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Delegado de polícia deve realizar controle de constitucionalidade

por Editoria Delegados

Por Ruchester Marreiros Barbosa e Francisco Sannini

Por Ruchester Marreiros Barbosa e Francisco Sannini

É cediço que algumas atividades exercidas pelo delegado de polícia guardam estreita relação com o Poder Judiciário, incluindo-se funções materialmente judiciais, como se verifica no decreto de detenção em flagrante, na concessão de liberdade provisória com ou sem fiança, na expedição de alvará de soltura ou de mandado de condução coercitiva etc. Considerando as afinidades existentes entre as duas carreiras, questionamos nesse estudo a possibilidade de o delegado de polícia realizar o controle de constitucionalidade de leis.

Antes, todavia, de nos atermos ao tema, é imprescindível uma análise, ainda que perfunctória, sobre o controle de constitucionalidade. Nas lições de Flávio Martins, o controle de constitucionalidade “consiste na verificação da compatibilidade das leis e dos atos normativos com a Constituição. Decorre da supremacia formal da Constituição sobre as demais leis do ordenamento jurídico, sendo pressuposto de validade de todas as leis (…)”[1].

Embora neste estudo não tenhamos o objetivo de nos aprofundar no tema, vale destacar que o controle de constitucionalidade pode ser “preventivo” (realizado antes do nascimento da lei ou ato normativo) ou de natureza repressiva (após o nascimento da lei ou ato normativo). Enquanto o “controle preventivo” é realizado no âmbito dos três poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário), o controle repressivo é, eminentemente, jurisdicional. Isso significa que, em regra, cabe ao Poder Judiciário declarar a inconstitucionalidade de uma lei ou ato normativo vigente, seja por meio do controle difuso ou concentrado.[2]

Ocorre que o tema não é tão simples quanto parece, havendo entendimentos no sentido de que o “controle repressivo” de constitucionalidade não seria exclusivo do Poder Judiciário. Nesse sentido, o STF[3] admite que o Tribunal de Contas realize esse tipo de controle no exercício de suas funções: “O Tribunal de Contas, no exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público” (Súmula 347 do STF), bem como o judiciário estadual[4].

Em reforço a esse entendimento, as doutrinas mais modernas do Direito Constitucional fomentam uma “interpretação aberta” da Constituição. Peter Häberle, por exemplo, sustenta que todo cidadão e, sobretudo, todo órgão público devem atuar como intérpretes da Constituição:

“(…) no processo de interpretação constitucional estão potencialmente vinculados todos os órgãos estatais, todas as potências públicas, todos os cidadãos e grupos, não sendo possível estabelecer um elenco cerrado ou fixado com numero clausus de intérpretes da Constituição. (…) A interpretação constitucional é, em realidade, mais um elemento da sociedade aberta. Todas as potências públicas, participantes materiais do processo social, estão nela envolvidas, sendo ela, a um só tempo, elemento resultante da sociedade aberta e um elemento formador ou constituinte dessa sociedade. (…) Os critérios de interpretação constitucional hão de ser tanto mais abertos quanto mais pluralista for a sociedade.”[5]

No mesmo diapasão se manifesta Sarmento:

“(…) a abertura pluralista da interpretação constitucional não se limita à ampliação dos participantes no processo constitucional. Essa abertura importa no reconhecimento de que a Constituição é interpretada e concretizada também fora das cortes, e que seu sentido é produzido por meio de debates e interações que ocorrem nos mais diferentes campos em que se dá o exercício da cidadania.”[6]

Fixadas essas premissas, reiteramos neste estudo que o delegado de polícia exerce múnus público de enorme relevância, haja vista a possibilidade de suas decisões repercutirem, diretamente, em direitos e garantias fundamentais, conforme visto acima. Daí por que o nosso ordenamento jurídico exige formação jurídica para esta autoridade, assegurando, ademais, sua autonomia funcional nos atos de polícia judiciária. Por meio desses atributos, busca-se conferir à autoridade policial uma maior qualificação para poder dar a primeira palavra, nas hipóteses de reserva relativa de jurisdição, em nome do Estado-investigação, em situações que implicam na limitação de liberdades públicas.

É inegável que o delegado de polícia atua como intérprete do sistema normativo no exercício de suas funções, seja no momento em que realiza um juízo de tipicidade, seja nas hipóteses em que oferta representações ao Poder Judiciário demonstrando o cabimento e a pertinência de determinada medida sujeita à reserva de absoluta de jurisdição.

Mas a sua atividade hermenêutica não se limita aos atos normativos internos, alcançando, outrossim, tratados e convenções internacionais, especialmente quando envolver direitos humanos. Nesse linha de raciocínio, é dever do delegado de polícia realizar o denominado “controle de convencionalidade” das leis brasileiras, ou seja, avaliar, à luz do caso concreto, a compatibilidade entre uma norma interna com o conjunto normativo internacional ratificado pelo Brasil.[7]

Esse entendimento, aliás, encontra guarida na jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, senão vejamos:

“Quando um Estado é parte em um tratado internacional como a Convenção Americana, todos os seus órgãos, incluídos seus juízes, estão a ele submetidos, o qual os obriga a velar a que os efeitos das disposições da Convenção não se vejam diminuídos pela aplicação de normas contrárias a seu objeto e fim, pelo que os juízes e órgãos vinculados à administração da Justiça em todos os níveis têm a obrigação de exercer ex officio um ‘controle de convencionalidade’ entre as normas internas e a Convenção Americana, evidentemente no âmbito de suas respectivas competências e das regras processuais correspondentes, e nesta tarefa devem levar em conta não somente o tratado, senão também a interpretação que do mesmo tem feito a Corte Interamericana, intérprete última da Convenção Americana”.[8]

Em decisão ainda mais emblemática, a Corte destacou que não apenas os órgãos judiciários, mas também determinados órgãos administrativos que têm aptidão para interferir em liberdades públicas, devem efetivar o controle de convencionalidade:

“(…) ditas características não só devem corresponder aos órgãos estritamente jurisdicionais, senão que as disposições do artigo 8.1 da Convenção se aplicam também às decisões de órgãos administrativos. Toda vez que em relação a essa garantia corresponder ao funcionário a tarefa de prevenir ou fazer cessar as detenções ilegais ou arbitrárias, é imprescindível que dito funcionário esteja facultado a colocar em liberdade a pessoa se sua detenção for ilegal ou arbitrária.”[9]

Ora, pelas mesmas razões que o delegado de polícia tem atribuição para realizar esse “controle de convencionalidade” das leis e atos normativos, deve se admitir a efetivação do “controle repressivo” de constitucionalidade por esta autoridade pública, que, sem qualquer sombra de dúvida, é um importante intérprete da Constituição da República na fase inicial da persecução penal.

Por obviedade, esse controle de constitucionalidade realizado pelo delegado de polícia não deve ser corriqueiro e muito menos leviano ou desarrazoado, sendo limitado às hipóteses de atos normativos clamorosamente inconstitucionais, especialmente quando se tratar de casos já analisados pelo Supremo Tribunal Federal.

Não é outro o entendimento de Sayeg:

“(…) o delegado de polícia, enquanto obrigado a operar o direito no âmbito de suas funções, deverá, para o resguardo da supremacia da Constituição, reconhecer incidenter tantum e inter partes em decisão devidamente fundamentada, a inconstitucionalidade de lei flagrantemente inconstitucional, situação reconhecida quando houver uma (ou mais) decisões judiciais nesse sentido, nos casos em que a sobredita lei ainda não tiver sido excluída do ordenamento jurídico.”[10]

De maneira ilustrativa, podemos citar a nova previsão constante no artigo 310, parágrafo 2º, do CPP, acrescentado pelo denominado Pacote “Anticrime”. O dispositivo prevê que “Se o juiz verificar que o agente é reincidente ou que integra organização criminosa armada ou milícia, ou que porta arma de fogo de uso restrito, deverá denegar a liberdade provisória, com ou sem medidas cautelares”. Percebe-se, destarte, que a inovação legislativa estabelece uma vedação em abstrato à liberdade provisória, o que implica na prisão preventiva obrigatória, ferindo o princípio da presunção de inocência e da motivação das prisões cautelares, conforme já reiteradamente decidido pelo STF[11].

Com efeito, diante do posicionamento pacífico da nossa Corte Suprema sobre a inconstitucionalidade da vedação da liberdade provisória com base na gravidade em abstrato do crime, nos parece não apenas possível, mas recomendável que o delegado de polícia realize o controle de constitucionalidade desse novo dispositivo acrescentado ao CPP pelo Pacote “Anticrime”.

Explicamos! Embora a norma em questão seja direcionada ao juiz, de forma indireta ela acaba por pautar as decisões do delegado de polícia. Isto, pois, em não se admitindo a liberdade provisória nas hipóteses de preso em flagrante reincidente ou que integre organização criminosa/milícia ou, ainda, que seja surpreendido portando arma de fogo de uso restrito, acaba por impor um pressuposto para a decretação da preventiva, restando, pois, por inafiançável, conforme regra prevista no artigo 324, IV, do CPP.

Com o objetivo de reforçar a importância desse controle feito pelo delegado de polícia, nos socorremos de um exemplo prático. Imagine que uma pessoa seja capturada em flagrante pelo crime de embriaguez ao volante. O delito do artigo 306 do CTB é afiançável na esfera policial, nos termos do artigo 322 do CPP. Contudo, se o suspeito ostentar condenação com trânsito em julgado pelo crime de injúria, considerado de menor potencial ofensivo, não teria direito à fiança devido ao novo regramento imposto pelo artigo 310, parágrafo 2º, do CPP, que veda liberdade provisória ao reincidente.

Na prática, portanto, nos parece que na lavratura do auto de prisão em flagrante o delegado de polícia deve reconhecer a inconstitucionalidade desse dispositivo por ofensa aos princípios constitucionais da presunção de inocência e da motivação das prisões cautelares e, ato contínuo, conceder liberdade provisória mediante fiança ao capturado em flagrante.

Outro caso de controle de constitucionalidade que pode ser realizado pelo delegado de polícia, por meio da sistemática da interpretação conforme, envolve o artigo 33, parágrafo 2º, da Lei de Drogas, e a denominada “Marcha da Maconha”. Nos termos do decidido na ADI 4.274, o STF declarou que qualquer interpretação no sentido de considerar criminoso o referido movimento seria inconstitucional por violar o direito à liberdade de manifestação de pensamento e o direito à liberdade de reunião.

Em conclusão, destacamos outra hipótese de controle de constitucionalidade realizado pelo delegado de polícia. Nos referimos ao crime de injúria racial, previsto no artigo 140, parágrafo 3º, do Código Penal, mais especificamente à possibilidade de concessão de fiança aos autores desse tipo de infração. Isto porque, se analisarmos o preceito secundário do tipo penal, somos induzidos a concluir que seria possível a fixação de fiança pelo delegado de polícia, uma vez que não se trata de infração penal com pena máxima superior a 4 anos, nos termos do artigo 322 do CPP.

Nesse contexto, não se pode olvidar que o STF já se posicionou no sentido de que a injúria racial seria uma das formas de manifestação do racismo.[12]

Assim, em casos de captura em flagrante pelo crime de injúria racial, o delegado de polícia pode realizar uma intepretação conforme a Constituição para reconhecer a inafiançabilidade do delito em face do artigo 5º, inciso XLII, da Constituição.

É preciso reiterar, todavia, que em situações como estas o delegado de polícia não extirpa norma do ordenamento jurídico, pois a norma continua válida e aplicável. Contudo, na sua atividade de intérprete da Constituição, a autoridade policial pode não aplicar determinada norma por entendê-la incompatível com a nossa Carta Maior ou com tratados e convenções internacionais, ou, ainda, dar ao ato normativo uma interpretação conforme. Nesta toada, o STF[13] reconhece que o CNJ, outro órgão administrativo, possa apreciar a constitucionalidade de lei:

(…) a defesa da integridade da ordem constitucional pode resultar, legitimamente, do repúdio, por órgãos administrativos (como o Conselho Nacional de Justiça), de regras incompatíveis com a Lei Fundamental do Estado, valendo observar que os órgãos administrativos, embora não dispondo de competência para declarar a inconstitucionalidade de atos estatais (atribuição cujo exercício sujeita-se à reserva de jurisdição), podem , não obstante, recusar-se a conferir aplicabilidade a tais normas, eis que – na linha do entendimento desta Suprema Corte – ‘há que distinguir entre declaração de inconstitucionalidade e não aplicação de leis inconstitucionais, pois esta é obrigação de qualquer tribunal ou órgão de qualquer dos Poderes do Estado’.

Percebe-se, pelo todo exposto, que o delegado de polícia exerce, ainda que de forma excepcional, funções materialmente judiciais, podendo, inclusive, realizar um controle difuso de constitucionalidade em determinadas situações. Negar essas conclusões seria fechar os olhos para uma realidade que, sem qualquer influência corporativista, só apresenta vantagens na tutela dos direitos e garantias fundamentais.

[1] MARTINS, Flavio. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. p. 535.

[2] Para um estudo mais adequado do tema, sugerimos as doutrinas de Direito Constitucional.

[3] Mesmo sentido: MS 31.439 MC rel. min. Marco Aurélio, j. 19.07.2012; e Pet 4656, Rel.Min. Cármen Lúcia, Tribunal Pleno, j. 19.12.2016

[4] TJPR – Órgão Especial – MSOE – 540513-4

[5] HABERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional – A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição pluralista e “procedimental” da constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre, 1997. p. 13.

[6] SARMENTO, Daniel. Direito Constitucional. Teoria, história e métodos de trabalho. ed.2. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p.404.

[7] Nesse sentido, HOFFMANN, Henrique. MARREIROS BARBOSA, Ruchester. Delegado pode e deve aferir convencionalidade das leis. In FONTES, Eduardo e HOFFMANN, Henrique (Org.). Temas Avançados de Polícia Judiciária. 4ª Ed. Salvador: JusPodivm, 2020, p. 64-65. No mesmo sentido, MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direitos Humanos. 4ªed. São Paulo: GEN/Método, 2017, p. 464/469.

[8] Caso Gelman vs. Uruguai. Sentença de 24.02.2011.

[9] Caso Jesus Vélez Loor vs. Panamá. Sentença de 23.11.2010.

[10] SAYEG, Ronaldo. Inquérito Policial Democrático. op. cit., p.78.

[11] STF, 2ª Turma, HC 110.844/RS, DJe 19.06.2012.

[12] STF, HC 154.248/DF, trecho extraído do voto do Rel. Min. Edson Fachin.

[13] MC no MS 31.923/RN, Rel. Min. Celso de Mello, DJe 19.04.2013

 

Sobre os autores

Ruchester Marreiros Barbosa é delegado de polícia do RJ e professor da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, da Escola da Magistratura de Mato Grosso e do Cers. Autor de livros e palestrante.

Francisco Sannini é delegado de polícia de São Paulo, mestre em Direitos Difusos e Coletivos, especialista em Direito Público, professor concursado da Academia de Polícia do Estado de São Paulo, professor do Damásio Educação, da pós-graduação do Cers, da pós-graduação do Curso Supremo e da pós-graduação do Unisal/Lorena, colunista do Canal Ciências Criminais e autor da Editora JH Mizuno.

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