Enquanto a polícia brasileira não atingir um nível ideal em que todas as operações sejam registradas por câmeras, o Poder Judiciário deve aplicar um escrutínio minucioso sobre os depoimentos de policiais, devido ao risco de deturpações dos fatos para justificar suas ações.
Com esse fundamento, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça concedeu Habeas Corpus para absolver dois indivíduos condenados a mais de 5 anos de prisão pelo crime de tráfico de entorpecentes.
Eles foram abordados por policiais em via pública e encontrados com 40 pedras de crack e R$ 49. Após a abordagem, houve a invasão da residência de um dos suspeitos, onde foram localizados mais drogas e uma balança de precisão.
Os tribunais de primeira e segunda instância condenaram os acusados, considerando a ação policial legítima, uma vez que a tentativa de fuga de um dos réus ao avistar a viatura teria motivado a revista. Esse cenário, conforme a jurisprudência do STJ, legitima a abordagem pessoal.
Contudo, segundo o ministro Rogerio Schietti, os três policiais envolvidos no ocorrido apresentaram versões divergentes sobre o que realmente aconteceu, sendo que uma delas sequer mencionou a suposta tentativa de fuga.
Por sua parte, o réu afirma que foi abordado e revistado assim que saiu da residência, sem qualquer justificativa concreta. Diante dessas incertezas, deve-se decidir em favor do acusado.
Depoimentos policiais
“Frente às discrepâncias nas versões e às contradições nos depoimentos dos policiais, não se pode considerar comprovada a justificativa factual alegada”, concluiu o ministro Rogerio Schietti.
Seu voto ressaltou a ausência de gravação audiovisual da operação policial, que poderia ter esclarecido as dúvidas significativas sobre os fatos.
Em sua argumentação, o relator fez uma extensa análise comparando com a experiência internacional, mencionando pesquisas que indicam a tendência de policiais justificarem suas ações com base apenas em suas percepções subjetivas.
No Brasil, esse comportamento é conhecido como “arredondar a ocorrência”: dar uma aparência mais aceitável a uma situação delicada envolvendo a conduta policial, de forma a justificá-la.
Esse fenômeno demanda que o juiz da causa avalie se existem outros elementos independentes que corroborem ou deem credibilidade ao relato policial, o que não foi verificado no caso em questão.
“Enquanto não alcançarmos o cenário ideal em que todas as operações sejam registradas, é necessário, no mínimo, aplicar um ‘escrutínio especial’ ao depoimento policial, considerando o risco de manipulação dos fatos para justificar as ações”, destacou Schietti.
Jurisprudência em evolução
As justificativas para abordagens policiais ainda estão sendo definidas pela jurisprudência do STJ, tribunal que tem a responsabilidade de interpretar o direito federal de forma definitiva.
O princípio básico é que deve haver razões concretas e justificáveis a partir de indícios claros, o que elimina abordagens fundamentadas apenas na percepção subjetiva dos policiais, muitas vezes contaminada por preconceitos de classe ou raça.
Com o tempo, o STJ compreendeu que essa análise precisava ser mais cuidadosa. Assim, denúncias anônimas ou meras suposições policiais não justificam abordagens ou revistas em público. No entanto, fugir ao avistar a polícia é considerado motivo suficiente.
Entre os exemplos dessa construção jurisprudencial, o STJ já declarou ilegais ações policiais motivadas unicamente pelo fato de duas pessoas estarem em uma motocicleta ou por um motorista usar capacete em locais onde isso não é habitual.
Estar em uma área conhecida pelo tráfico ou ser conhecido da polícia também não justifica, por si só, uma abordagem.
Por outro lado, demonstrar nervosismo ao avistar os policiais pode ser suficiente para justificar uma busca pessoal, desde que aliado a outros fatores. Respostas vagas e imprecisas a perguntas simples dos agentes também podem sustentar essa ação.
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