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Constrangimento a depoimento ou prosseguimento indevido de interrogatório

por Editoria Delegados

Por Adriano Sousa Costa, Eduardo Fontes e Henrique Hoffmann

Por Adriano Sousa Costa, Eduardo Fontes e Henrique Hoffmann

A Lei 13.869/19 revogou a Lei 4.898/65 para se tornar a atual Lei de Abuso de Autoridade, abrangendo a tipificação de crimes funcionais, cometidos pelo agente público que extrapola os limites de atuação e fere o interesse público.[1]

Um dos mais importantes delitos é o de constrangimento a depoimento ou prosseguimento indevido de interrogatório, albergado no artigo 15 da Lei 13.869/19, cujo tipo penal dispõe:

“Art. 15 Constranger a depor, sob ameaça de prisão, pessoa que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, deva guardar segredo ou resguardar sigilo:

Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem prossegue com o interrogatório:
I – de pessoa que tenha decidido exercer o direito ao silêncio; ou
II – de pessoa que tenha optado por ser assistida por advogado ou defensor público, sem a presença de seu patrono.”

Para uma correta análise da conduta (tipo objetivo), fundamental tecer esclarecimentos acerca do sigilo profissional e proibição de depor como testemunha. A regra geral é que toda pessoa pode ser testemunha, devendo assumir o compromisso de dizer a verdade (artigos 202 e 203 do CPP). Contudo, existem pessoas que podem se eximir de depor (parentes – artigo 206 do CPP) ou são até mesmo proibidas de depor (profissionais que devem guardar sigilo – artigo 207 do CPP).

Os profissionais englobados pelo sigilo são indicados em diversas normas constitucionais, legais e infralegais, a exemplo do (a) parlamentar (artigo 53, parágrafo 3º da CF), (b) advogado (artigo 7º, XIX da Lei 8.906/94), (c) médico (artigo 73 do Código de Ética Médica – Resolução 1.931/09 do Conselho Federal de Medicina) e (d) padre (artigo 983, parágrafo 1º do Código Canônico). O artigo 15 da Lei de Abuso de Autoridade constitui norma penal em branco, na medida em que é preciso se socorrer de diversos diplomas legais que regulamentam as inúmeras profissões, a fim de se verificar se a pessoa está obrigada ou não a depor.

Note que o impedimento não é absoluto, pois referidas pessoas podem ser desobrigadas pela parte interessada no resguardo da informação (artigo 207, in fine do CPP). Nesse caso, por óbvio, não há que se falar em constrangimento se o profissional optar por dar seu testemunho.

É criminalizada no caput a conduta de constranger sob ameaça de prisão. O constrangimento aqui não diz respeito à vergonha, humilhação, ou embaraço, mas, sim, à realização de ato em relação ao qual o profissional não possa ou não deseja fazê-lo. Ademais, no caput, o silêncio é funcional, diferentemente do inciso I do parágrafo único, que é faculdade do investigado e não guarda relação com sua profissão.

O delito somente se aperfeiçoa se o constrangimento a depor se der mediante ameaça de prisão, não bastando qualquer tipo de admoestação. Se a ameaça for de morte, por exemplo, não incide tal infração penal, podendo incidir o crime de coação no curso do processo, previsto no artigo 344 do Código Penal.

Na expedição de intimação para depoimento, a mera menção do crime de desobediência constante no mandado não pode ser vista como hábil a configurar a ameaça de prisão (elementar do tipo) e, portanto, promover a subsunção ao crime. Até porque, a menção do dispositivo legal do delito de desobediência no bojo dos mandados apenas adverte o intimado sobre hipotéticas consequências jurídicas previstas na própria legislação (artigo 219 do CPP, por exemplo).

Tampouco se se pode confundir a expedição de ofício de requisição de informações com o constrangimento a depor, sob ameaça de prisão, o que caracterizaria analogia in malam partem. A título de exemplo, o pedido de informações por escrito acerca do prontuário de um paciente[2] não se amolda no presente tipo penal incriminador, mesmo que contenha cláusula genérica de a desobediência ser punida nos termos da lei penal. Nessa esteira, não é vedado ao delegado de polícia encaminhar pedido de informações a um médico, pois não há depoimento em simples pedido de informações. A mera ameaça de prisão, em requisição formal de informações, nunca foi considerada infração penal.

Em relação às figuras equiparadas, o inciso I do parágrafo único contempla o interrogatório de pessoa que tenha decidido exercer o direito ao silêncio. Cabe destacar que, em razão da inexigibilidade de autoincriminação (artigo 5º, LXIII da CF e artigo 186 do CPP), também conhecida como nemo tenetur se detegere, ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo. Essa proteção abarca, além da possibilidade de recusar (a) ser submetido a prova invasiva (ex: exame de sangue, exame de DNA), a garantia de (b) não ser forçado a adotar comportamento ativo incriminador (ex: reprodução simulada dos fatos, bafômetro, perícia grafotécnica, perícia vocal, confissão). Como se percebe, o direito ao silêncio consubstancia-se em um corolário do direito a não produzir prova contra si mesmo.

Para a subsunção a esse tipo penal equiparado não é necessário que ocorra o constrangimento sob ameaça de prisão, tal qual se dá com a figura criminosa descrita no caput, pois constituem módulos de constrangimento distintos.

Esse é um ponto de suma importância e que merece toda atenção dos operadores do direito. De agora em diante, se o direito ao silêncio for utilizado, seja em relação a todas as perguntas, seja quanto a parte delas, não deve a autoridade prosseguir com os questionamentos, sendo o interrogatório interrompido.[3] O que acaba por evitar, inclusive, que se extraiam elementos de valoração do silêncio.[4] É a linha seguida pela Suprema Corte ao proibir a condução coercitiva do suspeito para interrogatório:

“Ora, se o investigado não é obrigado a falar, não faz qualquer sentido que seja obrigado a comparecer ao ato, a menos que a finalidade seja de registrar as perguntas que, de antemão, todos já sabem que não serão respondidas, apenas como instrumento de constrangimento e intimidação. É autêntica lawfare da acusação: registram-se as perguntas apenas tentar provocar prejuízo ao interrogado, por exercer seu direito ao silêncio.[5]”

Contudo, nessa hipótese em que o interrogado exerce o direito a ficar calado, o fato de não ser possível consignar as perguntas não impede que a autoridade, logo após se identificar, indique de maneira pormenorizada o objeto da apuração, apontando os fatos investigados e as diligências já concluídas até o momento.

Obviamente que os dados sobre a qualificação e vida pregressa ainda continuam necessários e obrigatórios. Como se sabe, o interrogatório é dividido em 2 partes. A etapa inicial diz respeito à identificação do interrogado, em que é obrigado a responder a verdade (pois não corre o risco de se autoincriminar), sob pena de crime de falsa identidade (artigo 307 do CP).[6] A fase final concerne efetivamente aos fatos apurados, e somente nela incide o direito ao silêncio (já que existe o perigo de produzir prova contra si mesmo). Daí a dicção do CPP:

“Artigo 186. Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas.”

Destarte, deve a autoridade fazer a advertência quanto ao direito ao silêncio (aviso de Miranda) apenas no início da 2ª fase do interrogatório.

A autoridade que prossegue com o interrogatório (policial, judicial ou de outra natureza) sabendo que o interrogado quer ficar calado pratica abuso, se presente o elemento subjetivo especial. O tipo penal atinge não apenas o delegado no inquérito policial e o juiz no processo penal, mas também o parlamentar em CPI e o membro do MP em apuração ministerial.

Outro detalhe relevante é que qualquer tipo de oitiva que recaia sobre o suspeito demandará observância dessa regra, de nada adiantando travestir o interrogatório com outra nomenclatura. Isso significa que não importa o rótulo conferido ao termo de inquirição (declarações, entrevista ou depoimento), ou tampouco que se chame o investigado de envolvido ou testemunha. O que deve ser levado em consideração é o conteúdo do ato e não sua forma.[7] Em se tratando de pessoa que está sendo alvo da investigação (sofrendo busca e apreensão, interceptação telefônica ou outra medida restritiva de direitos fundamentais), e portanto ouvida desde o início como suspeita, merece o respeito à inexigibilidade de autoincriminação. Por isso, até mesmo a entrevista informal realizada pelos policiais capturadores podem ser objeto da presente incriminação.

Bem assim, ainda que se trate inicialmente de testemunha, porém no curso da inquirição sejam feitas indagações sobre seu envolvimento na prática de crime (cujas respostas possam gerar sua autoincriminação), passa a gozar do status de suspeita, e por isso ter a guarida do direito a se calar.[8]

Não custa lembrar que existe nessa lei outro crime específico quanto ao interrogatório policial, estampado no artigo 18.

O inciso II do mesmo parágrafo único consagra a outra figura equiparada, consistente em interrogatório de pessoa que tenha optado por ser assistida por advogado ou defensor público, sem a presença de seu patrono. Convém rememorar as diferenças entre a atuação do advogado no interrogatório policial e no interrogatório judicial.

Quanto ao interrogatório policial:

“Nota-se que a participação do advogado no inquérito policial continua não sendo obrigatória, mas o procurador do investigado tem o direito de participar da inquirição do cliente. Trata-se mais de prerrogativa do advogado constituído do que um direito do suspeito, cujo exercício da ampla defesa, conquanto seja mitigado na fase pré-processual, será pleno apenas na etapa processual.[9]”

Destarte, o advogado continua sendo facultativo. Admite-se a participação do causídico, se presente no ato e o interrogado houver manifestado essa vontade, atuação exclusiva para a inquirição de seu cliente (e não nas oitivas de outros envolvidos, às quais pode ter acesso assim que finalizadas e juntadas aos autos).[10] Mas não há obrigação legal de o delegado intimar o advogado constituído, ou requisitar defensor público ou nomear defensor dativo se nenhum causídico tiver sido contratado.[11] É o que dispõe o Estatuto da OAB:

“Art. 7º São direitos do advogado:

XXI – assistir a seus clientes investigados durante a apuração de infrações, sob pena de nulidade absoluta do respectivo interrogatório ou depoimento e, subsequentemente, de todos os elementos investigatórios e probatórios dele decorrentes ou derivados, direta ou indiretamente, podendo, inclusive, no curso da respectiva apuração: a) apresentar razões e quesitos.”

Já no interrogatório judicial a presença de defensor é obrigatória, seja advogado, defensor público ou defensor dativo, com ou sem a vontade do interrogado (artigo 185 do CPP).

Note que não se requer a presença física do advogado, podendo ocorrer, se possível, pela via remota. Se assim não o fosse, os interrogatórios por videoconferência poderiam ser inviabilizados e/ou criminalizados.

Na fase policial, o delegado não está obrigado a aguardar o comparecimento do causídico para então iniciar e concluir o interrogatório. Principalmente no caso de prisão em flagrante, que possui exíguo prazo para conclusão, não precisando o procedimento permanecer suspenso até a chegada do patrono. Basta que não se prossiga com a inquirição do suspeito.

Não há crime na realização da fase inaugural do interrogatório, pois, como explicado, a etapa inicial diz respeito somente à identificação do interrogado, em que é obrigado a responder a verdade (pois não corre o risco de se autoincriminar), sob pena de crime de falsa identidade (artigo 307 do CP). Demais disso, é obrigação da autoridade policial, dentre outras diligências, proceder à identificação do suspeito e averiguar sua vida pregressa (artigo 6º, VIII e IX do CPP). Não se vislumbra prejuízo aos interesses do interrogado, que pode se incriminar pelo não exercício de uma garantia apenas na fase derradeira, acerca do mérito, em que a ausência de recomendação do advogado sobre o exercício do direito ao silêncio poderia acarretar uma desastrosa confissão. Demais disso, para a configuração do delito é imprescindível a presença de elemento subjetivo especial.

Em acréscimo, sublinhe-se que tal imperativo legal só existe em face do interrogatório do suspeito ou réu, não se falando em crime na conduta de prosseguir com depoimento de testemunha ou declaração da vítima que tenha optado por ser assistida por advogado ou defensor público, sem a presença de seu patrono.

[1] Para um estudo completo sobre a matéria: COSTA, Adriano Sousa; FONTES, Eduardo; HOFFMANN, Henrique. Lei de Abuso de Autoridade. Salvador: Juspodivm, 2020.

[2] Para detalhes sobre a prevalência do poder requisitório do delegado em face do dever de sigilo médico: HOFFMANN, Henrique. Médico deve fornecer prontuário requisitado pela polícia judiciária. Revista Consultor Jurídico, fev. 2016. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2016-mar-15/academia-policia-medico-fornecer-prontuario-requisitado-policia-judiciaria>. Acesso em: 19 dez. 2019.

[3] No mesmo sentido: LIMA, Renato Brasileiro de. Nova lei de abuso de autoridade. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 170. Com entendimento diverso, de que o interrogado pode escolher as perguntas que deseja responder e o interrogatório prosseguir dessa forma: GRECO, Rogério; CUNHA, Rogério Sanches. Abuso de autoridade. Salvador: Juspodivm, 2019, p. 146.

[4] QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 216.

[5] STF, Rcl 39.449, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 02/03/2020.

[6] Súmula 522 do STJ: A conduta de atribuir-se falsa identidade perante autoridade policial é típica, ainda que em situação de alegada autodefesa.

[7] STJ, HC 330.559, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, DJ 25/09/2018; STF, Rcl 33.711, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 11/06/2019.

[8] STF, HC 79.812, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 16/02/2001.

[9] HOFFMANN, Henrique; COSTA, Adriano Sousa. Atuação do advogado no inquérito policial. FONTES, Eduardo; HOFFMANN, Henrique (Org.). Temas Avançados de Polícia Judiciária. 3. ed. Salvador: Juspodivm, 2019, p. 62.

[10] Súmula vinculante 14 do STF: É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa.

[11] STF, Pet 7.612 AgR, Rel. Min. Edson Fachin, DJ 18/09/2018.

 

Sobre os autores:

Adriano Sousa Costa é delegado de Polícia Civil de Goiás; autor pela Juspodivm e Impetus; professor da Escola Superior da Polícia Civil de Goiás, Verbo Jurídico e CERS; membro da Academia Goiana de Direito; doutorando em Ciência Política pela UnB e mestre em Ciência Política pela UFG.

Eduardo Fontes é delegado de Polícia Federal; autor pela Juspodivm; professor do CERS; especialista em Segurança Pública e Direitos Humanos pelo Ministério da Justiça; coordenador do IBEROJUR no Brasil; aprovado nos concursos de Procurador do Estado de São Paulo e Delegado de Polícia Civil no Paraná.

Henrique Hoffmann é delegado de Polícia Civil do Paraná; autor pela Juspodivm; professor da Verbo Jurídico, Escola da Magistratura do Paraná e Escola Superior de Polícia Civil do Paraná; mestre em Direito pela UENP; colunista da Rádio Justiça do STF. Foi professor do CERS, TV Justiça do STF, Secretaria Nacional de Segurança Pública, Secretaria Nacional de Justiça, Escola da Magistratura Mato Grosso, Escola do Ministério Público do Paraná, Escola de Governo de Santa Catarina, Ciclo, Curso Ênfase, CPIuris e Supremo. www.henriquehoffmann.com

 

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