Babá e empregada doméstica aos 10 anos. Moradora de abrigo. Vendedora de dindin e pastel nas ruas. Bacharel em direito. Policial militar. Escrivã e, agora, nova delegada da Polícia Civil em Roraima. Esse é o resumo da vida de Letícia de Oliveira Paiva, de 40 anos, o “furo no bloqueio” da desigualdade social.
Letícia tem uma história de vida marcada pela força de vontade, a fé e a esperança de “vencer na vida”, principalmente por meio dos estudos, com quem tem uma relação forte: ela coleciona seis aprovações, entre concursos e vestibulares.
Agora, como delegada na Polícia Civil, “doutora” Letícia sabe que não foi fácil chegar onde chegou, mas olha para a própria história com orgulho e quer usar a nova função para incentivar outras pessoas a melhorar de vida estudando.
“Quero fazer desse cargo um meio de incentivar pessoas pobres, negras, pessoas que acham que é impossível, que não tem dinheiro para comer, que não tem dinheiro para pagar os estudos, que a gente pode sim chegar nos nossos objetivos”.
Nascida em Portel, na ilha do Marajó, no Pará, desde a infância ela sempre precisou ter a vida reestruturada. Aos 4 anos, se mudou com a família para Altamira, no sudoeste do Pará, em busca de uma vida menos difícil.
Morando na roça, onde a mãe trabalhava como caseira de uma propriedade, Letícia percorria cerca de 6 km a pé para chegar até a escola, onde estudou até o 5° ano do ensino fundamental, o máximo ofertado na região à época. Como a educação era uma prioridade para família, ela se mudou para o centro da cidade, onde continuou a estudar com os irmãos.
Letícia sentiu os resultados da desigualdade social, como a fome, muito cedo. Às vezes na escola era o único lugar onde conseguia ter uma refeição completa.
“Eu vinha da escola com lanche guardado na minha bolsa, levava para os meus irmãos. Trazia pão, amassava o pãozinho, trazia na minha mochila e dava o pão para a minha mãe, para os meus irmãos”, lembrou, emocionada.
Hoje, Letícia atua na Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (Deam) de Roraima, em Boa Vista, e se dedica a ajudar vítimas de violência doméstica e sexual. Diariamente, atende mulheres que passaram por situações iguais ou parecidas com a dela, e as ajuda “a entender que as coisas podem mudar”.
“Foi para isso que eu passei por toda uma história de sofrimento, para ajudar vidas, porque isso aqui é uma forma de ajudar pessoas que chegam destruídas emocionalmente, assim como eu fui destruída emocionalmente”, afirmou.
Eu quero ajudar as pessoas, mostrar para elas que a gente pode sim chegar nos nossos objetivos, que podemos fazer da dificuldade uma força para chegar lá [nos objetivos], para mostrar para os outros que a gente também é capaz, que a gente tem essa possibilidade de chegar aonde quiser.
Moradora de abrigo, vendedora e empregada doméstica
Em Altamira, a avó, mãe, o padrasto, Letícia e os dois irmãos viviam em uma casa feita de madeira e doada para a família. Durante uma enchente, eles perderam móveis, roupas e vários outros pertences, e tiveram que morar em um abrigo.
“Nós fomos morar em um abrigo e ficamos lá por muito tempo. Quando as águas baixaram, todo mundo que estava no abrigo voltou para as suas residências, mas o dono da casa em que a gente morava pediu ela de volta e a gente não teve para onde ir, então tivemos que ficar no abrigo por muito tempo, recebendo doações do Exército”, relembrou Letícia de Oliveira.
Um padre doou um terreno para a avó de Letícia, que conseguiu construir uma casa de madeira no local, onde viveram até 1990. As despesas eram custeadas pela mãe, que trabalhava como diarista e o padrasto, um ajudante de pedreiro.
No entanto, sem ter com quem deixar as crianças, a mulher teve que abandonar o trabalho fora de casa. Para sobreviver e sustentar os filhos, preparava pastéis e dindins para serem vendidos nas ruas.
Esse foi o primeiro “emprego” de Letícia. Acompanhada de um dos irmãos, ela percorreu a pé e debaixo de sol as ruas de Altamira, vendendo as comidas produzidas pela mãe, durante cerca de dois anos.
As vendas não supriam as despesas e, aos 10 anos, Letícia começou a trabalhar como babá e empregada doméstica em algumas casas da cidade paraense. Ainda uma menina, ela cuidava de crianças com a mesma idade que a dela.
O pagamento não era em dinheiro, mas em itens que ela precisava, como um caderno para poder continuar os estudos e roupas, muitas vezes usadas. Durante o tempo que trabalhou nessas casas, ela também foi exposta a abusos e ao racismo.
“Eu trabalhei praticamente escravizada porque cuidava de casa que tinha três crianças, limpava a casa toda, eu era empregada e babá. Fora os abusos que eu sofria nas residências. Minha família era muito carente, muitas vezes a gente dormiu com fome, a gente não tinha o que comer. Então, por isso a gente se submetia a esse tipo de serviço”, contou a delegada.
Ainda aos 10 anos, movida pela esperança em ter uma vida diferente, Letícia colocou na cabeça que um futuro digno estava nos estudos. A ideia de ser policial surgiu depois de um culto religioso.
“Eu comecei a pensar: ‘vou mudar de vida, eu não quero isso para minha vida. Eu vou ser alguém’. E aí começou a me despertar esse desejo de estudar, de vencer. Durante um culto em uma igreja, uma senhora me disse que Deus iria me constituir uma autoridade nessa terra. Eu peguei aquilo com fé e acreditei tanto, eu senti uma força [de vontade] tão grande a partir daquele momento e comecei a sentir vontade de ser policial”, disse Letícia.
Abandono da mãe, aprovações e começo de uma nova vida
Quando estava com 13 anos, em 1997, Letícia, os irmãos, a mãe e o padrasto se mudaram para Macapá, capital do estado do Amapá, em busca de melhorias de vida. Dois anos depois, ao 15 anos, foi abandonada pela própria mãe.
“A minha mãe me abandonou por causa do meu padrasto, com quem eu tive problemas. A minha mãe foi embora com ele e eu fiquei sozinha no Amapá, os meus irmãos também foram embora com ela e eu fiquei sozinha. Ali foi ainda mais duro para mim, porque eu tive o abandono da minha mãe”, lembrou.
Sozinha, ela logo casou e aos 17 anos teve o primeiro filho. O divórcio ocorreu pouco depois. Nada fez com o que ela perdesse o interesse pelos estudos.
Letícia se mudou novamente, dessa vez para Laranjal do Jari, município localizado ao Sul do estado do Amapá. Com um bebê de seis meses nos braços, ela seguia para as aulas do ensino médio para conquistar o primeiro diploma.
Focada — e muito — nos estudos, Letícia passou a estudar com mais frequência e foi aprovada no primeiro concurso público que fez: para o cargo de agente de saúde. Ela conciliava o trabalho, os estudos e a maternidade.
“Foi muito difícil porque eu tinha que sustentar meu filho sozinha, tinha que dar conta dos estudos. Muitas vezes eu fui para o colégio e quando tinha prova, era a professora quem segurava o meu filho. Foi uma experiência muito difícil, mas fez com que eu acelerasse o meu amadurecimento”, contou.
As condições de vida logo melhoraram, mas a delegada sentia que ainda não tinha alcançado o seu objetivo. Pediu exoneração do cargo e retornou para Macapá com o desejo de fazer um curso superior.
“As pessoas falaram que eu era louca, que eu estava deixando uma vida de concursada. Mas eu queria uma vida melhor, eu falava isso, e com isso eu voltei para a capital com o meu filho”, contou a delegada.
Na capital amapaense, ela conheceu um curso pré-vestibular gratuito e voltado para estudantes com baixa renda. No primeiro vestibular que fez, passou para o curso de Letras na Universidade Estadual do Amapá (UEAP).
Disposta a arriscar, fez o segundo concurso público, o da Polícia Militar do Amapá, e passou, aos 24 anos. Foi durante a atuação na PM que um amigo a incentivou a cursar direito. Letícia conta que no início ficou com medo de mudar de área, mas pensou nas novas oportunidades que poderia ter.
“Ele falou que eu teria um leque [de oportunidades], que eu tinha força de vontade, iria passar e seria uma pessoa bem sucedida. E aí eu senti vontade de fazer um concurso para delegada e falei: ‘então, eu vou fazer direito”.
Ela trancou o curso de Letras, voltou a se preparar com as aulas do curso pré-vestibular e foi aprovada para o curso de direito na Universidade Federal do Amapá (Unifap). No fim da graduação, já casada e com mais duas filhas, ela tentou um novo concurso público e passou, ficando mais perto do cargo atual.
Incentivada pela família
Letícia tomou posse como escrivã na Polícia Civil de Parauapebas, no sudoeste do Pará, em 2018. Os estudos para o cargo de delegada em Roraima começaram quatro anos depois, em 2022. Eles foram incentivados pelo marido, Diego Severiano, essencial para a aprovação dela.
“Eu e o meu esposo vivemos em parceria, a gente sempre se ajuda. O meu esposo foi essencial para mim aprovação no concurso de delegada, foi ele quem chegou em casa e falou: ‘Letícia saiu um edital em Roraima e você vai fazer, eu sinto que você vai passar’, lembrou ela.
Diego, que é policial militar, cuidava da casa e das crianças, preparava o material de estudos de Letícia e a acompanhava durante os exames preparatórios. Quando foi selecionada para a prova oral do concurso, o marido a levou de carro até Brasília (DF) para que recebesse aulas de preparação.
“Ele foi dirigindo do interior do Pará até Brasília para eu fazer uma aula, para eu ver como era uma prova oral. Ele sempre esteve me apoiando, lá em casa a gente tem uma rede de apoio. Isso é muito importante”, afirmou.
Em 2023, foi aprovada para o cargo de delegada em Roraima. A posse ocorreu no dia 19 de julho de 2024, durante cerimônia em Boa Vista. Ela foi marcada pela presença dos filhos, irmãos e tios de Letícia. A mãe e a avó, as pessoas que mais desejava no local, morreram antes que fosse aprovada.
“Eu queria que a minha mãe e a minha avó me vissem como uma delegada de polícia. Eram as duas pessoas que eu almejava muito, que eu queria que tivesse vindo para minha posse, me vissem vestida como uma delegada, mas não puderam chegar. Mas, eu estou aqui, estou feliz e quero ajudar as pessoas com o meu cargo, com a minha história de vida”, ressaltou.
Com uma vida corrida, divida entre o trabalho e a rotina em casa, Letícia se dedica em acompanhar o crescimento dos filhos, proporcionar condições de vida muito melhores do que as que teve e ensiná-los a tratar as pessoas com respeito e amor, o que ela nem sempre recebeu na infância.
“Meus filhos vão poder sim tem uma vida melhor, uma vida digna, com coisas que eu não tive, mas também terão a minha essência, o que eu repasso para eles. Eles devem gostar e tratar bem as pessoas independente da cor, classe ou religião. As pessoas devem ser tratadas como ser humano”.
g1 Roraima.
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