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Da prisão em flagrante ao juiz, a rotina das audiências de custódia

por Editoria Delegados

258,4 mil audiências realizadas e 55,32% delas resultaram em prisão

 

Saulo* foi preso em flagrante por dirigir embriagado um caminhão de distribuição de gás no Recanto das Emas/DF, após o veículo desgovernado destruir uma barraca de comércio.

 

Na segunda-feira (14/8), menos de 24 horas após o acidente, Saulo entrou cabisbaixo, vestindo o chamativo uniforme laranja da companhia em que trabalha, na sala do quinto andar do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), escoltado por três policiais. Ficou frente ao juiz que decidiria se ele deveria responder ao processo preso ou em liberdade.

 

Todos os dias cerca de 40 pessoas presas em flagrante no Distrito Federal – na maioria homens – são levadas pela polícia à presença de um juiz para audiência de custódia. Implantadas em 2015 em cumprimento à determinação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), presentes hoje em todas capitais brasileiras, as audiências estão em fase de interiorização.

 

Nos últimos dois anos, foram realizadas 258,4 mil audiências no Brasil e 55,32% delas resultaram na decretação de prisão de preventiva do acusado. No Distrito Federal, as audiências ocorrem todos os dias pela manhã – inclusive domingos e feriados – comandadas por dois magistrados que trabalham, como costumam definir, em ritmo de “drive thru do McDonald’s. Em seus dias de folga os juízes são substituídos por colegas. Em 2016, em torno de 11,2 mil pessoas foram levadas ao Núcleo de Audiência de Custódia (NAC) do tribunal.

 

Do lado de fora da sala, uma fila de pessoas presas em flagrante aguarda para ser conduzida pela polícia – a faixa majoritária é de homens entre 20 e 30 anos e, entre eles, quase sempre há moradores de rua e usuários de crack acusados de furto.

 

O primeiro lembrete do juiz, no início da audiência, é que a pessoa não sairá dali nem condenada, nem absolvida – apenas presa ou solta. E que terá de responder ao processo criminal de qualquer jeito perante a Justiça. Embora os flagrantes que levam as pessoas às audiências tenham os mais diversos motivos – de uma briga de vizinhos a homicídios qualificados –, o juiz Aragonê Nunes Fernandes, que faz audiências de custódia no TJDFT, observa que há uma certa constância nos crimes cometidos.

 

Segunda-feira, por exemplo, é o dia da “Maria da Penha”, pela maior frequência de homens que agridem mulheres durante o fim-de-semana e de acidentes causados por embriaguez ao volante. Já na quinta-feira, sempre há uma grande quantidade de pessoas que tentam entrar com drogas dentro do presídio, pois na quarta-feira é dia de visita. “Roubos e furtos têm todo dia”, diz o juiz Aragonê.

 

As audiências duram cerca de vinte minutos cada uma e, em todas, o juiz pergunta se houve violência policial. Já foi alegada violência no ato da prisão em doze mil audiências de custódia no país. No Distrito Federal, em 2016, foram 521 casos. “Os relatos de violência policial são poucos e isolados, caíram gradativamente desde a implantação das audiências”, diz o juiz Aragonê.

 

Naquela segunda-feira 36 pessoas passaram pelas audiências de custódia no TJDFT. Desse total, 18 poderão responder ao processo em liberdade, e 19 não tiveram a mesma sorte: vão para a delegacia aguardar o chamado “bonde” que desce todas terças e sextas-feiras ao Centro de Detenção Provisória (CDP), no Complexo Penitenciário da Papuda, e lá esperarão pela sentença do juiz de instrução do processo.

 

É o caso de Saulo, que, embriagado, causou o acidente e não possuía habilitação para conduzir um caminhão de gás. Na tentativa de fazer com que pudesse responder ao processo em liberdade, o defensor público alegou que ele não costumava dirigir o veículo. Só o fez naquele dia em substituição a um motorista que estava doente. O defensor disse ainda que Saulo sofria danos emocionais, uma vez que sua esposa faleceu precocemente há três meses. Na oportunidade que teve para falar, Saulo disse ao juiz que apenas obedecia a ordens de seu patrão; que sustentava sua mãe e sua filha de 16 anos com o salário de R$ 1,2 mil.

 

Ao manter a prisão, no entanto, o juiz considerou que Saulo tinha condenações anteriores, inclusive pelo mesmo tipo de crime, e cumpria prisão domiciliar por um “157”. Ou seja, roubo. “Não será a primeira vez que o senhor deixa a sua filha desamparada”, ponderou o juiz Aragonê. Para o juiz, as audiências de custódia são um ganho para a sociedade. “Melhorou exponencialmente a qualidade de quem fica preso e quem fica solto. Não existe esse oba-oba de que as pessoas são sempre soltas”, diz.

Pobreza, baixa escolaridade e crack

Dois rapazes de pouco mais de 20 anos entraram algemados na sala de audiência de custódia. Muito altos e fortes, mas maltrapilhos e descalços, são acusados de dano ao patrimônio e furto qualificado por conta de uma ação ousada: invadiram o pátio de uma delegacia de polícia em Samambaia para furtar. Os rapazes não estudam, vivem de “bicos” de pintura, usam drogas esporadicamente e têm passagens pelo sistema socioeducativo quando menores de idade.

 

O juiz Aragonê determina que cada um pague R$ 2 mil para repor os danos causados ao patrimônio – quantia praticamente impossível para eles, cuja renda mensal gira em torno de R$ 750 – e, antes de dizer que poderão responder em liberdade, avisa a cada um: “se aparecer aqui de novo, fica preso, viu?”. Um dos jovens sai inquieto, resmungando. Seu companheiro parece indiferente, como se já estivesse acostumado àquela rotina. Outros tantos passariam pelo procedimento naquele mesmo dia, com perfil muito parecido: pobre, de baixíssima escolaridade, sem emprego fixo e, muitas vezes, usuário de crack.

 

Para a juíza Lorena Alves Campos, que atua na outra sala de audiências do TJDFT, o fato de poder verificar pessoalmente as condições do acusado facilita encaminhamentos sociais. Entre eles, estão os pedidos para tratamento de dependência química na rede pública, pedidos para assistência social (especialmente no caso de moradores de rua) e ao Conselho Tutelar, caso o acusado relate que os filhos ficarão desamparados com a sua prisão.“Antes das audiências muitas vezes não tínhamos essa informação no papel e nem sempre essas perguntas são feitas na delegacia”, diz a juíza Lorena. Maria da Penha não tem classe social.

A despeito dos acusados se encaixarem, quase sempre, em um contexto de extrema vulnerabilidade social, alguns crimes, de acordo com a juíza Lorena, não são exclusivos de alguma classe social, faixa etária ou escolaridade: embriaguez ao volante e agressão contra mulher. “Na Lei Maria da Penha, chegam pessoas desde o morador de rua até moradores do Lago Norte”, diz, referindo-se a uma região de elite de Brasília.

 

Descalço e muito sujo, Henrique*, 23 anos, pertencia ao primeiro grupo, o dos moradores de rua. O flagrante se deu em Planaltina, por conta de agressão e ameaça de morte a sua companheira, também moradora de rua. Henrique é negro, alto, usuário de crack há quatro anos e dorme nos fundos de um supermercado. Já passou, sem resultado, por tratamentos para dependência química. Ao ser indagado do pelo juiz se tem filhos, ele hesita um pouco e menciona um menino de três anos que moraria com uma tia em Minas Gerais.

 

A vítima da agressão declarou, na delegacia, estar grávida de três meses, informação que Henrique disse desconhecer. Ela estava muito machucada no rosto e no quadril. Teve que se esconder do companheiro em uma academia de ginástica. Henrique já tem outras passagens na polícia por furto, uso de droga e outras agressões a mulheres. O representante do Ministério Público considerou o episódio deste flagrante triste, já que a vítima relatou na delegacia abaixar a cabeça para “tomar menos socos” quando Henrique se aproxima.

 

Ao decidir que o acusado permanecerá preso até o julgamento, juiz levou em consideração que ele ameaçou de morte a companheira e os pais dela. Além disso, Henrique não tem endereço fixo, o que dificulta a comunicação da Justiça para que responda ao processo em liberdade.

 

Todos os dias há pelo menos um caso de “Maria da Penha” e muitas vezes já são dadas as medidas protetivas na audiência de custódia – por exemplo, a proibição de o agressor entrar em contato com mulher ou filhos, ou medidas de acolhimento para a vítima. Antes das audiências, era comum que, após a agressão, o juiz marcasse uma audiência para dali a dois ou três meses, para conceder as medidas protetivas. “Nesse tempo, a situação poderia se agravar”, diz a juíza Lorena.

 

Outro benefício é que nas audiências de custódia há possibilidade de explicar a medida protetiva ao acusado e verificar se ele, de fato, compreendeu como deve proceder.

 

“Antes das audiências, muitas vezes eles recebiam o papel da Justiça e, sem compreender a linguagem jurídica, achavam que podiam voltar para casa e tentar se reconciliar com a esposa”, diz Lorena

 

Evitar prisões desnecessárias

“Nunca passei por uma situação dessa na vida, doutor”, afirma o homem baixo e corpulento, de olheiras profundas. Jânio* , 46 anos, foi pego em flagrante sob acusação de tentar furtar uma caixa de cerâmica nos fundos de uma loja. Ele não tem antecedentes criminais e disse, durante a audiência, que não usa drogas e vive de bicos de serralheria e de catar latinhas para reciclagem.

 

O defensor público esclarece que, ao remexer o lixo em busca de latinhas, o que costumava fazer todos os dias, Jânio foi confundido com um ladrão e acabou sendo agredido por diversas pessoas até a chegada da polícia. Sua mulher está desempregada e, para agravar a situação, Jânio é soropositivo e já estava há dois dias sem tomar seus remédios de rotina. O promotor esclareceu que a caixa de cerâmica, alvo da confusão, praticamente não tem valor financeiro.

 

O juiz decidiu soltá-lo, com a proibição de retornar ao local dos fatos. Casos de furtos simples e que nem chegam a se concretizar são comuns nas audiências – no dia anterior, por exemplo, houve um caso de furto de uma lata de atum. Para o juiz Aragonê, as audiências têm o papel fundamental de evitar prisões desnecessárias como a de Jânio – não fosse a audiência, ele provavelmente ficaria meses preso até que seu caso fosse avaliado. “A ideia geral é que houve um desencarceramento em massa, o que não é verdade. Não chega à população a informação de que o número de presos não variou significativamente com a implantação das audiências de custódia”, diz.

 

Quando falam da rotina antes da existência das audiências, os juízes lembram de casos de prisões desnecessárias. Uma semana antes das audiências serem implantadas, em 2015, o juiz se deparou, no CDP, com um homem preso há quatro meses sob acusação de roubo circunstanciado e corrupção de menores. Na verdade, o homem não tinha nenhum envolvimento com o crime, era dono de uma pizzaria no Lago Norte, bairro nobre de Brasília, e empregava quatro entregadores, entre eles, um adolescente.

 

No dia fatídico, os meninos pediram carona ao patrão para uma festa na Asa Sul, após o expediente. Não encontraram a festa e um deles pediu para parar em um posto para ir ao banheiro. Em vez disso, assaltou uma pessoa na avenida e foi apanhado em flagrante. Como o patrão o aguardava no carro, foi levado junto para a delegacia. “Era evidente a inocência do homem e foi facilmente comprovada no processo. Mas a mancha de ter ficado quatro meses preso, ninguém vai tirar dele”, diz o juiz.

 

*Nomes foram trocados para preservar a identidade.

 

Luiza Fariello

 

Agência CNJ de Notícias

 

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