adolescente ou uma criança de tenra idade ainda não é capaz de livremente tomar.

Não afasta a responsabilização penal de autores de crimes a aclamada aceitação social da conduta imputada ao réu por moradores de sua pequena cidade natal, ou mesmo pelos familiares da ofendida, sob pena de permitir-se a sujeição do poder punitivo estatal às regionalidades e diferenças socioculturais existentes em um país com dimensões continentais e de tornar írrita a proteção legal e constitucional outorgada a específicos segmentos da população.

Recurso especial provido, para restabelecer a sentença proferida nos autos da Ação Penal n. 0001476-20.2010.8.0043, em tramitação na Comarca de Buriti dos Lopes/PI, por considerar que o acórdão recorrido contrariou o art. 217-A do Código Penal, assentando-se, sob o rito do Recurso Especial Repetitivo (art. 543-C do CPC), a seguinte tese: Para a caracterização do crime de estupro de vulnerável previsto no art. 217-A, caput, do Código Penal, basta que o agente tenha conjunção carnal ou pratique qualquer ato libidinoso com pessoa menor de 14 anos. O consentimento da vítima, sua eventual experiência sexual anterior ou a existência de relacionamento amoroso entre o agente e a vítima não afastam a ocorrência do crime.

(REsp 1480881/PI, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 26/08/2015, DJe 10/09/2015)

Cabe destacar que com supedâneo neste julgado o Superior Tribunal de Justiça editou recentemente o entendimento sumular de nº 593, verbis:

O crime de estupro de vulnerável se configura com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante eventual consentimento da vítima para a prática do ato, sua experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente. (Súmula 593, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 25/10/2017, DJe 06/11/2017)

Destaca-se que o Supremo Tribunal Federal também adota essa orientação, contentando-se, para a configuração do crime previsto no art. 217 – A do Código Penal, que a vítima seja menor de 14 (quatorze) anos, sendo irrelevantes as circunstâncias em que ocorreram a relação sexual. Para exemplificar, cabe consignar a ementa do AgRg no HC nº 124830/MT:

AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. PENAL E PROCESSUAL PENAL. CRIMES DE ESTUPRO DE VULNERÁVEL E DE ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. ARTIGOS 213 e 224, ALÍNEA A (NA REDAÇÃO ANTERIOR À LEI 12.015/2009). HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO EXTRAORDINÁRIO. INADMISSIBILIDADE. COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL PARA JULGAR HABEAS CORPUS: CRFB/88, ART. 102, I, D E I. HIPÓTESE QUE NÃO SE AMOLDA AO ROL TAXATIVO DE COMPETÊNCIA DESTA SUPREMA CORTE. ATIPICIDADE. CONSENTIMENTO DA VÍTIMA. MENOR DE 14 ANOS. VULNERÁVEL. VIOLÊNCIA PRESUMIDA. REVOLVIMENTO DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO. INADMISSIBILIDADE NA VIA ELEITA. INEXISTÊNCIA DE TERATOLOGIA, ABUSO DE PODER OU FLAGRANTE ILEGALIDADE. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. 1. A presunção de violência no crime de vulnerável, menor de 14 anos, não é elidida pelo consentimento da vítima ou experiência anterior e a revisão dos fatos considerados pelo juízo natural é inadmita da via eleita, porquanto enseja revolvimento fático-probatório dos autos. Precedentes: ARE 940.701-AgR, Segunda Turma, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe 12/04/2016, e HC 119.091, Segunda Turma, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJe 18/12/2013. 2. In casu, o recorrente foi condenado à pena de 8 (oito) anos de reclusão, em regime fechado, como incurso no art. 217-A do Código Penal, pelo fato de haver cometido ato sexual com um menino menor de 13 anos de idade em troca de um amortecedor de bicicleta e filmado todo ato em seu celular. 3. A competência originária do Supremo Tribunal Federal para conhecer e julgar habeas corpus está definida, exaustivamente, no artigo 102, inciso I, alíneas d e i, da Constituição da República, sendo certo que o paciente não está arrolado em qualquer das hipóteses sujeitas à jurisdição desta Corte. 4. Agravo regimentaldesprovido.
(HC 124830 AgR, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 20/04/2017, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-104 DIVULG 18-05-2017 PUBLIC 19-05-2017)

Cabe agora analisar se após a edição da Súmula nº 593 do Superior Tribunal de Justiça é possível a importação do direito norte-americano da exceção de Romeu e Julieta.

Os Estados Unidos da América editaram uma lei apelidada de Romeo and Juliet Law com escopo de alcançar os relacionamentos sexuais entre adolescentes cuja diferença de idade fosse pequena. Nos termos desta lei, esse ato sexual consentido não seria tipificado como crime pela lei penal, pois ambos estariam no mesmo momento da descoberta da sexualidade.

O nome da lei alude a obra teatral Romeu e Julieta, de William Shakespeare. Neste romance, Julieta tinha apenas 13 (treze) anos quando se relacionou com Romeu. Caso o enredo se passasse em terras tupiniquins nos dias atuais, o jovem Romeu, da casa dos Montecchio, poderia ser responsabilizado pelo ato infracional análogo ao crime previsto no art. 217 – A do Código Penal.

Os parâmetros adotados pela legislação e jurisprudência alienígena têm sido usados por magistrados e tribunais brasileiros, quando a relação sexual ocorre entre dois adolescentes ou entre jovem e adolescente. É possível citar como exemplo o seguinte julgado do Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso do Sul:

APELACAO CRIMINAL – RECURSO MINISTERIAL – ATO INFRACIONAL EQUIPARADO A ESTUPRO DE VULNERAVEL – EXCEÇÃO DE ROMEU E JULIETA – ABSOLVICAO MANTIDA – RECURSO IMPROVIDO. Poderíamos traduzir, com vista a utilização de seus conceitos por aqui, como Exceção de Romeu e Julieta, inspirada nos celebres amantes juvenis imortalizados pelo gênio de William Shakespeare. Consiste em não reconhecer a presunção de violência quando a diferença de idade entre os protagonistas seja igual ou menor de 05 anos, considerando que ambos estariam no mesmo momento de descobertas da sexualidade. E, consequentemente, em uma relação consentida, não haveria crime. (SARAIVA, João Batista Costa. O Depoimento em dano e a romeo and juliet law. Uma reflexão em face da atribuição da autoria de delitos sexuais por adolescentes e a nova redação do art. 217 do CP. In. Juizado da Infância e Juventude / [publicado por] Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Corregedoria-Geral da Justiça. – n. 1 (nov. 2003)-. – Porto Alegre: Departamento de Artes Gráficas do TJRS, 2003) ACORDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os juízes da 2a Câmara Criminal do Tribunal de Justiça, na conformidade da ata de julgamentos, por maioria, não prover o recurso, nos termos do voto do 1ovogal, vencido o relator. (TJ/MS. Apelação – 0022701-25.2012.8.12.0001 – Campo Grande. Relator: Des. Carlos Eduardo Contar. Diário da Justiça nº 3047. Ano XIII, Publicado em: 31/01/2014)

Tal posicionamento também reverberou no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, conforme se conclui da leitura do seguinte julgado citado em artigo publicado no site jus navigandi[5]:

“Ocorre que nos Estado Unidos da América do Norte, em vários Estados, o sexo consentido entre menores de 18 anos é criminalizado. No entanto, com o tempo se verificou que a aplicação pura e simples da norma sobredita conduzia a exageros punitivos, razão pela qual se editou uma legislação visando conter o furor da irracionalidade penal. Tal lei, apelidada de Romeo anda Juliet Law, afasta a criminalização em todos dos casos no quais os envolvidos não tenham uma diferença de idade superior a cinco anos. Este parâmetro ofertado pela legislação e jurisprudência alienígenas certamente poderia servir de base para uma orientação dos operadores do direito na aplicação comedida da regra penal contida no art. 217 – A, CP quando envolva sexo consensual entre menores. Desta forma, por não caracterizar os fatos descritos na petição inicial como ato infracional, de rigor a extinção do processo sem resolução de mérito. Até porque, neste caso, não se está a tutelar o bem jurídico protegido pelo artigo 217 – A, do Código Penal, ou seja, o bom desenvolvimento sexual dos menores. Mas, pelo contrário, a aplicação da medida socioeducativa acarretaria violação ao bem jurídico protegido, já que atingiria o bom desenvolvimento sexual do adolescente maior de 14 (quatorze) anos, e não tutelaria o adolescente não maior de 14 (quatorze) anos. O mesmo não se aplica no caso de adolescente praticar conjunção carnal com criança, havendo considerável diferença de idade. Nesse caso, a conduta praticada pelo menor caracteriza ato infracional, cabendo a Justiça da Infância e Juventude aplicar-lhe a medida socioeducativa pertinente, já que o menor de 12 (doze) anos ainda não tem suficiente desenvolvimento sexual e psicológico para tomar decisões sobre a vida, e a maturidade do adolescente, ainda que não completamente desenvolvida, é capaz de prejudicar a criança”. (Processo nº 0008066-58.2011.8.26.0268. Publicação Oficial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Disponível em: Quarta-feira, 26/06/2013. DJE – Caderno Judicial – 1ª Instância – Interior – Parte II. São Paulo, Ano VI – Edição 1443 249).

Destaca-se ainda o voto do Desembargador Ricardo Roesler, Relator da Apelação nº 2011.098397-3, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina:
 

“Talvez por desmedida pudicícia, talvez mesmo por um contraditório sentimento puritano ou por simples hipocrisia sacralizamos qualquer contato sexual, e, no mais das vezes, ainda amarrados a alguns ranços seculares associamos qualquer forma de prazer à necessidade de penitência, própria ou alheia. Essa incofissão do desejo e do sexo faz lembrar a contradição relatada por João Cabral de Melo Neto em Agrestes: “não haverá nesse pudor/de falar-me uma confissão,/uma indireta confissão,/pelo avesso, e sempre impudor?”. Talvez haja. E a eventual dificuldade em dar tratamento mais consentâneo ao tema tem forte apelo simbólico: o sexo continua tabu, símbolo de luxúria e devassidão. O pecado original assim permanece, o fruto continua proibido. Por isso a insistência, normalmente cega, de demonização do acusado, independentemente de sua idade e do cenário, signo de um sentimento ambivalente, que exige incondicionalmente prazer e suplício juntos. Se não somos capazes de admitir a nós mesmos nossas limitações, que tenhamos apenas alguma sensibilidade com a alma humana, e tomemos como paradigma o exemplo hoje adotado nos Estados Unidos – país notoriamente reconhecido pela repreensão a crimes sexuais cometidos por jovens (notadamente os homossexuais), mas que tem admitido a atipicidade da conduta quando a relação sexual ocorre entre adolescentes. É o que se convencionou chamar Romeo and Juliet Law. O dispositivo, de inspiração shakespereana, tem se firmado como forma de impedir o apenamento de jovens que mantenham relações sexuais, cuja diferença de idade não ultrapasse cinco anos. (TJSC, Apelação / Estatuto da Criança e do Adolescente n. 2011.098397-3, de Campo Erê, rel. Des. Ricardo Roesler, j. 18-09-2012).”

Por fim, conquanto haja algumas decisões admitindo a exceção de Romeu e Julieta, o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça não admitem a relativização da vulnerabilidade etária, entendimento sedimentado na recente Súmula 593 STJ.

Em que pese este posicionamento predominante, não se pode desconsiderar alguns argumentos expostos pela corrente minoritária, que não aceita a singela subsunção formal da conduta ao tipo, desprezando idiossincrasias aptas a relativizar a vulnerabilidade etária, estando o debate ainda aberto e passível de mudanças.

Conclui-se, portanto, que a súmula nº 593 do Superior Tribunal de Justiça sedimentou o posicionamento deste Tribunal Superior sobre o tema, todavia a aplicabilidade da exceção de Romeu e Julieta pode ser novamente discutida nas cortes de competências recursal extraordinária.

No caso concreto enfrentado pelo Superior Tribunal de Justiça que originou o entendimento sumular analisado, o autor do fato iniciou o relacionamento com a vítima aos seus 17 (dezessete) anos e perdurou até sua maior idade penal, ao passo que a vítima tinha apenas 11 (onze) anos no início do enlace amoroso, ou seja, ainda criança, nos termos do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Esta situação em nada se assemelha a de duas pessoas menores de 14 (quatorze) anos e maiores de 12 (doze) anos que mantêm relação sexual consentida. Neste caso, deve ser aplicada a exceção de Romeu e Julieta, pois não seria razoável a responsabilização bilateral de ambos pelo ato infracional análogo ao crime de estupro de vulnerável, medida que ao invés de proteger a dignidade sexual dos adolescentes irá, sobremaneira, deixar marcas negativas na formação da vida sexual do envolvidos.

Fontes Bibliográficas:

GARCIA, Poliana Pereira. A relativização causuística da vulnerabilidade etária. Disponível em https://jus.com.br. 

[1] NUCCI, Guilherme de Sousa. Crimes contra a dignidade sexual. São Paulo: RT, 2009, p.37.

[2] ESTEFAM, André. Direito Penal – Parte Especial, 3. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 166.

[3] CARVALHO, Adelina de Cássia Bastos Oliveira. Violência presumida. 1ª Ed. Curitiba: Juruá, 2006. P. 151.

[4] STJ, REsp 1480881/PI, rel. Min Rogério Schiavetti Cruz, 3ª Seção, DJ.26.08.2015.

[5] GARCIA, Poliana Pereira. A relativização causuística da vulnerabilidade etária. Disponível em https://jus.com.br. Acesso em 13.11.2017.

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