Do alto de seus 74 anos de idade, Ênio Matos trabalha com outros 15 policiais no departamento de homicídios, o qual ocupa todo o terceiro andar da 1ª Delegacia de Polícia Civil da Capital, no Centro de Florianópolis. Ao fim do corredor, um salão de reuniões. Depois do salão, a sala do delegado.
Natural de Urubici, na Serra catarinense, Ênio é formado em direito e entrou na polícia quando um amigo policial o chamou para prestar o concurso da Civil, em 1998. Do Planalto Sul, ele foi até o Extremo Oeste, para começar sua carreira como delegado em Dionísio Cerqueira, fronteira com a Argentina.
Dez anos depois, Ênio cruza o estado e chega a Florianópolis. A delegacia de homicídios da Capital foi criada em 2008. Em agosto daquele ano, após passagens relâmpago de dois delegados, Ênio foi chamado para assumir como titular da delegacia.
O cheiro da morte
Ao longo dos 16 anos de carreira, o delegado e a sua equipe solucionaram 1041 das 1287 mortes em Florianópolis. Com uma eficiência superior a 80% na resolução de homicídios, Ênio tem ainda casos em aberto, mas não acredita em crime perfeito.
“Sempre tem uma pista, uma informação, um caminho. Sempre tu chega em algum lugar. Um ditado que tem por aí, e que é real, é que ‘defunto fala’. A primeira atenção que você tem que ter é o local do crime, partir dali”.
Para descobrir quem é responsável por interromper uma vida, o delegado afirma que é necessário estar disposto a enfrentar todas as texturas, visões e cheiros da morte.
“Ir no velório é fácil. Quero ver ir no buraco, no meio do banhado, desenterrar e ver que tá bem catinguento, ter que sair correndo para ir para casa tomar banho, botar aquela tua roupa logo num tanque para ver se sai o cheiro que vem contigo”.
O delegado lembra o caso de um homem, morto com um tiro nas costas, que foi encontrado amarrado no bairro Rio Tavares, Sul de Florianópolis.
“Ele era de São José, ele foi desovado lá, num local nada a ver com nada. Começamos trocando informações com o pessoal de São José e Palhoça e descobrimos que ele foi pego em São José, morto no Norte da Ilha e desovado no Rio Tavares. Tudo porque trocamos informações, pegamos uma ponta. Sem isso, não tem como”, explica.
Caso reaberto
A morte de outro homem, encontrado na Vila Aparecida, em 2022, era um mistério até pouco tempo atrás.
“Há dois anos sem solução, chegou uma informação de outro caso no continente. Ele foi morto por briga de tráfico. Ele era de Palhoça, estava na cadeia, saiu temporariamente e uns 15 dias depois mataram. Agora estamos reabrindo o inquérito”.
Após dois anos, Ênio reabriu inquérito de crime que parecia sem solução – Foto: Germano Rorato/NDApós dois anos, Ênio reabriu inquérito de crime que parecia sem solução – Foto:
Um cigarro por um segredo?
Entre o conjunto de técnicas necessárias para desvendar um crime, fumar um cigarro na calçada da Osmar Cunha faz parte do ritual de Ênio. Assim, ele diz ter resolvido parte de seus casos.
“Um dia desci pra refrescar a cabeça, ver as moças passarem na rua e fumar um cigarrinho. Estava na rua, um homem me chamou e falou ‘aquele caso lá, essa pessoa foi quem matou’. Se eu vou na comunidade, ele nem fala comigo, por medo de represália. Mas, agora, se eu estou ali na frente, ele vai vir falar comigo. É confiança que você passa para as pessoas”, explica.
O departamento de homicídios opera dentro da 1ª Delegacia de Polícia Civil da Capital, na Avenida Prefeito Osmar Cunha, em Florianópolis – Foto: Germano Rorato/NDO departamento de homicídios opera dentro da 1ª Delegacia de Polícia Civil da Capital, na Avenida Prefeito Osmar Cunha, em Florianópolis – Foto: Germano Rorato/ND
Não foi uma vez ou duas. Atualmente, o delegado aprecia Rothmans, mas sem grande apego à marca britânica. O importante é descer para fumar. Fiel ao cigarro, Ênio faz do vício uma carta na manga.
“Foram alguns casos assim, quantos homicídios eu já resolvi porque estava fumando meu cigarrinho. Por isso, fumar cigarro é bom”, brincou o delegado, aos risos.
Em 2017, todo dia era macabro
De seus 16 anos à frente da delegacia de homicídios, o maior número de casos se acumulou em 2017, quando Florianópolis contabilizou 165 homicídios. Na época, a cidade era palco da guerra entre as facções PGC e PCC, que disputavam território e poder na ilha e no continente.
“Em 2017 qualquer dia era macabro, era um atrás do outro. O que é macabro? Fazer a vítima levar um latão mato adentro para cima do morro, matar o cara, cortar [o corpo] em pedaços, enfiar ele dentro do latão, tocar fogo e filmar”
A guerra se estendeu para 2018, quando ocorreram 119 assassinatos. Segundo o delegado, a cidade foi apaziguada após trabalho conjunto entre as delegacias de homicídios e do crime organizado, que conseguiram descapitalizar, prender e desarmar as facções o suficiente para que as mortes violentas saíssem da ordem do dia.
Até isso acontecer, ao menos 15 mortes aconteceram do mesmo jeito, nos mesmos lugares: matavam, cortavam a cabeça e enterravam — na comunidade do Papaquara e no Morro do Mosquito, ambos no Norte de Florianópolis. Ênio conta ainda que o processo era filmado para provar a morte para os líderes do tráfico e para intimidar adversários.
Há alguns anos, lembra Ênio, quatro pessoas foram encontradas mortas em um quarto de hotel no Norte da Ilha. Ali, para o delegado, “o bicho pegou”.
No local, uma mensagem do PCC escrita na parede e uma cena de crime enigmática dificultaram o trabalho do departamento de homicídios, que precisou reavaliar o cenário até encontrar pistas.
“Fomos uma, duas, três vezes para o local. Na terceira vez, conseguimos perceber uma coisa. Resolvemos”.
Passado o período crítico, o tráfico segue como o motivo principal para os assassinatos em Florianópolis.
“A vida está banalizada. Ninguém liga mais para nada. Por conta de R$ 10 de dívida de tráfico eles matam uma pessoa. Eu tenho 10, 20, 100 casos assim”.
“Minha cabeça já valeu R$ 50 mil”
Com a lógica de que o “dono” de cada caso é a vítima morta, Ênio demonstra pouca — senão zero — preocupação em desagradar os vivos, ainda que tal desagrado o transforme em alvo.
“Minha cabeça já valeu R$ 50 mil”, fala e gesticula, como se dispensasse a ameaça com as mãos.
“Ninguém gosta de polícia. Tem um ditado que diz: ‘Na hora do importuno o homem reza para Deus e chama a polícia. Terminado o inoportuno, ele esquece de Deus e a amaldiçoa a polícia’”
‘Me pergunta de hoje, amanhã nem sei se estou vivo’
Aos 74 anos, Ênio está a um ano da aposentadoria compulsória. Mas nem o prazo intimida o delegado a pensar em algo além do presente.
“Depois da aposentadoria acho que eu brincar com o carro velho, ou sei lá. Eu não esquento com essas coisas. Me pergunta de hoje, amanhã eu nem sei se eu tô vivo”.
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